sexta-feira, 5 de agosto de 2011

2628) Amy Winehouse (6.8.2011)



Janis Joplin preferia viver dez anos a mil km por hora do que mil anos a 10 km. A forma da frase muda, mas o espírito é esse, e tem sido glosado e parafraseado ao longo dos anos. Como todo adolescente daquela época tive uma paixonitezinha por ela, que era lindinha, rosada, charmosa, tinha um sorrisozinho de desmontar qualquer um, e cantava como quem tem três metros de altura e mil anos de idade. Somente quando li a biografia póstuma “Enterrada Viva” me toquei do quanto ela sofria, o quanto se achava gorda e feia, o quanto era autodestrutiva. E a frase dela que me ficou foi: “Ser cantora é passar duas horas fazendo sexo com 30 mil pessoas e depois ir dormir sozinha”.

Amy Winehouse foi a mais recente baixa nesse exército de mulheres que trazem um buraco negro na alma, sugando toda sua energia. A única maneira de não serem destruídas por ele é através da produção de um “surplus” de energia através da voz. Durante os minutos em que Amy Winehouse canta, autodestruição e autocriação se equilibram. Fora do palco, sua vida é uma tragédia de más escolhas, de fragilidade patética e de forças sem direção. Cantava bem, num inglês engrolado do qual continuo sem entender uma só palavra, a não ser aquele mantra de quem se afoga, “no, no, no”. Andei lendo alguns depoimentos sobre ela (jornalistas, fãs, etc.) e vi gente dizendo: “Faltou um cara que lhe desse segurança emocional...” ou algo assim.

O imenso charme das mulheres autodestrutivas! Elas mobilizam o Bom Samaritano que existe em todos nós, e também o Super Herói (“ninguém conseguiu, mas eu conseguirei!”). Vi dias atrás o filme “Destinos Ligados” de Rodrigo Garcia, onde aparecem duas autodestrutivas exemplares, interpretadas por Annette Bening (travada, neurótica, deprimida) e Naomi Watts (ressentida, promíscua, sem afetividade). Dois homens (fortes, estáveis, maduros), se apaixonam por elas. Por que?

São mulheres cujo charme é viverem a um fio de cabelo do suicídio, sabendo disso, e não ligando. O ser humano normal sabe que não aguentaria 24 horas nesse regime, e ela aguenta 365 dias por ano. O homem a vê caminhando na corda bamba, sem rede de proteção, com a tranquilidade dos bêbados. Nesse momento ninguém a supera em encanto e transcendência; ele seria capaz de dar a vida para que ela não caísse. Quando consegue fazer com que ela desça, tome um banho e engula um Engov, ela começa a ficar banal, previsível, igual a qualquer outra. O encanto das autodestrutivas é inseparável da autodestruição. É o seu momento carruagem, e salvá-la é transformá-la numa abóbora que usa avental de plástico e bobes no cabelo.

Claro que a mulher precisa ter algum charme para compensar tanto trabalho. Pode ser beleza física, pode ser carisma, pode ser caráter, pode ser uma voz de quem canta bem, pode ser mil coisas; mas por dentro de todo seu sofrimento suicida tem que haver alguma coisa de precioso que, aos olhos do homem que a observa à distância, valha a pena salvar.

2627) O relógio do gladiador (5.8.2011)



O relógio no pulso do gladiador romano, ou do cowboy, ou do cortesão do século 18, é apenas um exemplo pitoresco, entre muitos, do que chamamos “erro de continuidade”. Na verdade, os erros de continuidade se referem a outros erros, bem específicos, que têm a ver com a continuidade das informações apresentadas na tela. Os personagens que participam de uma cena precisam manter a mesma aparência, mesmo que os planos que compõem a cena tenham sido filmados, como muitas vezes acontece, com dias ou semanas de intervalo. Quando ocorre um erro desses, vemos dois personagens conversando numa mesa de bar e a cada vez que a câmara muda de ângulo os copos estão em posição diferente, mais cheios, mais vazios, ou o cabelo que estava penteado está revolto, ou vice-versa, ou o ator que estava de camisa azul-escura está de camisa preta.

O relógio no braço no gladiador, portanto, não é uma falha na continuidade de exibição de um detalhe legítimo, mas a presença indesejada de um elemento que não pertence à cena e entrou ali por descuido. Perguntaram a Akira Kurosawa por que motivo as cenas da batalha num dos seus filmes eram mostradas à distância com a câmara parada, sem aqueles movimentos panorâmicos que os diretores tanto apreciam. Ele disse que a única locação disponível para a batalha tinha de um lado os arranha-céus de uma cidade próxima e do outro um poço de petróleo: a câmara foi colocada na única posição possível entre essas duas coisas que não poderiam aparecer, já que o filme se passava na Idade Média.

Muito bem. Corte rápido para 2011, estou dando um entrevista à TV, na sala da minha casa. O cara vem com um microfonezinho de lapela, enfia por entre os botões da minha camisa, prende na gola com fita isolante preta. A camisa é clara. Ele pergunta se eu não tenho uma camisa preta. Pergunto por que. Ele diz que com a camisa preta seria melhor, pois o microfone não apareceria. Pergunto: Por que motivo o microfone não pode aparecer? Todo mundo não sabe que usamos microfones numa gravação? O entrevistador vem em socorro dele, e diz que o microfone não pode aparecer, porque fica feio, fica estranho, e “microfone aparecendo é como o relógio no braço do gladiador”.

Isso é uma amostra de como certos preceitos técnicos surgem cobertos de razão mas, ao passarem adiante de geração em geração, sem uma explicação devida, acabam se transformando num dogma que todo mundo aceita sem fazer a pergunta chave: “Por que motivo temos que fazer sempre assim?”. As pessoas têm um trabalho danado para esconder desnecessariamente um microfone de lapela que só é visível se o espectador estiver procurando por ele. Há um microfone que não pode aparecer: é aquele “girafa” que fica pendendo do alto sobre os atores, em filme de ficção, e que às vezes é pêgo pela câmara em pleno monólogo de Hamlet. Filme de ficção não pode mostrar o microfone, mas o pessoal parte disso para proibir que ele apareça numa mera entrevista.