sábado, 12 de novembro de 2022

4882) Miniconto também é conto (12.11.2022)




Volta e meia estou retornando, aqui, ao tema do “Microconto” ou “Miniconto” – o conto curtíssimo. Esse conceito se desdobra em inúmeras fórmulas relativas a sua extensão, mas no frigir dos ovos todos têm esse aspecto essencial em comum: são curtíssimos.
 
(O conceito de “curtíssimo”, é claro, é tão subjetivo quanto o de “bom”. Cada pessoa traça sua linha-limite onde lhe convém.)
 
Existem contos de menos de 100 palavras; contos de 100 caracteres; contos de 6 palavras; contos de 6 linhas... Qualquer fórmula nova é geralmente bem vinda. Note-se que muitos desses textos são produzidos num regime de desafio – revistas, jornais, websaites etc. lançam a provocação, e os leitores chovem com suas respostas. É um teste, de fato. Um teste de contenção, de síntese, de foco.
 
Não há, portanto, muita necessidade de “definir o que é mini/microconto”, até porque ninguém tem uma definição científica do que é conto. Digamos, então, que um conto é uma história curta, e que um mini/microconto é uma história curtíssima. O resto é como nas Casas José Araújo: “quem manda é o freguês”.


Quem lida com esse tipo de texto derrapa facilmente na comodidade de achar que basta escrever uma frase para que ela seja automaticamente um miniconto. Quer ver? Vou inventar agora, de improviso, três minicontos desse tipo.
 
1)      Abriu a janela e constatou, em pânico, que o Brasil existia mesmo.
2)      Pousaram no asteróide, e extraíram minérios valiosos até morrerem de fome.
3)      Reencontrar você só serve para confirmar minhas suspeitas.
 
Tentarei teorizar estes exemplos banais, mas característicos.
 
No primeiro, temos apenas a descrição de uma ação física e uma reação psicológica, um fato com duração de alguns segundos (a “abrição” da janela). Não há enredo, história, narrativa – há um flash único. Isto ficou mais parecido  com um cartum de Jaguar do que com um filme. Eu posso até chamar isso de miniconto, mas sem muito entusiasmo; para mim, chamá-lo de “cartum verbal” ou de mera piada me parece mais adequado.
 
Por que? Porque, mais do que no conto comum, no miniconto o desafio é contar uma história. Frase, qualquer um escreve. Contar uma história numa frase é outro patamar. É este o grande desafio, a rede na quadra de tênis. Sem ela não tem graça.
 
E vamos ao exemplo 2. Aqui, sim. Por bobo que seja, há um fio de história, há um mínimo de narrativa, uma sequência temporal de três fatos em que cada um é resultado dos anteriores, o que é um requisito básico de uma narrativa literária. O texto ilustra concretamente (e isto foi involuntário de minha parte, foi instintivo) a famosa estrutura “começo – meio – fim”.
 
Em poucas frases ficou clara a ambientação, o gênero literário (ficção científica), tudo sem muito esforço. Há uma leve tintura de final-surpresa, de desfecho imprevisto, o que não é fácil de obter em tão curto espaço – é a famosa arte de “dar um drible em cima de um lenço”. Com alguma boa vontade, posso considerar isso um miniconto.
 
O terceiro exemplo não é um conto nem aqui nem na China. (Claro que qualquer pessoa pode chamá-lo de conto; também pode chamar de avestruz, de sanfona, do escambau. “Chamar” é grátis.) É uma frase apenas, uma reflexão silenciosa, um fragmento de idéia. Relendo agora, me ocorre que seria um pouquinho mais narrativo se fosse em forma de fala, de diálogo:
 
-- Olha, reencontrar você só serve para confirmar minhas suspeitas...
 
Isto nos permitiria fantasiar visualmente o reencontro e a conversa entre dois ex-cônjuges, dois ex-sócios, etc. 
 
Já ministrei oficinas sobre “O Conto Narrativo” como uma forma de enfatizar a existência, na ficção, de uma gradação que tem num extremo a Narração Pura (se é que isto existe) e no extremo oposto a Reflexão Pura (idem). Toda (!) narrativa mistura as duas coisas: a Narração, ou os fatos físicos que acontecem, e a Reflexão, os comentários íntimos dos personagens (ou do autor).


(Clarice, por Bertoni)
 

 
Clarice Lispector é extraordinária contista pela sua habilidade em inventar e misturar todas as nuances possíveis desses dois elementos, em praticamente tudo que escreve. Falei “habilidade” mas o reverso obrigatório dessa moeda é “espontaneidade”, que ela usa em igual medida. Acho que ela não escreve desse jeito porque estudou as variadas correntes teóricas; escreve (acredito eu) porque é desse jeito que ela pensa.
 
Não é uma autora intelectual, dada a planejar estruturas complexas. Acho que era uma intuitiva que lia muito. O que produz lhe sai num jorro de imprevistos, de repentes, de infrações às regras e geralmente levamos algum tempo para admitir que uma parte da cabeça dela mantinha tudo marromeno no lugar certo, de forma satisfatória, e enriquecedora, para o leitor.
 
Tudo isso constitui, principalmente quando reduzido às dimensões exíguas do mini e do micro, uma arte de malabarismo, difícil de praticar em duas ou três páginas, e ainda mais em duas ou três linhas – ou em qualquer outra minifórmula.


Um levantamento interessante e útil foi feito por Carlos Willian Leite na Revista Bula:
 
https://www.revistabula.com/1787-de-anton-tchekhov-a-franz-kafka-30-microcontos-de-ate-100-caracteres/
 
Ele montou uma pequena antologia comentada de microcontos, e aconselho uma olhada. De minha parte, comentarei alguns que me parecem esclarecedores.
 
a)      Tempo. Inesperadamente, inventei uma máquina do
(Alan Moore)
 
Este é um clássico. O autor sugere um engraçado loop acidental com grande economia de meios. Há inúmeras tirinhas de HQ e cartuns usando truques parecidos.
 
 
b)      Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida.
(Anton Tchecov)
 
Eu já conhecia este, mas não como microconto, e sim como a semente de um desafio lançado pelo autor russo: desenvolver essa idéia de forma plausível. Pode não parecer, mas grandes contos da história da literatura surgiram de provocações desse tipo entre amigos escritores: “Duvido você ser capaz de escrever um conto onde acontece, etc etc etc”.



 
c)       A mulher que amei se transformou em fantasma. Eu sou o lugar das aparições.
(Juan José Arreola)
 
O mexicano Arreola é um dos meus contistas-obscuros favoritos; aconselho sua coletânea clássica Confabulário Total, publicada no Brasil tempos atrás (há edições pela Edinova e pela Arte & Letra).  Seu conto é curioso porque se encrava, sem muito esforço, naquilo que é chamado “o fantástico todoroviano”, a partir das teorizações de Tzvetan Todorov: uma história que pode ser classificada tanto como um evento sobrenatural quanto como um evento meramente psicológico.
 
 
d)      Pegou o chapéu, embrulhou o sol, então nunca mais amanheceu.
(Menalton Braff)
 
Existe narração aí. Um gesto corriqueiro que redunda num fato fantástico, descomunal, contado com a singeleza de um Ray Bradbury ou Mario Quintava. (Ou então, dado o caráter fortemente visual deste exemplo, como um quadro de Marc Chagall ou um cartum de Juarez Machado.)
 
 
 
e)      Eu ainda faço café para dois.
(Zak Nelson)
 
Para ninguém pensar que eu sou radical, eis um exemplo onde o vetor narrativo é mínimo, tudo se reduz a um comentário singelo, mas o modo contido e reflexivo com que ele é feito nos induz a supor um passado, supor um acontecimento qualquer (uma morte? uma separação?) e isto estica, de certa forma, o elástico narrativo.
 
“Narração” é isso: um elástico que se estica, cuja tensão aumenta à medida que o texto avança, e num texto literário a certa altura estamos lidando com vários “elásticos” simultâneos, e é da tensão e relaxamento de cada um deles que advém o prazer da leitura.