terça-feira, 8 de agosto de 2017

4259) Os olhos culpados (8.8.2017)



As narrativas curtas que chamamos variadamente de fábula, apólogo, lenda, caso, etc., têm uma economia narrativa própria que não é a mesma do conto literário.

É como se fosse uma história mais longa que foi perdendo adornos e adereços ao longo do caminho através do tempo, e ficou reduzida somente ao essencial.

A narrativa abaixo está na Antologia da Literatura Fantástica (org. Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo, Cosac Naify, 2013, trad. Josely Vianna Baptista). Ela é atribuída a Ahmed Ech Chiruani, autor talvez inventado, porque o Google não parece saber sobre ele mais do que eu sei.


OS OLHOS CULPADOS
Ahmed Ech Chiruani

Contam que um homem comprou uma moça por quatro mil denários. Um dia olhou para ela e começou a chorar. A moça lhe perguntou por que estava chorando; ele respondeu:
– Tens olhos tão belos que me esqueci de adorar a Deus.
Quando ficou sozinha, a moça arrancou os próprios olhos. Ao vê-la nesse estado, o homem ficou aflito e disse:
– Por que te maltrataste assim? Diminuíste teu valor.
Ela respondeu:
– Não quero que haja nada em mim que te afaste de adorar a Deus.
De noite, o homem ouviu em sonho uma voz que dizia: “A moça diminuiu seu valor para ti, mas o aumentou para nós e a tiramos de ti.”  Ao acordar, encontrou quatro mil denários sob o travesseiro. A moça estava morta.


Primeiro que tudo, olha que maneira mais eficiente de começar uma história:


1.    Contam que um homem comprou uma moça por quatro mil denários.

“Contam”, abrindo uma narrativa, equivale, estruturalmente falando, a “era uma vez”. Joga os 100% da história para o território do mítico, do oral, do lendário, do ouvi-dizer.

Algo parecido ocorre com o uso da moeda “denário”: era uma moeda romana (o Google se redime informando-me que essa moeda valia um dia de salário de um trabalhador), portanto historicamente datada. Mas isso é a moeda, não a palavra: a palavra, como símbolo de valor monetário, deu o francês “denier”, o árabe “dinar” e o português “dinheiro”. Estamos, portanto, em pleno território do arquétipo.

E essa beleza de construção: “comprou uma moça”. O autor não diz que era uma escrava. Não precisa. Comprar escravos nesse mundo é como comprar um cavalo ou um passarinho. O homem comprou uma moça – e não era uma moça qualquer, porque ele pagou o equivalente a quatro mil dias de trabalho de um trabalhador comum.

Digamos que, com nosso salário mínimo em torno de 900,00 reais, um dia de trabalho valha em torno de 30 reais: a moça custou 120 mil reais. Não era uma moça qualquer. Se aparecesse numa revista não seria em Baratas, mas em Caras.


2.    Um dia olhou para ela e começou a chorar.

É típico dessas narrativas darem saltos bruscos de frase em frase, sem muitas explicações. Quem era o homem? Tinha esposa(s), filhos? Que papel a moça foi desempenhar junto a ele: empregada doméstica, serva sexual, o quê? Não sabemos. Nesta segunda frase o autor pula direto para o fato inusitado que desencadeia o desfecho. A frase 1 é introdução, da 2 em diante tudo é resultado.


3. A moça lhe perguntou por que estava chorando.

Existem trinta mil livros cuja história começa com alguém chorando e alguém perguntando por quê. É sempre uma boa maneira de começar, se não um livro inteiro, pelo menos um capítulo. “Certa tarde, ao descer a escadaria que levava ao salão, Fulana ouviu ruídos abafados. Aproximando-se, viu que Sicrano estava sentado numa saleta lateral, com o rosto entre as mãos, os ombros sacudidos por soluços...”  Sempre funciona.


4. Ele respondeu: – Tens olhos tão belos que me esqueci de adorar a Deus.

O amor, seja físico, seja platônico, nos distrai das paixões abstratas, entre as quais pensar em Deus não é uma de se jogar fora. Que o diga Nelson Gonçalves, neste bolero (de David Nasser e Herivelto Martins) que parece adaptado do conto de Ahmed Ech Chiruani:

“Eu amanheço pensando em ti
Eu anoiteço pensando em ti
Eu não te esqueço, é dia e noite pensando em ti...      
Eu vejo a vida pela luz dos olhos teus...
Me deixa ao menos, por favor, pensar em Deus.”

Parar de pensar em Deus parece uma tragédia, principalmente parar de pensar em Deus por causa de uma curvilínea comprada em moeda sonante. Isto nos prepara (mas não totalmente) para o próximo ziguezague da narrativa.


5. Quando ficou sozinha, a moça arrancou os próprios olhos.

Nesse passado milenar e machista, a mulher sente que está trazendo turbulência espiritual para a vida do seu amo e senhor, e decide punir a si própria. E deixa para fazê-lo quando fica sozinha, para que ninguém tente impedi-la. Em contos assim não há meio termo. As pessoas só tomam decisões radicais.


6. Ao vê-la nesse estado, o homem ficou aflito e disse:
– Por que te maltrataste assim? Diminuíste teu valor.

Esta fala é de um ambiguidade fascinante. Ele poderia ter dito: “-- Nunca mais verás as coisas belas da vida... / -- Não devias ter te maltratado tanto... / -- Perdi os olhos que tanto adorava / ...” – enfim, poderia ter tido mil reações de horror ou de dó. Mas não: “Diminuíste o teu valor (de mercado). Ninguém a quem eu queira te vender (porque vou te vender, já que não tens mais aquilo que me encantava) vai me pagar o preço que investi em ti.”

Ressalva: Existe a possibilidade, caso de fato seja um conto oriental, de algo ter se modificado na tradução. A frase no original podia ser algo como “perdeste algo valioso”, ou “diminuíste a beleza que te valorizava”... Muitas vezes a tradução, mesmo tentando ser fiel, impõe um sentido que o original não tinha.


7. Ela respondeu:
– Não quero que haja nada em mim que te afaste de adorar a Deus.

É um desses diálogos de que o cinema está cheio, o das mulheres altruístas que se sacrificam para que o homem amado possa, sei lá, casar com uma princesa sem que ela, uma namorada plebéia, o atrapalhe, ou separam-se do amado que vai se candidatar a um cargo público e não pode mostrar o mundo uma amante negra... Todos os mil sacrifícios feitos em nome do amor. Mesmo que se trate (no presente caso) do amor impossível de uma mulher pelo homem que a comprou.


8. De noite, o homem ouviu em sonho uma voz que dizia: “A moça diminuiu seu valor para ti, mas o aumentou para nós e a tiramos de ti.” 

O sonho, nesses contos orientais, é quase sinônimo da voz de Deus (em contos ocidentais modernos, é a voz do Inconsciente Freudiano).  Portanto, é Deus, o Deus em quem ele deixara de pensar, que se comove com o sacrifício da moça. (Veja-se também o plural divino, que pode ser visto como o plural majestático dos reis, ou como uma insinuação de um Deus múltiplo.)

Deus percebe que ela sacrificou os próprios olhos não somente pelo homem, para que pudesse pensar em Deus, mas também por Deus, para que pudesse ser adorado em paz. Deus agradece à moça o gesto elegante de ter se retirado da disputa e deixado caminho livre para Ele no coração do homem.


9. Ao acordar, encontrou quatro mil denários sob o travesseiro. A moça estava morta.

Um desfecho perfeito, em duas frases tão indissolúveis uma da outra quanto as duas faces da Lua. Deus leva a moça e devolve o dinheiro que o homem, por um instante, julgou ter perdido. E, ironicamente, a história termina como começou: a moça sendo novamente comprada por quatro mil denários.

A leitura do ponto de vista feminino nos mostra a tragédia de uma moça vendida como escrava, que acaba assediada pelo patrão por sua beleza, assusta-se, mutila-se para escapar-lhe, e acaba morrendo. A moça é quem menos ganha com tudo que aconteceu.

O homem compra uma escrava, deixa-se levar por uma paixão carnal, perde a escrava, recupera o dinheiro. E ganhou o que com tudo isto? Ganhou a experiência; ganhou um fato extraordinário em sua vida; ganhou (talvez o conto seja autobiográfico, e o homem da história seja Ahmed Ech Chiruani) uma história para contar.