sexta-feira, 27 de julho de 2012

2935) Surrealismo católico (28.7.2012)





(Jorge de Lima e Murilo Mendes)



Em matéria de oxímoro, ou de paradoxo, o título deste artigo merece um prêmio.  Quem tiver alguma familiaridade com o movimento surrealista que surgiu em Paris nos anos 1920 deve lembrar o seu espírito violentamente anti-clerical.  Os Surrealistas, que planejavam dar poderes totais à mente humana, livre de todos os tipos de censura e de coerção, certamente combatiam a igreja da época, um mecanismo de lavagem cerebral só comparável ao dos partidos políticos.  O cinema de Luís Buñuel, com suas provocações permanentes à igreja (L’Âge d’Or, Viridiana, etc.) levou para as grandes platéias o que estava entranhado na poesia de André Breton ou de Benjamin Péret.  Creio que foi Péret quem escreveu certa vez: “Andando pela avenida tal, cruzamos com dois padres que vinham em sentido contrário ao nosso. Diante de tal provocação, não tivemos escolha senão agredi-los”.

É engraçado, porque os dois mais famosos e respeitados poetas surrealistas brasileiros são dois cristãos que soam bastante sinceros, até pelas crises e dúvidas que os acometem (cristão que nunca tem dúvidas terríveis é porque não entendeu o Cristianismo).  Jorge de Lima (1895-1953) e Murilo Mendes (1901-1975) jamais ousariam, como Péret, dar uns cascudos no vigário.  Os dois eram amigos, foram contemporâneos de geração dos surrealistas franceses, mas sua poesia foi (ou veio) em outra direção.  Jorge de Lima publicou em 1952 seu poema-livro Invenção de Orfeu, que na maior parte do tempo é de uma imagética surrealista como poucos brasileiros conseguiram, e numa estrutura épica que poucos surrealistas franceses tentaram, se é que algum tentou.  Murilo Mendes foi também picado por esses dois mosquitos concorrentes, a religião católica e a revolução surrealista.  São dois softwares que parecem se inviabilizar mutuamente, mas nestes dois poetas o surrealismo serviu menos como uma visão do mundo e mais como uma maneira de tratar a linguagem, de manipular a linguagem através de um certo desregramento imaginativo, alimentado pelo inconsciente e logo mantido sob controle. 

Nem sou grande conhecedor dos dois; só tenho de Jorge a Invenção de Orfeu, e de Murilo a antologia O Menino Experimental. Que coisa fantástica, pensa este leitor adolescente de Breton e Buñuel. Religião, política, sexo, violência, drogas, filosofia, rock-and-roll, nenhum desses poderes domina nossa mente se for contrabalançado por todos esses outros. Os católicos têm inconsciente, os católicos também se apaixonam e enlouquecem, os católicos dizem: “O menino experimental ateia fogo ao santuário para testar a competência dos bombeiros”.

2934) "O Torreão" (27.7.2012)



Este romance de Jennifer Egan, lançado agora pela Ed. Intrínseca, tem uma estrutura narrativa inesperada que só vai se revelando aos poucos, misturando duas histórias que soam incrivelmente reais embora uma dela possa ser fictícia.  Em princípio, estamos acompanhando a viagem de Danny King, um “hipster” de Manhattan, a um país da Europa Central, para onde seu primo Howard o convidou com a proposta de trabalhar na restauração de um antigo castelo e transformá-lo num hotel de luxo. Danny e Howard são amigos de infância, mas na adolescência houve um episódio traumático entre os dois, que enche Danny de culpa e de incerteza, porque ele não sabe ao certo as intenções do primo (que agora é riquíssimo, e que ele não vê há muitos anos) ao chamá-lo para aquele lugar remoto.

Esta história vai se misturando aos poucos com a história de um presidiário nos EUA, Ray, que está fazendo uma oficina de escrita criativa na cadeia e começa a botar uns olhos compridos na direção da professora, Holly. Não vou esmiuçar aqui o modo como essas duas histórias se misturam, porque este é um dos truques principais do livro, que é escrito com um controle e uma alegria imaginativa raros hoje em dia.  A crítica o classificou como “romance gótico”, pela presença central do castelo e do seu Torreão cheio de mistérios.  A incursão de Danny King pelo castelo reproduz a incursão de Jennifer Egan pelo gênero gótico: uma pessoa moderna, conectada, penetrando num ambiente com séculos de existência e de história acumulada.  

Esse oposição entre o antigo e o modernoso é uma das polaridades deste livro que fascina e desconcerta, embora este último termo deva ser tomado no melhor dos sentidos.  Egan é uma narradora onisciente que nunca aparece, embora a vejamos manipular os personagens, como aquelas pessoas de preto que seguram os personagens em certos teatros de bonecos: visíveis o tempo todo, mas podemos abstrair sua presença no instante que quisermos.  Este romance concilia o melhor de certa literatura experimental (a busca de modos não convencionais de contar uma história) e da literatura clássica (personagens envolventes, peripécias cheias de suspense). Há um trecho, uma simples linha na página 207 do original inglês, em que o uso de um mero pronome muda o livro inteiro, faz um monte de peças se encaixarem e um monte de fichas caírem. Isto só ocorre em livros ousados, que se atrevem a executar um número de malabarismo na corda-bamba, com pleno domínio da técnica. Um bom livro é aquele que a gente lê a última página às 4 da manhã e volta atrás para reler, porque percebe que a segunda leitura vai ser mais recompensadora do que a primeira.