quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

4792) Um cachorro doido (9.2.2022)



Era uma roda de chat, online, via zum. (Não reclamem do “zum”; é uma tentativa de abrasileirar nosso idioma atual.) Eu estava com alguns amigos, nordestinos, conversando miolo de pote, e alguém contou um episódio bizarro acontecido há pouco tempo.
 
– Não é possível – disse alguém. – Quem foi que contou essa história?
 
– Fulano.
 
– Ah, esquece. Fulano mente mais do que cachorro doido.
 
Houve uma risada geral, porque esse amigo, cujo nome omito por cautela, é um notório inventor de mirabolâncias. Mas a comparação, que é familiar no idioma nordestinense, acendeu uma luzinha na minha memória.
 
“Fulano mente mais do que cachorro doido.”  Cachorro doido mente?
 
Primeiro, uma explicação necessária. Cachorro doido, pelo menos no Nordeste, não quer dizer cachorro psicótico ou catatônico. É simplesmente o cachorro hidrófobo, o cachorro contaminado pelo vírus da raiva. O animal fica alucinado de sofrimento e sai pela rua afora disposto a morder quem se atravesse na sua frente (e quando isso acontece, inocula o vírus na vítima).
 
Vamos aprofundar mais um degrau nessa questão. Cachorros, em geral, mentem?
 
Eu diria que não, ou quase nunca. Vamos fazer uma comparação entre cachorro e gato. Durante minha infância já teve cachorro lá em casa (não pensem que me esqueci de Lunik), e dezenas de gatos (Brigitte, Iscocó, Gasolina, Rum Montilla, etc.). Não sou chegado ser dono de animais, mas sempre convivi numa boa, sempre me interessei pela psicologia deles.
 
Comparados aos gatos, os cachorros são os animais mais sinceros, mais ingênuos, mais espontâneos do mundo. O gato é sonso, interesseiro, seguro de si. Faz o que quer. Vive num Egito mental, onde os faraós se curvam à sua passagem. São mestres em dissimulação, em esconde-esconde, em pequenos furtos, pequenas surtidas clandestinas a espaços proibidos. O gato vive em função de suas próprias conveniências.
 
O cachorro não. Ele vive, em regra geral, em função das conveniências do seu dono. É um ansioso para agradar. Até aquelas abomináveis lambidas em nossa cara são feitas na ilusão de que está nos proporcionando um prazer transcendental qualquer.
 
Quando dizemos que o cão é o símbolo de fidelidade, queremos dizer exatamente isso, que ele não mente, ele não tem segundas intenções quanto ao dono ou à dona. Claro que cada tipo de cachorro tem seu temperamento. Existem os sisudos e meditativos; os irrequietos e frívolos; os soturnos e ameaçadores; os vaidosos e posudos; os brincalhões e saltitantes; os bamboleantes e desajeitados...
 
Mas todos são sinceros. Cachorro não mente.
 
E cachorro doido? Cão hidrófobo? Mente, ou não?
 
Entra aí uma questão interessante, porque o cão com hidrofobia, coitado, é ainda mais incapaz de mentir. A “raiva” afeta o sistema nervoso central, deixa o animal irritadiço, com dificuldade para engolir, hiper-sensível a qualquer estímulo... Ele sai sufocado, andando num trote inquieto, cheio de espasmos, sempre em linha reta, olhar vidrado sem enxergar direito, babando, e mordendo com fúria qualquer coisa em que venha a esbarrar.
 
Já vi uns dois ou três assim, e teve um episódio inesquecível nas lavanderias do Alto Branco, quando certo fim de tarde apareceu um cachorro doido que botou pra correr as lavadeiras no gramado em volta dos poços. O bicho ficou zanzando em círculos, sem rumo, sem atinar com coisa alguma, até que nosso vizinho Zé Buraco (ex-zagueiro do Treze) emergiu de casa com uma espingarda e foi um tiro só.
 
Um animal nesse estado é virtualmente incurável; um ser humano também.
 
O filme de zumbi é um gênero tão em voga, não é mesmo? Eu pelo menos acabei de rever o filme pioneiro de George Romero, Night of the Living Dead.

 
Muitos críticos já ressaltaram algumas semelhanças entre os zumbis desses filmes e seres humanos atacados de hidrofobia. Não tem retorno. Não tem cura para eles. É preciso abatê-los, para que o mal não se propague. Não tem discussão, não tem pedido de piedade, não tem por-favor nem jeitinho-brasileiro. O zumbi é como o hidrófobo: já morreu, mas tem que ser abatido. Por isso o filme de zumbi é uma grande metáfora do nosso século; consultem os borderôs.
 
Cachorro doido mente? Eu afirmo que não. Mentir implica num movimento do intelecto, na avaliação simultânea de dois cursos de ação e na escolha pelo curso que leva ao engano, à mensagem falsa, à intenção de enganar. Que pode até ser uma intenção benévola – quantas vezes a gente não diz uma mentira a uma criança, um idoso senil, um bêbado?
 
Só mente quem é capaz de pensar, e um cachorro hidrófobo não é capaz de pensar nem sequer seus pensamentozinhos caninos, seus pensamentos da cachorra Baleia, de Graciliano.
 
Um cão hidrófobo é um animal possuído por uma idéia fixa, ou melhor, por um conjunto-de-sensações fixo, e essas sensações são dolorosas, produzem todas um sofrimento insuportável, que o conduz à fúria.
 
Um cachorro doido é como um Fanático. O Fanático não mente. Ele está possuído por uma idéia fixa, essa idéia ocupa todo o espaço raciocinador de que ele dispõe, e quanto mais aumenta seu fanatismo mais diminui sua capacidade de raciocinar até para essas funções mais simples, tipo uma mentirinha básica. O Fanatismo é uma patologia de sinceridade absoluta, que exclui o pensamento; como um “disco enganchado” repetindo eternamente a mesma fração de idéia.
 
Portanto...
 
A expressão “Fulano mente mais do que cachorro doido” precisa ser revista, porque cachorro doido não mente.  Nós, todos nós, mentimos mais do que cachorro doido. Mentir implica numa avaliação, numa escolha e numa ação. Somos todos capazes de mentir, porque somos capazes de pensar e de tomar decisões.
 
Um cachorro doido não, coitado.