sábado, 12 de dezembro de 2015

3996) O eu lírico (13.12.2015)




(ilustração: Mana Neyestani)


Existe uma discussão em curso, Brasil afora, sobre as pessoas de origem humilde que conseguem cursar uma universidade, mesmo sendo o que se chama de analfabetos funcionais. Sabem ler, sim. Mas aprenderam apenas a tarefa mecânica de identificar palavras. Não sabem o que aquilo quer dizer. Podem, se estimuladas, dar uma definição passável de cada uma daquelas palavras que rabiscam. Mas se alguém lhes perguntar o que significa um mero parágrafo de jornal sobre assunto que não dominam, terão balbuciantes dificuldades. Diante de um parágrafo da literatura ou da ensaística, naufragarão.

Isso é uma vergonha? De jeito nenhum. É apenas uma erro de programação (ou uma programação propositalmente defeituosa, dirão os mais paranóicos). Nossa civilização precisa de gente assim, que sabe copiar coisas escritas sem entendê-las. Isso deve ter começado desde os tempos cuneiformes, um poeta analfabeto ditando, e um escriba bronco mas competente cravando as runas na argila. Exatidão no registro era mais importante do que entendimento próprio. Hoje não. Exatidão de registro existe a três por dois. O que falta são mentes com mais do que os dois neurônios necessários à alfabetização.

Isso não implica em zombar de quem não sabe ler, mesmo os supostos leitores sofisticados. Há gente com graduação universitária que atribui a Shakespeare ou a Nelson Rodrigues os sentimentos de uma frase dita por um personagem: porque não têm hábito de ir ao teatro, não entendem o jogo de idéias do teatro, e acham que toda frase escrita por um dramaturgo é como um editorial de jornal, um documento partidário, uma carta de intenções registrada em cartório.

As pessoas atacam uma atriz no supermercado porque não gostam da personagem dela na novela do horário nobre. As pessoas entendem mal o que leem. As pessoas têm a mais tênue percepção possível do mundo de teias-de-aranha narrativas em que vivem enredadas - pela TV, pelas revistas, pelos websaites de fofocas. As pessoas comuns (acho eu) têm uma idéia ainda mais esgarçada do que é o mundo real do que um adepto da Teoria Quântica.

As pessoas muitas vezes não percebem que um texto de um desconhecido (mesmo um desconhecido que seja famoso para milhões de pessoas) está ligado a outros contextos e envolve outros sentidos e comenta outros comentários. Enfim. É difícil pegar um jornalista finlandês recém-chegado ao Brasil e tentar explicar para ele nossos 500 anos de história, e a influência que eles têm na atual conjuntura política. Pois bem, o jornalista finlandês é cada um de nós, brasileiros. Não sabemos da missa um terço. O fato de a gente achar que sabe ler não significa que a gente entenda.