quinta-feira, 16 de julho de 2015

3868) O crime de Kalimero (17.7.2015)



(ilustração: Giambattista della Porta)

“Pode procurar aí os registros da morte de Jorge Kalimero. Foi galã de sucesso da Vera Cruz nos anos 1950, mudou-se pro Rio e viveu do Cinema Novo até os 80, voltou para São Paulo e ziguezagueou por toda a escala de personagens da Boca do Lixo até o controvertido final. O filme em que morreu era para ter sido seu triunfal retorno aos 70 anos, longe das telas há uma década.

“Kalimero, depois de velho, virou um pequeno caudilho. Viajava levando uma caravana com esposa, filhos, criados, secretárias que mal sabiam anotar um telefone, protegidos que cochichavam ao seu ouvido e ele metia a mão no bolso, entregava bolos de notas amassadas. Grande ator, mas sem noção da vida real.

“A cena do dia fatal era a morte do seu personagem. General aposentado, depois de ganhar a guerra, está em casa numa manhã de inverno, ouvindo música. Um ladrão entra, há luta, o ladrão o mata com um tiro no peito. O assassino? Um pobre diabo que não sabia quem ele era.

“Aquela era a primeira cena do dia. Kalimero saiu do seu trailer às oito, figurino do personagem, entrou no cenário, foi preparado. Rodaram numerosos planos. Quando rodaram a cena do tiro, o projétil disparado pela arma do coadjuvante varou o coração do veterano astro.

“O processo foi coberto pela imprensa, está tudo bem à vista. Veredito: acidente. Havia duas opções na cena: um tiro de festim, para o qual bastaria uma veste reforçada por baixo da roupa; ou um projétil de verdade, que produziria um choque mais realista no peito do ator, mas precisaria haver por baixo um colete antibala comum, daquele da polícia.

“O juiz disse que o tiro foi acidental, mas Kalimero tinha dinheiro e propriedades, a decadência dele era somente artística. Muita gente querendo sua morte, ainda mais agora, trabalhando, seguro assinado. E eu trabalhava nesse filme. Foi um dos meus primeiros trabalhos, eu servia de menino de recados para os assistentes de direção.

“O crime consistiu em alguém garantir à equipe que tudo bem com projéteis de verdade, porque o astro exigiu o colete à prova de bala. E em alguém garantir do outro lado que o tiro seria festim, e bastaria um pulôver reforçado com pelica.

“Ninguém comentou isso, enquanto as cenas eram rodadas. Ninguém checou um detalhe tão importante. Difícil saber. Mas eu, eu ouvi o assistente novo, primeiro filme com aquela equipe, dando esses dois recados, e eu ouvindo e ninguém me vendo. Depois do tiro e da confusão, foi interrogado e liberado. Depois, ninguém mais o viu.  Quando a polícia foi ao endereço que fornecera encontrou um casal de tios idosos que mal lembravam o nome completo dele, e não o viam há vinte anos. E nunca mais foi visto. “