quarta-feira, 24 de junho de 2015

3849) Kazuo e a fantasia (25.6.2015)



(ilustração: Tim McDonagh)

O escritor Kazuo Ishiguro publicou o romance The Buried Giant, que tem elementos do gênero fantasia, mas não o chamou de “fantasia”. Caiu sobre ele a avalanche de críticas que cai sobre quem “fica em cima do muro”, na política-partidária que tenta há anos se impor no meio literário (“ou você assume que é um dos nossos e concorda conosco em tudo, ou assume que é um deles e jamais concordaremos com você em coisa alguma”). 

Problema que já acometeu Kurt Vonnegut Jr. (que ousou dizer que não era escritor de ficção científica) e outros. O New Statesman colocou lado a lado Ishiguro e Neil Gaiman para trocar idéias num diálogo que pode ser lido aqui: http://tinyurl.com/ob4zlzu.

Neil Gaiman é macaco velho neste mundo, mas Kazuo (que nunca li, aliás) parece meio inseguro (essa foi infame) diante das leis do fandom. 

Os fãs exigem que o autor não apenas cultive o gênero, mas faça propaganda dele, defendendo-o junto aos infiéis em geral, do jeito que um militante tem que defender seu Partido. Ishiguro sabe que existem fórmulas nos gêneros, e dá um divertido exemplo com os filmes de samurai japoneses:

“Quando cheguei à Grã-Bretanha aos cinco anos uma das coisas que me chocavam na cultura ocidental eram as cenas de lutas de espadas em filmes como Zorro. O que eu conhecia era a tradição dos samurais, onde toda habilidade e experiência converge para um único instante que separa ao vencedor e o perdedor, a vida e a morte. Toda a tradição samurai é a respeito disso: desde os mangá até filmes de arte como os de Kurosawa. É parte da magia e da tensão de uma luta, no que me diz respeito. Mas então eu via pessoas como Basil Rathbone como o xerife de Nottingham e Errol Flynn como Robin Hood e eles tinham longas conversas enquanto batiam com as espadas uma na outra, e a mão que não estava segurando a espada fazia uma espécie de gestos vagos no ar, e a idéia parecia ser a de conduzir o adversário até a beira de um precipício enquanto o distraía com um longo diálogo expositivo a respeito do enredo do filme. (...) Nos filmes de samurai, os dois oponentes se encaram durante um longo tempo, então acontece uma violência com a rapidez do relâmpago, e acabou.”

Os escritores sérios veem os gêneros literários de maneira diferente dos fãs (essa terrível mutação transgênica dos leitores, criada pela indústria das celebridades). 

Para um escritor, um gênero literário é uma caixa de ferramentas, um conjunto de fórmulas e truques à sua escolha. 

Para um fã, um gênero é um conjunto de rituais a serem cumpridos, um conjunto de dogmas a reverenciar, um conjunto de experiências gozosas que ele quer ver repetidas indefinidamente.




3848) Eu me lembro 4 (24.6.2015)



Eu me lembro da fonte luminosa da praça Clementino Procópio, de como ao anoitecer famílias inteiras ficavam em volta daquele tanque redondo vendo a coreografia das cores e dos jatos dágua.

Eu me lembro da bala Gasosa, que era redonda, enrolada num papel com uma “asa” apenas para segurar (havia os bombons com duas “asas” de papel enroladinho), tinha um gosto doce e ácido, e em vez de se dissolver diminuindo de tamanho uniformemente se desmanchava por dentro, erodindo e se esburacando como uma pedra-pomes.

Eu me lembro da girafa com três metros de altura que havia na calçada da loja A Girafa, e lembro que quando li o poema surrealista homônimo de Luís Buñuel tive a impressão de que ele a conhecia também.

Eu me lembro da lojinha das Edições de Ouro que abriu perto do Cine Capitólio, um quadradinho com paredes escuras cobertas de livros de bolso, onde eu passava às vezes uma hora, fichando mentalmente livro por livro antes de criar coragem para comprar um, que depois assinalava com as letras “E. O.” na borda inferior.

Eu me lembro da primeira vez em que viajei de carro de boi, com menos de dez anos, num sol de meio-dia, rumo ao sítio Tatu, dos parentes de minha mãe.

Eu me lembro do gosto das castanhas confeitadas que eram vendidas na porta do cinema, antes das matinais de 10 horas dos cinemas aos domingos.

Eu me lembro que eu colecionava uma revistinha chamadas Diversões Juvenis e as telhas do meu quarto eram quadradas, com veios de barro paralelos, então de noite apagavam-se as luzes e um reflexo distante me permitia olhar o teto e imaginar que era uma imensa estante com milhares de lombadas de uma coleção da minha revista preferida, todos diferentes.

Eu me lembro da gente passar noites inteiras jogando Ludo, a batalha daquelas quatro pecinhas coloridas (com quatro times, o verde, o azul, o vermelho e o amarelo) tentando dar a volta ao tabuleiro, sendo abatidas e recomeçando interminavelmente do ponto de partida.

Eu me lembro de quando eu ia para o colégio com um sapato que tinha sido do meu pai, e tinha que botar um pedaço de papelão por dentro porque a sola estava furada.

Eu me lembro da primeira vez em que tive um quarto só para mim, e pude arrumar no pé da parede, em cima de uma tábua, uma fila de livros que eram só meus.

Eu me lembro de como a gente cortava a faixa lateral de uma lata de goiabada, rebatia as bordas com martelo, botava um cabo de madeira, e pronto, era uma espada.

Eu me lembro de quando eu ia ver jogos do Treze nas cadeiras cativas e enfiava num buraquinho do cobogó um papel amassado, e no domingo seguinte a primeira coisa que eu fazia quando chegava era ir ver se o papel continuava lá.