sábado, 13 de dezembro de 2014

3683) A mensagem do morto (13.12.2014)



Defendo a teoria de que todo subgênero literário corresponde a uma necessidade profunda da psique humana. Livros sobre crimes decifrados e criminosos entregues à polícia confirmam nossos propósitos justiceiros, por mais superfaturados que sejam.  Livros sobre viagens espaciais exploram nossa curiosidade e nosso senso de aventura.  Livros sobre homens e mulheres vestidos de couro que fazem sexo usando algemas e outros adereços correspondem às fixações eróticas de um certo número de homens e mulheres. E la nave va.

Há um subgênero do policial que, se não foi inventado por Ellery Queen, coube a este transformá-lo numa pequena proeza de engenhosidade.  São as histórias de mensagens de moribundos.  Digamos que houve um crime numa mansão.  A polícia chama Ellery Queen (que é filho de um inspetor de polícia de Nova York) pra dar uma olhada.  O sujeito foi envenenado ou apunhalado, mas demorou alguns minutos para morrer, ainda lúcido. Ele queria dizer quem o matou.  Mas se escrevesse “FULANO ME MATOU”, corria o risco do Fulano voltar à cena do crime e destruir a mensagem.  O que faz ele?  Improvisa, em seus últimos estertores, uma mensagem cifrada cujo sentido o assassino, mesmo que veja, não perceberá de imediato que o denuncia, e deixará passar, pois está com pressa.  A vítima tem a esperança de que a polícia, com mais tempo e calma para matutar naquilo, descubra a solução, perceba quem foi a pessoa denunciada em código.

Ellery Queen explorou isso em inúmeros romances e contos. São letras aleatórias rabiscadas num papel. Uma página específica de um livro, arrancada no último instante.  Um objeto que a vítima claramente se arrastou para alcançar e segurar, indicando algo. Um gesto desesperado com os dedos da mão. “O que ele quis dizer com isto, Mr. Queen?”, é a pergunta, e Ellery começa a fazer todas as associações de idéias possíveis entre a mensagem misteriosa e as pessoas suspeitas.

Um dos encantos da literatura detetivesca, o mais celebrado talvez, é a lógica e a imaginação com que Sherlock Holmes ou Hercule Poirot chegam à solução do mistério.  O encanto do subgênero das mensagens de moribundos é esse diálogo à distância entre a inteligência da vítima e a inteligência do detetive, passando por cima da inteligência do criminoso.  Nos últimos estertores de sua vida, uma pessoa consegue produzir esse gesto criptografado, instantâneo, que o criminoso desdenha ou nem percebe, e que o detetive, com a paciência de um charadista, irá decodificando aos poucos, limando hipótese por hipótese, até perceber a verdade e com isso fazer justiça àquele último impulso criativo de uma mente humana que não existe mais.