quinta-feira, 24 de agosto de 2023

4975) Drummond: "Cabaré Mineiro" (24.8.2023)



 

Este poema do livro Alguma Poesia (1930) poderia aparecer numa antologia de poesia erótica brasileira, sem decepcionar. Decepcionaria, talvez, quem acha que a poesia erótica só é feita para excitar, para despertar um desejo bem empoderado de fazer “aquilo”. Nada contra; mas existe a poesia erótica que implica numa reflexão sobre o erotismo, num desvendar de sintomas do erotismo, como se mostrasse um ambiente (ou uma vitrine) e perguntasse mudamente ao leitor: “Isto te excita? E isso? E aquilo?”.
 
Ou, para lembrar o título impagável de um conto de Robert Sheckley: “Você sente alguma coisa quando eu faço assim?...”
 
“Cabaré Mineiro” é um título auto-explicativo e merecedor de comentário. Existem vários tipos de lugares chamados de "cabarés", que não são, necessariamente, casas de prostituição. Neste extremo, temos aqueles lugares onde os clientes entram, há um recinto com várias mulheres em exposição (ou elas são trazidas em grupo, para serem apreciadas), o cliente escolhe uma, e os dois se retiram rumo a um dos quartos.
 
É um sistema vapt-vupt, eminentemente prático; ninguém perde tempo com nhém-nhém-nhém. (Já ouvi muuuito esse argumento.) A gente vê isso em contos de Rubem Fonseca, em filmes como Domicílio Conjugal de François Truffaut ou A Bela da Tarde de Luís Buñuel, em filmes de Fellini como Roma, Amarcord etc.  Eu acho que chamar de cabaré um lugar desse tipo é usar um santo nome em vão.
 
No extremo oposto, o cabaré é um lugar alegre. Um night-club: tem mesas, pista de dança, palco com orquestra (ou, na faixa popularesca, vitrola de ficha), balcão e garçons servindo bebidas... Os quartos ficam no andar de cima ou na parte traseira, mas as mulheres circulam por entre os clientes, conversam, sentam na mesa, bebem, flertam... Ali o nhém-nhém-nhém impera, porque (também já ouvi muito este argumento) sem nhém-nhém-nhém que graça tem?!
 
O cabaré do poema de Drummond é bem assim, como os cabarés de Jorge Amado. É um espaço social onde os homens se exibem, gastam a rodo, disputam a atenção das mulheres mais bem cotadas, assistem danças, em alguns casos jogam baralho... O sexo é apenas um dos elementos envolvidos.
 
O poeta diz:
 
A dançarina espanhola de Montes Claros
dança e redança na sala mestiça.
 
A nacionalidade duvidosa da dançarina já carimba no primeiro verso a natureza fantasiosa do ambiente, onde o uísque escocês é paraguaio. A “sala mestiça” é um elemento confirmador de que não é nenhum “Tabarís” frequentado por coronéis ricaços; é um cabaré de classe média.
 
Com olhos morenos estou despindo
seu corpo gordo picado de mosquito.
Tem um sinal de bala na coxa direita,
o riso postiço de um dente de ouro,
mas é linda, linda, gorda e satisfeita.
 
É interessante o fato do poema ser narrado, sem pudor, na primeira pessoa. Não se trata de saber, biograficamente, se Drummond frequentava cabarés, mas de vê-lo como um personagem-narrador identificado com o ambiente.
 
É o mesmo poeta que no mesmo livro insiste em afirmar que já foi “brasileiro moreno como vocês”. O poeta afirma ter olhos morenos, como em outro poema queixava-se do “desprezo da morena”. Há uma busca consciente de brasileiridade, projeto meio confuso mas provavelmente sincero que os modernistas cultivaram em maior ou menor grau.
 
A descrição realista da dançarina torna mais clara essa tensão mental e simbólica entre a mente de um rapaz classe-média (que está ali, em princípio, pagando) e uma moça pobre. Ela é picada de mosquitos, tem marca de bala, tem dente de ouro, é gorda... Mas é linda, é linda! O desejo fala mais ato do que tudo. O poeta os supostos defeitos, mas não liga. E quem liga?! 
 
Lembra um poema muitíssimo posterior de Drummond, de Boitempo, onde ele diz: “eu quero a puta eu quero a puta”.
 
Ele (o narrador da historinha) quer descarregar a tensão sexual acumulada, é claro, mas é mais do que isso. Ele quer compartilhar (com ela, com o leitor, tanto faz) o instante de iluminação em que ele percebe que uma mulher feia pode ser linda, o desejo de quem precisa dela a torna linda; assim como um país feio pode ser um país lindo, se conseguirmos ter desejo por esse país.
 
Como rebola as nádegas amarelas!
Cem olhos brasileiros estão seguindo
o balanço doce e mole de suas tetas...
 
Estou exagerando? Não acho. Olha só o paralelismo dos versos “com olhos morenos... / cem olhos brasileiros...”. Ele pula da experiência particular para a experiência social, coletiva. Naquele salão, todos somos morenos, todos somos brasileiros, todos somos espanholas de Montes Claros. Há um desejo coletivo que serve de liga, de argamassa.
 
As tetas da dançarina, elemento atrator do desejo dos homens, equivalem às tetas da lavadeira em “Iniciação amorosa”. E lembra os versos do repentista Canhotinho:
 
Quando era injusto o Brasil,
os pretos se cativaram;
o choro dos filhos brancos,
as mães pretas consolaram,
e o leite dos filhos pretos,
os filhos brancos mamaram!
 
É mais um capítulo da nossa promiscuidade cruel e afetiva entre classes sociais, com sua mistura de desejo e repulsa, de dominação e submissão, de exploração e de armistício.
 


(Canhotinho)