sábado, 21 de março de 2009

0901) Weltanschauung (4.2.2006)




(ilustração: Peter Cicariello)

Não, coleguinhas, não foi uma gralha tipográfica nem um vírus internético que interferiu no título. Esse troço aí em cima é uma palavra. Para ser mais preciso, uma palavra alemã que está na raiz da Filosofia mundial. 

Chamem-me de paleozóico, mas quando eu tinha vinte anos não líamos um suplemento literário ou uma crítica de cinema sem que esta encartolada palavra surgisse à porta do texto, bengala em punho, imponente como uma estátua de bronze. 

“Weltanschauung” era livremente traduzida por “visão do mundo”. Era algo que todo cineasta tinha que ter, todo poeta tinha que ter, e mesmo nós, imberbes cineclubistas e leitores, nos sentíamos obrigados a ter – e nos desesperávamos por temer que não tivéssemos. 

Vai ver que era por isso (pensava eu, coçando a cabeleira revolta que me valia ser chamado de “Cabeludo do Amazonas!” quando passava na Rodoviária) que as garotas não queriam saber da gente, e só saíam com aqueles caras ao volante dos Karman Ghias. Não dava mesmo para concorrer: eles tinham um Karman Ghia, e nós não tínhamos uma Weltanschauung.

Cada povo tem sua visão do mundo. Muitas vezes usa-se o termo Weltanschauung para se referir a um conjunto de crenças religiosas e de teorias políticas. Sem desprezar a importância dessas duas dimensões mentais, é preciso perceber que tanto os indivíduos quanto as sociedades parecem possuir uma espécie de gramática básica que impregna todo o seu modo de enxergar a realidade. 

Existem, por exemplo, culturas lineares, onde se tem como natural que os acontecimentos (desde a existência individual até a do Cosmos) sigam uma linha evolutiva, um percurso do tipo começo-meio-fim; e existem culturas cíclicas, onde se vê o mundo como um incessante renovar dos mesmos processos. 

Estas diferentes visões do mundo, na Cosmologia moderna, resultaram nas duas principais hipóteses sobre a criação do Universo: a do Big Bang, em que tudo teve um começo e deverá ter um fim (hipótese predominante hoje), e a do “steady state”, ou “estado estacionário”, em que o Universo tem uma existência permanente, mas se expande e se contrai como se estivesse pulsando.

Grandes artistas são aqueles cuja obra nos transmite a impressão de que eles têm uma visão do mundo própria, uma maneira profunda e peculiar de entender o que está à nossa volta. 

Essa visão pode ser lúgubre e pessimista como a de Samuel Beckett, pode ser lúdica e apaixonada pelo mundo como a de Julio Cortázar, irônica e introvertida como a de Machado de Assis, circense e exuberante como a de Fellini, analítica e sagaz como a de Brecht. 

Artistas assim não se impõem apenas pelo talento que demonstram possuir, mas pelo fato de que mesmo as suas obras menos bem acabadas, os seus momentos mais medíocres, estão todos no mesmo tom das suas melhores obras. A obra, como um todo, em seus melhores e piores momentos, expressa uma concepção pessoal sobre o mundo, a existência humana, e o papel que estamos desempenhando aqui.






0900) Cantando Ciência (3.2.2006)




A Fiocruz, através do Centro de Estudos do Museu da Vida, acaba de lançar em parceria com a editora Vieira & Lent o livro Cordel e Ciência – a Ciência em Versos Populares

(Para informações e encomendas, o email da editora é editora@vieiralent.com.br, e o telefone 21-2262-8314). 

A antologia tem 22 folhetos ligados ao tema, organizados em quatro partes: 

1) “Os Cientistas” (pequenas biografias de Hipócrates, Galileu, Kepler, Santos Dumont, etc.);

2) “No espaço” (folhetos com histórias de viagens espaciais); 

3) “Pela saúde” (folhetos como “O poder das plantas na cura das doenças”, “Cartilha do Diabético”, etc.); 

4) “Meio Ambiente” folhetos sobre a fauna e a flora brasileiras.

Os folhetos são assinados por cinco autores: Edmilson Santini, Eugênio Dantas de Medeiros, Gonçalo Ferreira da Silva, Manoel Monteiro, e Raimundo Santa Helena. 

Os organizadores são Ildeu de Castro Moreira (Instituto de Física da UFRJ), Luisa Massarani e Carla Almeida (Museu da Vida/Fiocruz). 

Na apresentação os organizadores destacam a importância de mostrar o modo como a poesia popular repassa informações e conceitos científicos para a população. Como sabem os leitores do cordel, é ponto de honra para o poeta-de-bancada repassar informações importantes para seu público, embora evidentemente seu ofício não se limite a esta função. 

Mas quando essa ação é necessária, o cordelista vai às enciclopédias, aos jornais, às bibliotecas, onde quer que estejam as informações; e de posse delas faz a transcodificação para o idioma das sextilhas, cuja cadência mnemônica é meio-caminho andado para o entendimento e a aceitação.

Existe uma expressão tradicional na Cantoria de Viola: “cantar ciência”. Não quer dizer propriamente cantar sobre assuntos científicos. É cantar (ou, no caso do Cordel, escrever) informações acumuladas sobre um assunto: História Sagrada, nomes de peixes, Mitologia Grega, jogos da Seleção, nomes de rios, listas de Presidentes... Cantar ciência é codificar informação em estado bruto, para que não se perca.

São os dois lados da poesia popular. A informação e a imaginação. A “ciência” e a poesia. 

Há um episódio célebre na Cantoria, do desafio entre Romano do Teixeira e Inácio da Catingueira, em 1870. Romano branco e culto; Inácio ex-escravo e analfabeto. Cantavam (reza a lenda) ao longo de três dias, e permaneciam empatados. Aí Romano disparou um verso enumerando deuses da mitologia, e Inácio encerrou o desafio, dizendo que não podia acompanhar o mestre em “cantar ciência”. 

Graciliano Ramos, em Viventes das Alagoas, mete o chanfalho em Romano, dizendo que era um pretensioso metido a intelectual, e afirmando que preferia a poesia pura de Inácio. 

Tem razão por um lado, mas o assunto não morre aí. Quando o talento se equivale, é o conhecimento que desequilibra. E já que não podemos conferir talento a ninguém... difundir informações não custa nada. E cantar Ciência é uma coisa tão bonita!









0899) Mistério no World Trade Center (2.2.2006)




(A CNN noticiou a queda do WTC7 quando ele ainda estava de pé)

Circula na Internet um documento (cheguei até lá através do utilíssimo saite Metafilter) que coloca novamente em discussão as numerosas histórias mal-contadas em torno dos atentados de 11 de setembro. 

O leitor há de lembrar aquela teoria de um francês, Thierry Meyssan, para quem o Pentágono jamais foi atingido por um avião naquele dia (e de fato, até hoje vi dezenas de fotos do Pentágono em chamas e parcialmente destruído, e não aparece nada de avião). 

Pois bem, agora surge uma outra série de dúvidas envolvendo outro prédio: o World Trade Center 7, um dos edifícios do complexo em volta das Torres, que desabou na tarde de 11 de setembro.

Vamos recapitular. 

O WTC era na verdade um complexo de sete edifícios numerados, sendo que as Torres Gêmeas eram WTC1 e WTC2. O 3 era o Marriott Hotel, o 4 e o 5 eram os edifícios Plaza (Sudeste e Nordeste), o 6 era a U. S. Custom House, de oito andares, e o 7 era o chamado “Anexo 7”, de 47 andares. 

De todo este complexo, apenas três edifícios desmoronaram totalmente: a Torre Sul desabou às 10:05, a Torre Norte às 10:28, e o WTC7 desabou sete horas depois. Por que? 

Ele não foi atingido por aviões. Era sustentado por 57 colunas dando volta ao seu perímetro, e por mais 24 colunas situadas no “miolo”. Delas, apenas doze e três, respectivamente, sofreram algum dano. E no entando, sete horas depois da queda das torres gêmeas, o WTC7 veio abaixo em sete segundos, e de forma retilínea, vertical.

Segundo o estudo de Steven V. Jones, da Brigham Young University (que pode ser integralmente lido aqui: http://www.physics.byu.edu/research/energy/htm7.html) as aparências sugerem que o edifício foi implodido por cargas de explosivos. Há longas análises técnicas, numerosas fotos, e alguns vídeos que dão o que pensar (pequenas erupções de fumaça que de fato parecem cargas explosivas sendo acionadas durante o desmoronamento). 

Jones sugere que o mesmo processo pode ter sido posto em prática nas Torres Gêmeas, sob o disfarce do incêndio provocado pelo choque dos aviões. Outro indício é a presença de metal derretido, ainda líquido, nas ruínas no prédio, vários dias depois da tragédia; algo inexplicável, se atribuirmos o desmoronamento ao abalo produzido pela queda das duas torres.

Uma das questões levantadas por Jones é: Por que motivo terroristas tentariam fazer os prédios caírem de maneira tão simétrica, vertical, poupando os prédios em volta? E como teriam acesso prévio para a colocação de dezenas de cargas de explosivos? Jones exige a liberação de 6.899 fotos e 6.977 segmentos de vídeo que o National Institute of Standards and Technology e o FBI detêm. 

Não estou dizendo aqui que foram os próprios americanos que derrubaram seus prédios. A humanidade já produziu muitas barbaridades mas não creio que um dia chegue a esse ponto. O que digo é que em matéria de história mal-contada por um governo essa está batendo todos os recordes.






0898) Ainda o artista japonês (1.2.2006)


(Instalação de Yuri Firmeza)

Autor da “pegadinha” em que propôs ao Museu de Arte Contemporânea de Fortaleza uma exposição de um artista japonês fictício, o artista cearense Yuri Firmeza foi até leal com a imprensa, porque o nome do artista (Souzousareta Geijutsuka ) pode ser traduzido por “artista inventado”, e o nome de sua exposição, “Geijitsu Kakuu”, por “arte e ficção”. Seu artifício mostra o terreno escorregadio onde artistas e críticos caminham hoje em dia. É aquela história: no começo é fácil mentir, porque todo mundo acredita em tudo; daqui a pouco será impossível dizer a verdade, porque ninguém acredita mais em nada. Se o propósito era mostrar a credulidade da imprensa, deu certo, mas talvez às custas da credibilidade do próprio artista.

Não me refiro apenas ao Firmeza e à imprensa do Ceará. Existe hoje em dia um movimento (informal, sem centro, sem liderança, gerado no boca-a-boca e na contaminação recíproca de inquietações e interesses) no sentido de supervalorizar a importância do Discurso; e um movimento contrário, mas de dinâmica muito parecida, no sentido de exagerar essa importância até o ridículo. No primeiro caso, temos um Cordão Azul dos artistas da linha Marcel Duchamp, que se afirmam pela ousadia, originalidade ou complexidade do gesto teórico que define suas obras. Estas, materialmente, podem nem ser grande coisa: uma roda de bicicleta, um punhado de tijolos, uma coleção de cinzeiros furtados, um quadro lambuzado de merda... “Isto é Arte?”, espanta-se a platéia. E o Discurso responde-lhe que sim, e responde tão bem que eu, pelo menos, saio convencido em metade dos casos.

Na outra metade não me convenço coisíssima nenhuma, e dou razão ao Cordão Encarnado, para quem o Discurso é uma forma de exercício do poder, e precisa ser desmascarado, exposto, carnavalizado, virado pelo avesso. A “pegadinha” urdida por Firmeza não teve como finalidade a criação de uma obra, mas a geração de uma turbulência no Discurso, entendido aqui como um feixe de discursos menores: a crítica especializada, os critérios para aprovação de projetos, o mercado-de-câmbio conceitual entre diferentes culturas (3o. Mundo e 1o. Mundo), e a própria reiteração de clichês do discurso artístico.

O perigo, neste último caso, é que como grande parte da Arte de hoje repousa unicamente no Discurso (porque a rigor nada a filia à Arte tradicional: pintura, desenho, artesanato, técnica, etc.) corre-se o risco jogar fora o bebê junto com a água suja da bacia. Quando o físico Alan Sokal produziu uma sátira aos “papers” acadêmicos e a publicou numa revista especializada, foi como se sugerisse que o mundo inteiro estava falsificando cheques, inclusive quem tinha fundos. Toda obra de arte é um cheque. Seu valor está na assinatura, e na crença de que o signatário do cheque tem fundos no “Banco Universal das Idéias”. Quando mostramos o quanto é fácil falsificar um cheque, permanece intocada a questão de que alguns têm saldo nesse Banco, e outros não.

0897) O mistério do artista japonês (31.1.2006)


(Yuri Firmeza)

Deu no “Globo” no último dia 23, mas eu já sabia, porque sou leitor da coluna de Ricardo Kelmer (http://www.ricardokelmer.net/). O Museu de Arte Contemporânea de Fortaleza anunciou no Centro Cultural Dragão do Mar uma exibição de obras do artista japonês Souzousareta Geijutsuka, com fotos, instalações, e a proposta de discutir “a harmonia entre a natureza que nasce e morre, empregando equipamentos tecnológicos, para abordar a discussão em torno da fragilidade da vida e suas conseqüentes contradições”. O MAC forneceu à imprensa o email do artista, que concedeu uma entrevista de página inteira a um jornal local. Dias depois, bomba! O artista não existia, era uma brincadeira (ou, mais contemporaneamente, um artifício mimético expondo a fratura metalinguística do capitalismo virtual em que a própria noção de Arte se desmancha no ar) do artista cearense Yuri Firmeza, que não se perca pelo nome.

O Museu coçou a cabeça mas, precavido, admitiu que, sendo a Arte de hoje o que é, aquela era uma proposta saudável e instigante. Quem não gostou foi a imprensa, que engoliu a isca com anzol, caniço e tudo, mas se engasgou com o pescador. Saíram protestos nos jornais, o artista foi chamado de “moleque”, etc. (Cobertura completa em: http://www.dragaodomar.org.br/macce/galerias/2006_01/invasor/index_invasor.htm.)

Olha, qualquer jornalista corre o risco de cair numa dessas. Eu mesmo já caí. Anos atrás, li no “Letras & Artes” daqui do Rio uma entrevista com um fotógrafo alemão chamado Gedencher, que afirmava deixar placas fotográficas expostas ao relento para captar relâmpagos em noites de tempestade. Achei fascinante a idéia, e já estava indo procurar álbuns dele na Livraria Leonardo da Vinci quando recebi um telefonema do autor da entrevista, o escritor cearense Carlos Emílio Corrêa Lima, o qual me segredou que Gedencher não existia, e aquilo tudo era uma pegadinha urdida por ele (o termo que usou foi “metaficção”).

Parece que é coisa de cearense, mas não é. O erudito e respeitável Adolfo Bioy Casares, depois de ler uma resenha de seu amigo Jorge Luís Borges sobre um livro indiano publicado em Londres ( “A Aproximação a Almotásim”), encomendou um exemplar à editora, e só depois Borges confessou tratar-se de metaficção.

A esta altura, já estou me perguntando se o próprio Yuri Firmeza não será um heterônimo de Carlos Emílio. Depois que Marcel Duchamp impingiu um mictório como obra de arte e Borges inventou a falsa resenha, houve uma brusca redução de espaço entre Real e Simulacro, entre Ficção e Não-Ficção, e assim por diante. No caso das artes plásticas, no século 20 houve um enorme esforço coletivo para reduzi-las a “gestos conceituais”, esvaziando-as de tudo que lembre artesanato, trabalho manual, técnica, execução. Ser artista é tentar inventar uma ruptura nova, o que, aliás, só funciona onde essa ruptura nunca tinha sido tentada, ou o fora sem deixar cicatrizes. Parece que em Fortaleza a marca vai ficar.