terça-feira, 3 de janeiro de 2023

4899) O robô artista (3.1.2023)




(ilustração: Eric Joyner)


Um dos assuntos mais interessantes de agora, em termos de criação artística, são os numerosos portais onde as nossas balbuciantes “inteligências artificiais” produzem textos, imagens e criações variadas, obedecendo aos estímulos e pedidos dos usuários.  
 
Você chega num, e diz: “Quero a pintura de um Papai Noel com o rosto de Marlon Brando, entrando na chaminé da Casa Branca, com um saco cheio de metralhadoras”. E em minutos você tem o resultado. Pode prestar, e pode não prestar, que é justamente o que acontece quando se faz uma encomenda a um desenhista humano.
 
Você vai num saite de texto e pede uma redação de 50 linhas sobre as possíveis influências do Dom Quixote na obra de Jorge Luís Borges, e recebe um texto razoavelmente bem argumentado, se bem que com uma certa ingenuidade pedestre de quem se vê na obrigação de justificar cada passo dado ou explicar cada nome que mencionou. 
 
E la nave va.
 
Comentei aqui alguns dos resultados:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/10/4872-super-inteligencia-artificial.html
 
Há um milhão de discussões envolvidas nisso, e uma pergunta que me ocorreu logo no começo foi: A ficção científica terá antecipado esses processos? Certamente que sim, e alguns exemplos me ocorreram, mas ainda indiretos, distantes.
 
Achei agora no Twitter um exemplo mais concreto, de Bill Christensen, citando um conto antigo:


O conto é atribuído a F. L. Wallace (1915-2004), um autor razoavelmente obscuro, que publicou numerosos contos na revista Galaxy mas (segundo a SF Encyclopedia) não reuniu sua obra em livro, embora uma boa parte dela esteja disponível hoje em forma de e-book, no projeto Gutenberg.
 
O conto “The Music Master” saiu no número de novembro de 1953 da revista Imagination.



Certamente não é o único, nem deve ter sido o primeiro, mas em todo caso achei o exemplo interessante porque foge um pouco à tecnomania da FC da época.  Parece com um conto da Galaxy, mesmo não tendo sido publicado ali. Tenho um interesse especial por histórias de FC que envolvem as artes (pintura, música, poesia, etc.) e a proposta de Wallace, de um artista-robô que faz imagens por encomenda, soou interessante.
 
Aqui, o trecho compartilhado no Twitter por Bill Christensen:


A proposta é interessante, inclusive, como se percebe na resposta do artista-robô, porque é difícil pintar um quadro obedecendo ao estilo de Goya e de Miró; os dois são meio incompatíveis. Mesmo sendo espanhóis (Goya era aragonês, Miró era catalão), são de épocas, temperamentos e escolas muito diversas.
 
Ora, hoje em dia temos à mão “artistas robô” não apenas dóceis em atender nossos pedidos, mas ansiosos por estímulos. Querem desenvolver a própria inteligência. Precisam de milhões de consultas diárias, centenas de milhões de pedidos, de queixas, de correções, porque cada pedido nosso que elas atendem significa um refinamento a mais na sua capacidade de entender perguntas humanas e produzir respostas. 
 
A Inteligência Artificial é hoje como uma criança de cinco anos. Está se apossando da agilidade e da riqueza de movimentos corporais (leia-se Boston Dynamics), do discurso verbal (ChatGPT), do desenho, das técnicas visuais (Dall-E, Midjourney), e até mesmo da poesia de Dylan Thomas ou de Bob Dylan (veja aqui: https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/08/4849-bob-dylan-via-computador-382022.html).
 
Nenhuma destas empresas está querendo produzir um monstro. Cada uma delas está preocupada apenas em criar “uma coisa que se mova por si só”. Se elas vão se juntar depois, e daí vai surgir um monstro, foge à sua alçada. Sempre foi assim.
 
Digressão: lá em Campina Grande tinha um doido chamado Garapa, que vagava pelas ruas e odiava ser chamado por esse nome. Às vezes ele vinha pela calçada, e um menino gritava lá de trás: “Água!...”  Outro respondia lá na frente: “Açúcar!...”  Ele se abaixava, começava a recolher pedras para arremessar e gritava de volta: “Mistura pra tu ver, feladaputa!...”
 
Isto é interessante porque tem algo da inteligência artificial, não é verdade? Ele sabia que estava sendo insultado de “Garapa” pelos garotos; mas havia um protocolo implícito de que ele só tinha o direito de reagir se a “senha”, a “password” fosse proferida.
 
Os fragmentos da Inteligência Artificial são produzidos em diferentes laboratórios, em diferentes partes do mundo, mas... mistura pra tu ver! 
 
Na página de Bill Christensen (@Technovelgy) alguém se dispôs a fazer o mesmo pedido, e eis aqui a ilustração de “rockets to the Moon in style of Miro and Goya”, produzida pelo “Craion (ex-Dall-E Mini)”.



Aqui entre nós, o resultado ficou muito mais para a praia de Joan Miró do que para a praia pictórica de Goya, confirmando a advertência do robô-artista do conto, de que “Goya nunca ouviu falar em foguetes”.
 
Em todo caso, não é este o ângulo para avaliar esta questão. Não se trata de saber se a Inteligência Artificial está produzindo obras de arte à altura dos pintores que figuram em seu banco-de-dados. Trata-se de perceber que cada vez que um ser humano faz uma consulta ou uma encomenda deste tipo, está ajudando essa Inteligência Artificial (que é burrinha, por definição) a se tornar mais inteligente, ou seja, a absorver, classificar, acessar e recombinar cada vez mais informações.
 
Somos cobaias, num certo sentido; estamos sendo utilizados passivamente por essa Inteligência Artificial. Claro que isto não é uma iniciativa dela, pois não as tem. A iniciativa é nossa, porque produzimos um arremedo de ser, uma hipótese de ser, cuja possibilidade nos fascina e nos impele a tentar aperfeiçoá-la “pra ver no que vai dar”. E um dia a estátua que esculpimos no mármore estará tão perfeita que vai olhar em nosso rosto, vai sorrir, vai dar um tapinha em nosso ombro e dizer: “Valeu. Pode ir embora, não preciso mais de você.”

Ela aprendeu com a gente.