sábado, 13 de junho de 2020

4589) O companheiro invisível (13.6.2020)




Meu hábito de falar sozinho não se deve a algum transtorno esquizóide, tipo “Clube da Luta” onde o mesmo cara pergunta e responde, pensando que é duas pessoas. É apenas o costume de quem escreve letras de música ou textos para atores. A gente precisa sentir, fisicamente, como uma frase é pronunciada pela boca e escutada pelos ouvidos, porque há nuances que a palavra escrita-e-lida não cobre.

Isso às vezes dá a impressão de que há alguém por perto, quando não há, e muitos contos policiais já foram criados usando, em algum momento, essa pista falsa de que “vozes foram ouvidas por trás da porta fechada”, o que seria indício da presença de duas pessoas no local – quando na verdade só havia uma.

Qualquer pessoa sente um pequeno calafrio quando ouve falar na possibilidade da presença de um ser invisível, alguém que uma pessoa vê e outras não. 

Na série de relatos radiofônicos Incrível, Fantástico, Extraordinário (publicado nos anos 1950), o radialista Almirante descreve uma brincadeira de estudantes que tiveram a idéia de pregar um susto às pessoas que saíam de uma missa, tarde da noite, e têm que passar junto ao muro lateral do cemitério.

Os garotos levam lençóis, enrolam-se neles, e quando as pessoas vêm passando eles sobem no muro e começam a andar compassadamente. Digamos que eram dez. O da frente resolve olhar para trás para ver se nenhum deles se acovardou na hora, e começa a contar: 1, 2, 3... E conta 11!  Ele grita: “Tem um a mais!...”  E há uma debandada geral.

Isso é folclore, no sentido de ser uma imagem ou situação que aparece em diferentes culturas, diferentes registros.


(Pieter Bruegel)

 Na parte V (“O Que Disse o Trovão”) de seu poema The Waste Land (1922), T. S. Eliot diz:

Quem é o terceiro que sempre caminha ao teu lado?
Quando eu conto, há apenas você e eu, juntos,
mas quando olho à nossa frente na estrada branca
há sempre outro caminhando ao teu lado,
deslizando, envolto num manto marrom, encapuçado
e não sei se é homem, se é mulher
-- mas quem é esse aí do teu outro lado?
(trad. BT)

Em suas notas, no final do poema, Eliot explica:

Estas linhas foram despertadas pelo relato de um dos homens de uma das expedições à Antártida (esqueço qual delas, mas acho que foi a de Shackleton): ali foi relatado que o grupo de exploradores, já nos limites de sua resistência, tinha a ilusão constante de que havia entre eles um membro a mais do que eles eram capazes de contar.

Sem dúvida um delírio provocado pela fome, o cansaço, o frio da Antártida. 



Em notas a outra edição, Eliot lembra o episódio bíblico em que os apóstolos sentem a presença invisível de Cristo ressuscitado, no caminho para Emaús (Evangelho de Lucas, 24: 13-35): ele caminha ao lado de dois discípulos, que conversam com ele mas não o reconhecem.

O episódio de Shackleton acabou, talvez, inspirando um conto de Sir Arthur Quiller-Couch, “The Seventh Man” (1900), em que um grupo de exploradores no Polo, semelhante ao de Shackleton, se refugia numa cabana rústica, e um deles, em estado delirante, conta e reconta o grupo de seis... e todas as vezes acha sete.

Seu olhar percorreu as silhuetas encurvadas. “Aí estão... Gaffer, David Faed, Dan Cooney, Snipe, e... George Lashman em seu beliche, é claro… e eu.” Mas então quem era o sétimo? Ele começou a contar. Aqui estou eu; Lashman, no beliche; David Faed, Gaffer, Snipe, Dan Cooney… Um, dois, três, quatro – mas isso quer dizer que são sete. Mas então, quem é o sétimo? Será que George saiu do beliche e se agachou ali? Certamente há cinco vultos agachados. Não: lá está George, posso ver perfeitamente, no beliche, e não pode nem se mexer. Então quem é o estranho? Errado de novo: não há nenhum estranho. Ele conhecia aqueles homens todos. Eram seus companheiros. Seria Bill? Não – Bill estava morto e enterrado; nenhum daqueles era Bill, ou parecia Bill. Resolveu tentar de novo. Um, dois, três, quatro, cinco. E nós dois, os doentes, sete. Gaffer, David Faed, Dan Cooney – terei contado Dan duas vezes? Não, Dan está ali, do lado direito, e é um apenas. Cinco homens agachados, e dois deitados de costas; isso dá sete, toda vez. Meu Deus.
(trad. BT)



É uma história de terror tornada mais eficaz por esse fluxo meio alucinatório da voz narrativa desse trecho, em que vemos as coisas pelos olhos do personagem.  Há em alguns momentos uma leve impressão de conto edificante, como se o sétimo homem fosse um anjo que veio protegê-los, ou fosse o companheiro morto, cujo espírito teria voltado com essa mesma função.

O outro detalhe interessante do conto é que, apesar de evocar o episódio de Shackleton, ele insere uma nova referência. Um dos personagens na cabana está lendo um livro, The Turkish Spy, onde é descrito um espetáculo de dança de palco, diante do Rei, cuidadosamente ensaiado por doze dançarinos. A certa altura, a coreografia começa a desandar, e um deles percebe que é porque agora há no palco um número ímpar de pessoas fantasiadas (e mascaradas) dançando – são treze, agora.

Quando o número termina, correm todos, apavorados, para a coxia, e fazem uma rápida contagem: são apenas os doze que estavam previstos.

Esse tipo de efeito é muito eficaz numa história de terror, para sugerir a presença de um fantasma, muito mais do que os clichês habituais da “alma de um falecido” que retorna ao mundo dos vivos para pedir justiça, perdão ou vingança, ou para mostrar onde há um tesouro escondido. É uma interferência direta no “sistema operacional” de nossa mente, que conta treze pessoas onde só podia haver doze, etc.

Vejo um eco de tudo isto no mistério do filme O Terceiro Homem (1949) de Carol Reed, em que os relatos da morte de Harry Lime, atropelado à noite por um carro, numa rua quase deserta, dizem que o corpo saiu dali carregado por três homens. Dois deles são identificados; mas, quem era o terceiro?


Há um eco também no filme O Enigma do Outro Mundo (“The Thing”, 1982), de John Carpenter, desta vez ambientado na Antártida, onde surge um alienígena capaz de matar pessoas e absorver sua matéria, assumindo sua aparência. É um grupo de homens paranóicos, cercados pelo gelo, morrendo de frio e de medo, porque sabem que o “companheiro invisível” pode estar dentro de qualquer deles.


Pois é... É como dizia Augusto dos Anjos:

Andam monstros sombrios pela estrada
e pela estrada, entre estes monstros, ando!
(“Queixas Noturnas”)


(Augusto dos Anjos, por Flávio Tavares) 

Daí que um dia eu saí de casa à noite, para uma reunião de trabalho, no apartamento de alguém. Peguei o metrô, seriam umas 8 da noite, e fui até o endereço que tinham me dado. No meio da rua, bem movimentada àquela hora, tive a sensação de que havia alguém caminhando junto de mim, um pouco atrás. Olhei por cima do ombro: ninguém. Continuei. A sensação voltou. Parei. Deixei os outros transeuntes passarem, em ambas as direções. Retomei a caminhada.

Subi sozinho no elevador, toquei na campainha. O dono da casa abriu, sorriu ao me ver, olhou por cima do meu ombro.

– Está sozinho? – perguntou.

– Sim – disse eu. – Por que?

Ele riu:

– Não sei, tive a sensação de que tinha mais gente, antes de abrir, acho que ouvi vozes.

– Eu não falei com ninguém – disse eu. – Posso entrar?...

– Claro – disse ele. – Entra aí.

Entramos.