terça-feira, 3 de janeiro de 2017

4196) Um cão de lata ao rabo (3.1.2017)



(Machado, por: Rocha + Takiguthi + Ramon Muniz)





Na velha edição da “Obra Completa” de Machado de Assis em três volumes, da Aguilar, li uma crônica dele em que um mestre escola sugere um tema a seus alunos.

O tema proposto é “Um cão de lata ao rabo”, e ao recolher os trabalhos o imaginário professor recebe três que se destacam dos demais. Os respectivos estilos são: “1 – Estilo antitético e asmático; 2 – Estilo ab ovo; 3 – Estilo largo e clássico.”

Esse é o exemplo mais antigo que me lembro de uma história sendo repetida, de três maneiras diferentíssimas, por três maneiras diferentes de pensar, que Machado parodia de modo muito divertido.


Anos depois dei uma furtadinha nesse título para um conto, tendo como mote a imagem sugerida por Machado. O escritor é um cachorro correndo. Amarrada ao rabo dele, há latas que produzem sons musicais diferentes. Essa melodia é o estilo dele, e a obra é o que resulta dela.

Existem escritores para quem escrever é rasgar a alma e as tripas e botá-las à venda na tábua de uma barraca pouco higiênica na esquina da baixa da Rua da Lama num país periférico e suicida. Para escritores assim, o estilo é a pessoa. Eles não poderiam escrever de maneira diferente, mesmo se disso dependessem suas vidas. O escritor é aquilo, ele escreve aquelas coisas, sempre daquele jeito. Ele não tem dois ou mais conjuntos de entranhas, só tem aquele.

E existem os que, sem perder a sinceridade ou o personalismo, manejam essas técnicas como Machado manejou. Para este segundo tipo de escritores, trocar de estilo é tão banal quanto trocar de roupa. Ou de figurino, porque o autor assim é um ator, troca de máscaras como bem lhe convém. Como faz Raymond Queneau em seus famosos Exercícios de Estilo, livro onde ele reconta uma mesma cena casual, entre transeuntes, de 99 maneiras diferentes.



Um cão que atravessa a mesma rua 99 vezes, cada vez com uma lata diferente atada à cauda. E cada vez uma sonoridade, um timbre, um andamento diferente. A lata é outra mas, por baixo disso, algo se repete e está sempre presente, porque o cão e a rua são os mesmos.

Queneau fez no seu livrinho uma demonstração meio por “redução ao absurdo”. Diante de suas piruetas verbais, os seus tradutores acabam se divertindo também, porque é um processo reiterativo que convida à reaplicação. Existe, sim, a Grande Arte da paródia, ou do pastiche, ou da imitação meramente técnica. 

Experimentos lúdicos desse tipo parecem às vezes, ao leitor pouco aficionado desses jogos mentais, uma demonstração de erudição, de alta complexidade. Nem tanto. Em geral, os escritores que gostam de truques assim (Lewis Carroll, James Joyce, Umberto Eco, Thomas Pynchon, Georges Perec) fazem porque acham divertido, e conseguem usar essa diversão como um gerador de energia-de-escrever.

Perec dizia que seu objetivo era produzir uma obra extensa onde não houvesse dois livros quaisquer pertencentes ao mesmo gênero. Não sei se conseguiu, mas em todo caso isso descreve bem a variedade das suas abordagens narrativas. Ele era cruzadista, meio cientista, fã de whodunits e de pulp fiction. E dominava (embora não tanto quanto seu mestre Queneau) um grande número de estilos.




Nem por isso sua visão do mundo, ou o que a valha, deixa de aparecer em tudo quanto ele escreve. A obra é raramente autobiográfica, mas estão há sempre referências a toda uma história sua que se perdeu e outra que se salvou.

Em casos como esses todos, a multiplicidade de estilos não se transforma numa multiplicidade de capas escondendo o autor, e sim como uma multiplicidade de rascunhos feitos de memória para captar uma imagem que se viu poucas vezes. Não são mil disfarces, mil camuflagens, são mil tentativas de aparecer feitas por algum fantasma.

Alguns têm a facilidade de ser publicados como humoristas, como foi o caso de Millôr Fernandes (“enfim, um escritor sem estilo!”), outro notório surrupião de modos de falar, ou como poetas, caso de Fernando Pessoa, que inventava tanto o estilo quanto o homem.



Ou como Daniel Clowes, o surrealista-lynchiano de novelas gráficas: Como Uma Luva de Veludo Moldada em Ferro (Like a Velvet Glove Cast in Iron, 1993) tem a nonsequiturice de Um Cão Andaluz numa ambientação de road movie e semi-enredo de filme policial noir.

Um dos seus álbuns, Wilson, segue, de leve, a sugestão dos 99 de Queneau. Cada página isolada do livro é desenhada num estilo de grafismo e de cor diferente das anteriores – mas a história avança. Não é a mesma cena, são capítulos de uma mesma história, desconjuntada mas proposicionalmente única. Como se a cada salto do olhar para o começo da página nova houvesse uma troca de canal, ou uma aplicação de filtro.



Em Wilson, Clowes conta as atribulações de seu barbudo sub-herói, que em algumas imagens é a cara do Walter White de Breaking Bad (só que numa versão existencialista e menos agressiva). As mudanças de estilo têm continuidade suficiente para que o leitor possa pular de uma faixa para a outra sem atrapalhar o passo.  Li em algum lugar que alguns críticos nem perceberam, pelo pouco que comentaram, o uso de toda essa variedade de formas, com transições tão insistentes e propositais.



Se algum crítico nem percebeu isso não percebeu, está na companhia dos críticos que leram o livro de Georges Perec onde ele proibiu a letra E (La Disparition) e não perceberam que uma das vogais estava ausente do livro inteiro. O romance foi traduzido ao inglês por Gilbert Adair como A Void, e agora no Brasil como O Sumiço, em tradução de Zéfere (Ed. Autêntica).




Saber imitar estilos é como saber imitar a voz e os trejeitos dos amigos, ou ser capaz de produzir 99 personagens e diluí-los em si próprios, deixando ver o ator.