domingo, 27 de março de 2022

4807) O assalto ao Banco Central (27.3.2022)




O Netflix está exibindo a série, em três episódios, 3 Toneladas, dirigida por Rodrigo Astiz, roteirizada por Daniel Billio e produzida pela Mixer Films.
 
É uma série-documentário sobre o famoso assalto ao Banco Central, de Fortaleza, em agosto de 2005. Considerado até hoje o maior furto de banco do Brasil: foram cerca de 160 milhões de reais subtraídos ao longo de um fim de semana (“três toneladas de dinheiro”, segundo a polícia).
 
Os ladrões alugaram uma casa a certa distância do Banco e passaram meses cavando um túnel, que no final ficou com 75m de extensão. No início da noite de uma sexta-feira, encerrado o expediente do Banco, eles quebraram de baixo para cima o piso da caixa forte. e saíram pelo buraco. Passaram o resto da noite de sexta e parte do sábado tirando dinheiro, colocando-o em sacos, e transferindo-o de mão em mão ao longo do túnel, até a casa onde o quartel-general da quadrilha estava instalado.
 
O documentário é muito bem escrito e editado, costurando os depoimentos de policiais federais, policiais civis, jornalistas, bandidos presos e outras pessoas que vão aos poucos fornecendo as peças do quebra-cabeças, narrado com rapidez e clareza.


 
O resultado da investigação foi uma espécie de empate técnico. A polícia identificou praticamente todos os participantes do furto e prendeu quase todos eles; mais de 100 milhões de reais não puderam ser recuperados. Foram rapidamente gastos, “lavados” pelos assaltantes. Talvez uma parte esteja enterrada por aí, à espera do dono.
 
O doc da Netflix me lembrou uma série de filmes de “assalto engenhoso”, que acho mais interessantes do que os assaltos a mão armada e com tiroteio, estilo Bonnie & Clyde. O assalto engenhoso seduz pela inteligência dos planejadores, pelo suspense da execução e, em muitos casos, pela esperteza dos investigadores que acabam botando a mão nos gatunos.
 
É também quase um clichê desse gênero de filme que o assalto seja realizado com perfeição, mas a fruição final do dinheiro vá por água abaixo, por obra do Acaso. É o que acontece em clássicos como Gangsters de Casaca (“Mélodie en sous-sol”, 1963) de Henri Verneuil, Rififi (1955) e Topkapi (1964) de Jules Dassin, Sete Homens de Ouro (“Sette uomini d’oro”, 1965) de Marco Vicario, e inúmeros outros.






Num artigo recente no saite Crime Reads a escritora Marion Deeds se pergunta por que razão ela gosta tanto de livros/filmes de assaltos engenhosos. E responde: “É a pornografia da competência (competency porn)”.
 
De fato, esses assaltos podem chegar a níveis barrocos de complexidade, tanto na literatura quanto no cinema, onde afinal tudo acontece pela vontade divina dos autores. Numa história escrita, pode-se planejar milimetricamente cada ação e cada resultado, e mesmo uma interferência casual (uma batida de carro, um passarinho intruso) só aconteceu por decisão autoral.
 
Um bom exemplo é a bem sucedida série de ficção espanhola La Casa de Papel.


Diz Marion Deeds (trad. BT):
 
“[Uma história de assalto] envolve pessoas no máximo de suas capacidades e de seus talentos, ou pelo menos pessoas que no passado demonstraram possuí-los, em circunstâncias que os submetem a provas severas. Assaltos também satisfazem o nosso desejo por demandas, por aventuras com um objetivo, visto que elas reproduzem com precisão o mecanismo narrativo dessas demandas. Alguma coisa valiosa deve ser conquistada, ou destruída. Um grupo de pessoas de diferentes origens soma suas forças, enfrenta obstáculos, provavelmente têm que lidar com pelo menos uma traição, e precisa empregar a fundo seus talentos para atingir o objetivo”.
 
É típico desses filmes que a narrativa assuma o ponto de vista dos ladrões, com os quais acabamos simpatizando, torcendo por eles. Por que?
 
Em primeiro lugar, pela “pornografia da competência” que eles demonstram. Numa sociedade onde os especialistas, os recordistas, os “melhores do ranking” são tão valorizados, temos prazer em ver as soluções engenhosas adotadas pela quadrilha. Diante de cada obstáculo, cada imprevisto, um deles vem lá de trás, arregaça as mangas e diz: “Deixa comigo”.
 
Em segundo lugar, suspense é suspense. E boa parte do suspense dessas histórias se dá pelo fato de que na primeira parte do filme a quadrilha planeja detalhadamente como será o golpe (e com isso informa o espectador sobre o que esperar daí pra frente), e depois nos deparamos com todas as surpresas e reviravoltas que a prática costuma aplicar em qualquer teoria.

O filme Como possuir Lissú ("Gambit", 1966), de Ronald Neame, com Shirley MacLaine,  faz uma divertida sátira desse processo. Nos primeiros 15 minutos vemos um roubo difícil sendo executado com espantosa competência. Há um corte... e percebemos que aquilo tudo era apenas o chefe do bando explicando como as coisas deveriam acontecer. O roubo de verdade vem em seguida... e é claro que sai tudo ao contrário do que foi planejado.

Em terceiro lugar, torcemos pelos bandidos porque o dinheiro (jóias, etc.) geralmente pertence a bancos, empresas multinacionais, governos... O público não se identifica com estas entidades invisíveis, e sim com aquela meia dúzia de caras meio pobretões mas inteligentes. Torcemos muitas vezes pelo underdog, o azarão, a arraia miúda, aqueles assaltantes artesanais que se atrevem a desafiar fortunas, exércitos, guardas, sistemas de alarme. Queremos que o time pequeno-e-esforçado ganhe do time grande-e -arrogante.
 
No 3 Toneladas - Assalto ao Banco Central, os próprios policiais e jornalistas destacam a inteligência e a habilidade de alguns membros da quadrilha, observando que se dariam bem em qualquer profissão honesta. A série tem o inevitável tom de “o crime não compensa”, certamente para tranquilizar pais preocupados com seus filhos de 10 anos: “E se meu filho assistir isso e quiser roubar um Banco?!”.
 
No primeiro episódio da série, uma especialista em assalto dá seu depoimento numa biblioteca, e a certa altura segura um livrinho amarelo, Brecht – Vida e Obra. Bertolt Brecht foi quem disse um dia: “O que é um assalto a um Banco, comparado com um Banco?”  Todos os filmes de assalto se baseiam em premissas semelhantes. São “mistos quentes” que reúnem o charme da transgressão e a pornografia da competência.