domingo, 3 de abril de 2022

4809) "Taboo" e o coração das trevas (3.4.2022)


 

O Netflix está exibindo uma série, Taboo (uma temporada, 8 episódios), com uma mistura eficaz de violência, sutileza psicológica, brutalidade colonialista, intriga política, espionagem, tecnologia proto-steampunk, magia primitiva.
 
A mistura parece boa, e é. Os responsáveis pela série são (pelo que se diz) os mesmos criadores de Peaky Blinders, outro drama de gangsters “de época”. Em Taboo, a reconstituição da Londres de 1814 é convincente. Os personagens são fortes, pesados; têm alta voltagem. A história é aquele habitual enredo televisivo em que os fatos se sucedem de modo quase hipnótico, intercalados com cenas de amplos diálogos onde ficamos com alguma idéia de quem é quem, o que pretende, de quem é inimigo, de quem é aliado provisório.
 
É interessante perceber que muitas dessas séries televisivas têm enredos mais complicados e mais labirínticos do que muitos romances policiais. E olha que no romance o tempo é outro. O leitor pode se interromper, botar o dedo em cima da página, ficar pensando... voltar até o capítulo anterior... conferir um diálogo... perceber uma rápida menção a um nome, a um fato... pensar “Arrá!... Entendi agora como está sendo a armação!...”
 
Uma série de TV, não. É uma montanha russa – você segura o chapéu, e seja o que Deus quiser. Teoricamente, o espectador pode fazer o mesmo, parar, voltar, conferir, mas em geral não faz. A imagem cinematográfica (para esse efeito, cinema e TV são equivalentes) nos arrasta, impõe seu tempo, nos leva – ou pelo menos me leva – a pensar: “Não sei para que diabo ele está levando os explosivos para esse prédio, que já vi, mas não me lembro do que é, mas vamos em frente.”
 
Stanley Kubrick dizia que um filme deve ser visto não como quem lê um romance, mas como quem escuta uma música. O que nos seduz e nos arrasta é uma espécie de melodia visual, de ritmo; uma orquestração de emoções e expectativas imediatas, gerada pela câmera e pelo corte. A história... a história a gente só vai entender daqui a algum tempo.


(Tom Hardy)

Em Taboo, ajuda bastante o fato de que o protagonista, James Delaney (Tom Hardy) é um desses indivíduos marcados pelo signo de Caim. Um homem fechado em si mesmo, com poucos escrúpulos, implacável, incomunicável, empenhado numa vingança pessoal e numa cartada política internacional capaz de render fortunas – um homem que nada revela do que está pensando. Só vamos entender daqui a algum tempo.
 
Delaney volta a Londres para o enterro do pai, um homem rico, poderoso, excêntrico; e para reaver, na qualidade de primogênito (ele tem uma meia-irmã londrina, interpretada por Oona Chaplin, com quem mantém uma relação heathcliffiana) uma faixa de terra entre os EUA e o Canadá, faixa de importância vital para o comércio de chá (e de produtos menos anunciáveis) entre a China e o Ocidente.
 
Não demora para Delaney estar lutando sozinho contra a Coroa Britânica, representada por um Príncipe Regente ( o futuro rei George IV) retratado em tintas afetadas e bobonas, não muito diferentes das que o cinema brasileiro tem usado para descrever D. João VI.


(Jonathan Pryce)
 
Delaney luta, também sozinho, contra a poderosíssima Companhia das Índias Ocidentais, cujo cabeça é Sir Stuart Strange, interpretado magnificamente por Jonathan Pryce (o abestado protagonista de Brazil, o Filme).
 
E luta, também sozinho, contra os Estados Unidos da América, uma terceira via que em 1814 está começando a botar as garras de fora e quer-porque-quer aquela faixazinha de terra que o pai de Delaney comprou aos nativos anos atrás, por uma merreca.
 
O fato de Delaney estar lutando sozinho contra adversários tão poderosos o leva a agir como o enxadrista amador do conto de Malba Tahan, que desafia os dois campeões do reino para partidas simultâneas, e daí a pouco está simplesmente botando cada um deles a jogar contra o outro. 

É um pouco o que em literatura policial se chama de “o gambito Red Harvest”, criado por Dashiell Hammett no livro com esse título, e depois muito explorado em outras histórias (a mais famosa creio ser Yojimbo, de Akira Kurosawa).
 
Você é fraco? Está enfrentando um grupo de fortões? Faça com que eles se destruam mutuamente. Fortões adoram destruir-se mutuamente. Sentem mais prazer com isso do que destruindo um fracote como você, um bebum que nem navio tem.
 
Delaney é interpretado por Tom Hardy, especialista em papéis com muita presença física e poucas palavras (Mad Max Fury Road, The Dark Knight Rises). E não há como não ver nele a energia surda e brutal que o ator injetou em seu Mad Max e principalmente em seu Bane, criaturas meio primais, meio trogloditas, radioatividade pura represada num vórtice de ambição e vingança.
 
O pulo-do-gato do personagem (que aliás foi concebido pelo próprio ator e por seu pai, o romancista Chips Hardy) é que Delaney não é um mero Max Rockatansky ou Bane. É um enxadrista político. Um chantagista sênior. Aquele anti-herói na tradição de Rocambole ou Lupin, que mesmo condenado à guilhotina é capaz de trazer a sua masmorra um Ministro, que negocia com o presidiário e sai dali com o rabo entre as pernas.
 
Um típico anti-herói de folhetim, sem o sentimentalismo do folhetim. Tornado plausível por um viés ético e amoral que nos são totalmente contemporâneos. É o império da luta político-econômica dos grandes conglomerados, onde valem palavras de ordem como “quem for podre que se quebre”, “foi ferido está morto” ou “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
 
Quando li a respeito da série, vi Tom Hardy citando, entre suas influências na criação do personagem, Sherlock Holmes. E, sim, ele faz bom uso dos seus “irregulares-de-Baker Street”, e guarda suas deduções para si mesmo até que chega a hora de agir. 

Também citou Marlow, o narrador de O Coração das Trevas de Joseph Conrad. Este lado é o mais interessante. Quem leu o livro de Conrad lembra do seu narrador, o inglês equilibrado e profissional que navega Rio Congo acima para checar as atividades de um tal de Kurtz, de quem se diz estar aprontando horrores com os nativos; ele o faz, e volta abalado para sempre.


 
De fato, James Delaney viveu na África, viajou em navios negreiros, foi co-responsável pela morte de escravos, submeteu-se a rituais mágicos (que explicam inclusive sua resistência aos espancamentos e torturas físicas que sofre ao longo da série). Ele tem um pouco de Marlow, um pouco de Kurtz. É um indivíduo que viveu os horrores do colonialismo lá longe, nas periferias do colonialismo, de onde não chega notícia alguma na capital. O que chega são indivíduos como ele, transtornados, vingativos, transformados em máquinas de destruição do sistema que os produziu. E que eles destroem, mas não têm alternativa senão substituir; e replicar.