quarta-feira, 9 de novembro de 2022

4881) Gal Costa, 1945-2022 (9.11.2022)




Pelejei para lembrar, hoje, quando foi que ouvi Gal pela primeira vez. Minha geração tem uma relação diferente com a obra dela e dos cantores de sua geração. Somos os ouvintes de primeira hora, os que presenciaram o surgimento, os que correram felizes à loja de discos quando alguém telefonou avisando: “Saiu o disco de Fulano de Tal!...” O primeiro de tantos.  Vamos correr, vamos comprar, vamos ouvir.
 
Isso me aconteceu com Chico Buarque, com Caetano, os Mutantes... Mas, Gal? Não me lembro. Hoje, nas redes sociais, vi muita gente saudosa dizendo que a ouviu pela primeira vez cantando “Gabriela”, ou “Vaca Profana”, ou outros de seus sucessos – que para mim são recentes. E outras pessoas dizem: “É como se a voz dela estivesse ali desde sempre.”



Na falta de um marco melhor, tenho que carimbar aqui o clássico álbum Tropicália, ou Panis et Circensis, o disco-manifesto do movimento tropicalista, uma porrada conceitual a começar pela capa (o grupo inteiro, fantasiado) e a contracapa (um pseudo-roteiro de cinema com cenas meio surrealistas). Gal era a moça de vestido estampado, cabelo ainda um tanto curto, sentada bem comportadinha.
 
Menos comportadinhas eram as músicas que ela cantava no disco.

“Baby” era aquele hino godardiano do encantamento pela sociedade de consumo, não pelo consumo, mas pela novidade, pelo abrir de portas para o lado mercador do Moderno. A fatalidade inelutável de ser jovem e de herdar todo um mundo.
 
“Mamãe Coragem” era a resposta brasileira ao “She’s Leaving Home” dos Beatles, o hino dos drop-outs, dos que fogem de casa, dos que decolam de mochila às costas rumo ao lado esmagador da modernidade. A cidade grande.


Ao lançar o primeiro disco, Gal já era uma pessoa de-casa. Uma daquelas garotas onde rebeldia e timidez se alimentam e se atenuam uma à outra. Doidona e discreta. Cortando caminho pelo meio da floresta da MPB, rebentando as cercas que separavam Jorge Ben, Jackson do Pandeiro, Roberto & Erasmo... Já cantava em inglês (suprema heresia para a época – era sinal de “entreguismo”).
 
Gal é uma dessas cantoras que se definem por voz e repertório, acima de tudo. Não que não tivesse grandes gestos de exuberância cênica ou de “atitude” fora do palco, mas foram voz e repertório que no oscilar dos momentos a mantiveram sempre naquilo que o pessoal chama de “a Série A” da música brasileira. Sem a obsessão dos recordes de vendagem e dos prêmios.
 
O talento da cantora (do cantor) é sua capacidade de dar uma dimensão física, sonora, a uma canção, que tecnicamente é apenas um conjunto de instruções escritas em algumas folhas de partitura e em uma página de versos datilografados.



A canção está ali? Sim, de certa forma. Ali estão as instruções para que a canção seja recriada mediante vozes e instrumentos. O que está no papel são as coordenadas genéticas, por assim dizer; o DNA daquela canção. Mas ela só existe quando está sendo cantada.
 
“Minha voz... minha vida...” Quantas são as canções de Gal, escritas por diferentes compositores, que reiteram essa importância da voz, do ato de cantar, do bom que é cantar, da importância de cantar e se fazer ouvir... E nisto tanto faz estar cantando para uma cidade inteira ou para uma só pessoa.
 
Cantar é existir com força. E com beleza – não a beleza formal e padronizada das formas estabelecidas, mas a beleza que assusta, que faz cambalear, a beleza que desconcerta de tão diferente, que desorienta e reorienta nossa maneira de sentir.




Tem uma verdade mitopoética nisso. Voz é sopro, hálito que dá vida ao barro humano. Sempre achei bonita essa imagem religiosa de um Deus que faz um boneco de barro mas precisa soprar nele para dar-lhe vida. Esse sopro (para mim) nunca é um bafo silencioso, e sim a emanação de hálito que acompanha a fala. Deus disse algo; talvez tenha cantarolado alguma coisa.
 
Quando Michelangelo terminou sua estátua de Moisés, achou-a tão perfeita que bateu-lhe com o martelo, ordenando que falasse. É a mesma ação: a voz do criador é que dá vida à criatura, e pede, em resposta, que ela fale, para comprovar que está viva.
 
Deve ser essa, então, a força estranha que leva a cantora a cantar. E nós que escrevemos canções somos meros mercúrios, meros transportadores de sons escritos, meros facilitadores e abridores-de-caminho para que o vento da voz possa passar e o barro da vida possa ouvir.
 
Eita, Gal... A voz ficou, e nós todos passaremos por ela, sabe-se lá até onde. Sendo assim, vamos viver. Vamos chorar, vamos lembrar, vamos cantar, vamos sorrir.