sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

3056) "Holy Motors" (14.12.2012)





Foi o filme mais desconcertante e provavelmente o melhor que vi este ano; não sei se muitos leitores terão chance de vê-lo, porque está em cartaz numa das salinhas menores do Estação Botafogo. Dirigido pelo francês Leos Carax, Holy Motors é uma sucessão de cenas bizarras amarradas por uma estranha lógica, como acontece em filmes de Buñuel, David Lynch ou Emir Kusturica. Não é bem um filme fantástico – com poucas exceções, as coisas bizarras que mostra poderiam acontecer em nosso mundo, pois não violam as leis naturais. Mas qual a probabilidade de um sujeito entrar num café atirando, matar (aparentemente) um executivo de terno que está numa mesa com amigos, ser morto (aparentemente) pelos seguranças da vítima, e depois ir embora como se nada tivesse acontecido?  É Buñuel puro, e lembra aquela antiga frase de André Breton, de que o ato surrealista mais simples seria empunhar um revólver e sair pela rua alvejando pessoas a esmo.

Ao longo de um dia e uma noite, Oscar (Dennis Lavant) percorre Paris dentro de uma limusine branca cujo interior é um camarim com espelhos, luzes, figurinos, maquiagem, etc. Ali dentro ele troca de rosto, de cabelo, de roupa – e desce (depois de estudar um dossiê de informações) para “encontros” que em geral são cenas surrealistas, insólitas. A cada novo encontro, o espectador fica se perguntando qual o propósito daquilo tudo, até porque as outras pessoas envolvidas dão mostras de serem, também, atores interpretando papéis para aquela situação específica.

O filme de Carax é uma reconstrução onírica da vida de um ator de cinema ou de teatro, o tempo inteiro mudando de “persona” e adaptando-se a situações que não foram criadas por ele, mas nas quais ele deve se encaixar, dando seu suor e seu sangue. (Oscar “morre” pelo menos três vezes nesses encontros.) A permanente imprevisibilidade do filme é amarrada por um conceito nítido, embora bizarro (sabemos desde cedo que estão previstos, ao longo do dia, vários daqueles episódios), e evita que a história se dilua na gratuidade do “ah, qualquer coisa pode acontecer”. As coisas que acontecem a Oscar não são quaisquer coisas, não são escândalos “pour épater les bourgeois” nem violências para excitar os turbinados. São alegorias de momentos da vida, ou de estados de espírito, que só se revelam através do cinema ou do teatro. Momentos recriados com a vida e o sangue desse ator exausto e incansável, que percorre a cidade cumprindo rituais de amor, de assassinato, de absurdo, de travestismo, de celebração das pequenas coisas da vida, e lembrando o quanto a vida é inexplicável quando vemos apenas um dos seus fragmentos acontecendo.