segunda-feira, 17 de março de 2008

0280) Os romeiros do dólar (12.2.2004)



Todo mundo abriu uma cerveja gelada e comemorou quando em 1989 os alemães meteram a picareta no Muro de Berlim e o transformaram em pedregulhos, que os turistas compram até hoje em saquinhos plásticos com um adesivo autenticando sua procedência. (É como na Idade Média, quando, conforme os historiadores, venderam-se tantos “fragmentos autênticos da Cruz de Cristo” que, se reunidos, dariam para crucificar oito vezes toda a população da Galiléia) O que era o Muro de Berlim? Era um muro criado pelas autoridades da Alemanha comunista para evitar um êxodo maciço de pessoas insatisfeitas para a Alemanha capitalista, que ficava do outro lado da rua. Pelo menos, era o que pensavam as autoridades. Se elas tivessem fé no próprio taco, era só dizer: “Quem quiser ir morar na Babilônia capitalista, pode ir!” E muita gente talvez não fosse (ver coluna “Pulando muro em Berlim”, 11.4.2003).

Os anos da Guerra Fria foram também os anos da mais concentrada campanha propagandística que a humanidade já viu: a propaganda dos EUA como a terra da liberdade, da igualdade, das oportunidades e do dinheiro. O comunismo prometia a prosperidade universal a longo prazo, e o capitalismo ganhou a parada prometendo a prosperidade individual a curto prazo, mesmo que às custas da penúria alheia. Daí aquela frase tão repetida, de que o comunismo perdeu porque apostava no altruísmo das pessoas, e o capitalismo ganhou porque apostou no egoísmo delas.

Ariano Suassuna, num artigo na “Folha de São Paulo”, comparou o muro de Berlim com a fronteira entre o México e os EUA. Ele ironizava o discurso moralizante dos americanos em favor das liberdades individuais. Quando se tratava de convencer os alemães a fugir para o lado capitalista da Alemanha, tudo bem; mas quando se trata de permitir que latinos desempregados cruzem a fronteira para entrar em seu próprio território, nossos irmãozinhos do Norte são de uma truculência de causar inveja à Gestapo. É cerca, é cão treinado, é helicóptero, é metralhadora... Para afugentar comunistas? Não: operários desempregados que têm no Capitalismo a mesma fé que têm na Virgem de Guadalupe. São os Romeiros do Dólar, que não entendem por que diabos não os deixam entrar na Terra Prometida, depois de fazerem tanta propaganda dela.

As entrevistas com brasileiros deportados dos EUA, mostradas pela TV nas últimas semanas, mostra o lado mais cruel desse processo. Alguém poderia objetar que mais cruel do que a fronteira México-EUA é o muro que Ariel Sharon está construindo para isolar os territórios palestinos. Mas ali, pelo menos, existe a desculpa de que algum palestino pode querer vir explodir cidadãos de Israel. Não me consta que os brasileiros presos e maltratados na fronteira do México trouxessem explosivos amarrados ao corpo para mandar pelos ares as famílias americanas. Não: eles foram chamados. Mas no Paraíso Capitalista são muitos os chamados e poucos os escolhidos, e os excedentes que se danem.

0279) Nos tempos da Casa Nove (11.2.2004)


(Ivan Santos, 2003 - foto de Gustavo Moura)

Era a casa número 9 de uma vila em Botafogo, no começo dos anos 1980, onde residiam Ivan Santos, Alex Madureira e Lenine. Estes eram os residentes titulares, a quem cabia pagar o aluguel e manter a casa funcionando; mas havia um contingente flutuante de moradores provisórios, músicos que iam lá para passar o dia e acabavam passando a noite, ou que iam lá para passar uma semana e acabavam passando vários meses, como aconteceu comigo. O melhor da Casa Nove, além do espírito de festa permanente que imperava ali, era a diversidade de pessoas que a frequentavam. Tinha músicos de jazz, zabumbeiros de forró, poetas e escritores, artistas plásticos, atrizes e atores, jornalistas da imprensa alternativa e cineastas profissionais. Tinha gente famosa e gente anônima. A Casa Nove era um território livre, uma espécie de UNESCO administrada por Ionesco, o dramaturgo do Absurdo.

Alguma coisa das músicas dessa época está preservada no disco Baque Solto de Lenine & Lula Queiroga, que foi relançado em CD, e no Zuada de Boca de Tadeu Mathias, que não teve ainda esta chance. Muito do espírito desta época foi retomado quando pessoas que tinham se conhecido na Casa Nove criaram num bar da Lapa uma programação lítero-etílico-musical chamada Falange Canibal. Maiores detalhes sobre esta fase-2 podem ser colhidos no CD homônimo lançado por Lenine em 2002.

O mesmo espírito está presente no CD Songs From Nowhere, que está sendo lançado hoje à noite no Teatro Santa Roza por Ivan Santos, um dos membros da “troika” de nomes russos que imperava naquela casa mais agitada do que a escadaria de Odessa. Conheci Ivan um pouco antes desse período, quando eu era cabeludo como o Led Zeppelin e ele era barbudo como Los Hermanos. Tínhamos muitas coisas em comum, a começar pelo hábito de escrever martelos agalopados e uma fascinação permanente por Bob Dylan. Tudo isto se filtra nessas canções-de-lugar-nenhum, que bem poderiam intitular-se o contrário: “Songs from Everywhere”.

Aqui no bucólico recanto carioca onde habito, onde mal se escuta o barulho do trânsito, me chegam notícias de uma Europa high-tech, futurista-retrô, ariana-mestiça, um arquipélago de ilhas étnicas no mar da globalização. É lá que mora hoje o “Cabo Ivan”, numa Alemanha fatiada em feudos mega-corporativos, tornada cosmopolita a golpes de acordos e tratados, encurralada entre a invasão pacífica dos netos mulatos do colonialismo e as metástases de um racismo de direita nunca totalmente extirpado. Nesse crisol de DNAs culturais miscigenados às cegas, cujo idioma parece ser um desesperanto pós-Babel, a música de Ivan fala uma mistura de portunhol com alemanglês, mas traz uma cruz-das-armas carimbada em cada rima, uma dicção multi-mameluca de quem diz falando por preguiça de cantar, o artesanato amador de bolar “gatos” eletrônicos para acender a luz de um disco feito sem sair de casa.

0278) Numerologia e futebol (10.2.2004)


(Galo da Borborema. Design: Cavani Rosas, 1975)


O futebol tem simetrias que parecem confirmar a Ciência Numerológica. No Fla-Flu realizado dias atrás, o Flamengo abriu o escore, o Fluminense virou para 3x1, e depois o Fla virou de novo para 4x3. Um placar pouco comum, e uma sequência de gols também invulgar (ABBBAAA). Pois três dias depois o Flamengo foi a Maceió enfrentar o CRB pela Copa do Brasil. Desta vez, foi o CRB quem abriu o placar, o Flamengo virou para 3x1, e o CRB virou de novo para 4x3.. Era não só um placar idêntico, como uma sequência de gols idêntica! Quem estragou tudo foi o condenado do Felipe, que não entende as conveniências numerológicas, saiu driblando todo mundo e pôs Diogo na cara do gol para fazer 4x4. Desse jeito fica difícil fazer Ciência!

Na adolescência eu fui o mais supersticioso dos torcedores; o fato de torcer pelo Treze pode ter alguma relação. (Você sabia que “Campina Grande” tem 13 letras? Olhe aí, a prova definitiva!) Me lembro que no campeonato de 1965 o Treze estreou goleando o Cinco de Agosto por 6x1. No segundo jogo, derrotou o Auto Sport por 5x0, e em seguida o Esporte de Patos por 4x0. Como eu sempre anotei essas coisas em cadernetinhas, por precaução (vai que “Seu” Marinho se distrai, e pula um jogo!...), comecei a perceber uma incômoda contagem regressiva. O jogo seguinte foi com o Nacional de Patos, e quando estava 3x0 houve um pênalte a favor do Galo. Respirei aliviado: era o fim do tabu. Aí vai Luís Garapeiro e chuta nas mãos do goleiro!

Nosso jogo seguinte no campeonato seria contra o Botafogo. Ter a garantia de 2 gols marcados me parecia de bom tamanho, mas aí o Galo inventa de fazer dois amistosos ida-e-volta com o Central de Caruaru. Vencemos o primeiro por 2x1, e perdemos o segundo por 1x4. Seguindo a contagem regressiva, isso profetizava que não faríamos gols no Bota. Domingo lindo, tarde de sol, Presidente Vargas repleto, e ali pelo meio do primeiro tempo Marajó comete um pênalte! Festa da torcida trezeana, e quem vai bater é Braga, o canhão do São José – um zagueirão alto, parecido com aquele Rincón que jogou no Corinthians. Pois não é que o sujeito chuta em cima de Zé do Carmo, perde o pênalte, e o jogo acaba 0x0?

Existem leis matemáticas governando os resultados do futebol? Talvez ele não dependa de coisas plebéias como pés e chuteiras. Talvez tenha ligação com uma Tábua de Logaritmos Cósmica, onde estão previstos todos os resultados de todos os jogos de futebol em todos os planetas da Galáxia (ou pelo menos os jogos do Treze, que são os que realmente importam). Se nos debruçarmos com atenção (e um PC de 500 Terabytes) sobre os números obtidos até agora (e mais uma vez remeto o caro leitor aos arquivos de “Seu” Marinho Leite, no bairro de Santo Antonio), seremos capazes de traçar uma função-de-x qualquer que nos garanta, com toda segurança, que o Galo voltará à Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro. Quando isso acontecer, eu acredito em Numerologia.

0277) A arte de errar (8.2.2004)





(ilustração: Giorgio de Chirico)

Às vezes um trecho de canção se gruda no ouvido da gente, num “loop” que ninguém desliga. Quando é de uma dessas músicas pavorosas que tocam no rádio, aí é dose. Mas às vezes a memória nos traz um pequeno fragmento recuperado da adolescência. 

Eu ando lembrando aquele forró antigo (de quem, meu Deus? Elino Julião? Messias Holanda? Trio Nordestino?), que diz: “Ela tem cheiro de fulô da fuloresta... É uma festa o olhar dessa mulher.” (A canção é do mestre Abdias.)

É um desses casos em que se o cara obedecesse à gramática implodia o verso, não é mesmo? O aparente erro, a corrutela, a variante rústica, tudo isso exprime o sabor de uma palavra que brota espontaneamente num contexto estético onde mais do que a palavra pensada e certinha cabe a palavra dita do primeiro jeito que acode à mente.

O que é certo, o que é errado? Na língua não existem formas mais certas do que outras. Algumas formas de dizer são preferíveis por serem mais fiéis à origem etimológica, outras por serem mais maleáveis no contexto sintático, outras ainda por serem mais próximas às estruturas espontâneas da língua. 

Flor não é mais certo do que fulô, assim como vosmecê não é mais certo do que você: são, talvez, momentos diferentes de uma mesma palavra ao longo da História da Fala Brasileira. 

Cada palavra é na verdade um conjunto de variantes, que vão se superpondo umas às outras. Aceitamos a variante proposta por um grande autor; hesitamos quando ela é proposta por um indivíduo que provavelmente ignora a norma culta (é o caso das crianças e dos analfabetos), mesmo que vejamos nela um certo charme.

Que viva a lucidez poética; mas a poesia se alimenta, também, de palavras não-pensadas, frases intuitivas, improvisos sem propósito. 

O beatle Ringo Starr era especialista em frases que soavam (em inglês) meio desconjuntadas, meio faltando-alguma-coisa: por isso mesmo os outros as adoravam, e algumas acabaram virando títulos de canções (“A hard day´s night”, “Tomorrow never knows”). 

Alguns autores fizeram disto um recurso estético permanente, como é o caso de Guimarães Rosa, onde é difícil encontrar, principalmente em seus últimos livros, uma frase inteira onde não haja pelo menos uma distorção, uma palavra “mexida”, uma interferência no que seria o jeito certo de dizer.

“Já faz três noites que pro Norte relampeia”, cantava Gonzagão. Poderíamos tentar corrigir o erro aparente, dizendo: “Já faz três noites que o Norte relampagueia...” Valeria a pena? Duvido. 

Certas formas são mais espontâneas, e ai das concorrentes. Outras, pelo contrário, afirmam-se porque sua vontade de dizer algo é tão grande que rompe a casca da forma. Drummond começa seu poema humorístico “Ao Deus Kom Unik Assão” dizendo: “Eis-me prostrado a vossos peses, que sendo tantos todo plural é pouco.” 

Impossível não achar graça, impossível não ver no aparente erro a fagulha da criação verbal, que pede, para exprimir a primeira vez de uma idéia, a primeira vez de uma palavra.




0276) Dois ponto zero (7.2.2004)





Talvez estejamos cruzando um limiar da História. A imprensa nos informa que Jon Blake Cusack, um engenheiro de Michigan (EUA) registrou o seu filho recém nascido com o nome de “Jon Blake Cusack 2.0”. Qualquer pessoa que mexa com computadores sabe que esta é a maneira tradicional de distinguir as sucessivas e aperfeiçoadas versões dos programas de informática. Um programa chamado, por exemplo, “Design 1.0” é a primeira versão colocada no mercado; se virmos uma versão chamada “Design 1.1” devemos entender que é o mesmo programa, com algumas pequenas melhoras; o mesmo com “Design 1.2” e assim por diante. “Design 2.0”, no entanto, indica que se trata do mesmo programa, mas com tantas alterações que esta pode ser considerada uma versão substancialmente diferente da anterior.

Cusack não fêz mais do que seguir, em estilo contemporâneo, uma antiga tradição da nomenclatura civil. Quando um pai batiza o filho, por exemplo, de “Valdemar Rodrigues de Melo Jr.”, subentendemos que o pai chama-se “Valdemar Rodrigues de Melo”, e dando aquele nome ao filho ele, simbolicamente, reforça o laço de continuidade genética e social que os une. (Note-se que o contrário de “júnior” é “sênior”, mas esta partícula não é usada aqui no Brasil). O mesmo vale para complementos como “filho”, “neto”, etc. Meu nome completo, por exemplo, é Braulio Fernandes Tavares Neto, colocado em homenagem ao meu avô paterno, que morreu antes do meu nascimento, um poeta e jornalista alagoano que publicou belos sonetos sob o nome artístico de Fernandes Tavares.

Nos Estados Unidos existe também o hábito, típico das famílias ricas e tradicionais, de numerar os descendentes com algarismos romanos: daí termos o bilionário John Paul Getty II e o roqueiro Loudon Wainwright III. É claramente um resquício das pompas da realeza, aquela história de Luís XV e Dom Pedro II. Então, pergunto eu: se pode isso tudo, porque não poderia um cara receber um “2.0” para distingui-lo do pai? Não vejo nada de mais. O que acho interessante é que quem inventou esse tipo de numeração não foi a indústria de informática. Pelo que me consta, os modelos e motores de automóveis também recebem numeração parecida. (Socorram-me, amigos – eu entendo de carro o mesmo tanto que Michael Schumacher entende de literatura.) Mas, ao que eu saiba, nunca ocorreu a um engenheiro de automóveis usar isso num filho, e sim a um engenheiro informático.

É um caso parecido com o dos “emoticons” (“Os emoticons”, 15.8.2003). Durante um século as pessoas usaram máquina de escrever sem perceber que poderiam desenhar carinhas com aqueles sinais. Foi a turma da informática que inventou. Eu diria que estes dois detalhes indicam, no mínimo, pessoas cujo pensamento transcende categorias, pula mais facilmente de um código para outro, de uma linguagem para outra. Só quero ver daqui a dez anos, menino se chamando “Luís Monteiro 3.4 Remix”, ou coisa parecida.

0275) A prosa metrificada (6.2.2004)



(Francisco José Costa Dantas)

Em matéria de prosa que usa a métrica da poesia, Guimarães Rosa tem também o seu exemplo magnífico, a épica descrição da boiada nas páginas iniciais de “O burrinho pedrês” em Sagarana, o livro que lembrou a todo mundo que o sertão brasileiro fazia parte do planeta Terra e do Universo: “As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão...”

Aqui já não temos o verso de 7 sílabas, mas uma sucessão de versos de 5 sílabas. Versos que, emendados, dão o verso de 11 sílabas conhecido no Nordeste como “galope beira-mar”, nome muito mais bonito do que o termo técnico correspondente “tetrâmetro anfibráquico”. (Para quem estranhar que 5+5 = 11, a sílaba extra é a sílaba átona no final do primeiro verso que, com a emenda, vai para o miolo do verso mais longo, e passa a ser contada.) As vírgulas demarcam o corte-de-linha, mas nem precisa, pois a simples leitura, principalmente em voz alta, depressa impõe o balanço ritmado das palavras indo e vindo.

Algumas tentativas mais ambiciosas foram feitas, como a de Nagib Jorge Neto em As 3 Princesas perderam o Encanto na Boca da Noite, narrativa toda em prosa redondilha. Neil de Castro, em As pelejas de Ojuara, volta e meia incide em diálogos cuja origem métrica não se esconde, como no encontro de Ojuara com o corcunda que serve de emissário da Mãe de Pantanha: “O meu nome é Horroroso Horrendo Silva da Mata. Sou que nem a cascavel, que quando não aleja, mata. Da onça tenho a maldade, a ruindade que arrasa, minha baba é peçonhenta e arde mais do que brasa”.

Francisco José Dantas, romancista sergipano que surgiu nos anos 90, é um dos remasterizadores do linguajar literário nordestino, e em seu romance Os desvalidos retoma essa figura de linguagem (vamos chamá-la assim), a prosa metrificada, como neste exemplo, pegado ao acaso entre dezenas: “...é um passarinho dançarino em torno do alazão, rodando o laço nos ares num gorjeio displicente; e mal argola o pescoço num aperto impressentido, já tem a ponta da corda passada pelo mourão!” Escrever prosa assim é mais difícil do que escrever verso, porque no verso qualquer artificialismo se desculpa pela obrigação métrica, mas a prosa metrificada deve ser muitíssimo mais fluente, o ritmo só se descobrindo a uma segunda leitura.

Arrisco a hipótese de que a prosa metrificada é mais antiga do que moderna, mais rural do que urbana, mais nordestina do que brasileira num sentido amplo. Escritores voltam-se para essa técnica quando querem evocar um Lugar ou um Tempo onde a cultura escrita ainda não se sobrepôs à cultura oral, uma cultura onde a palavra cantada ainda não se industrializou.

0274) O verso do Eclesiastes (5.2.2004)




(Charles Harness)

Charles Harness é escritor de ficção científica, autor de The Rose, The Ring of Ritornel e The Paradox Men. Numa entrevista à revista “Locus”, ele narra um episódio de sua vida que parece história inventada. Parece tanto que pretendo reinventá-lo um dia e colocá-lo num livro meu, mudando os nomes. 

Aos 20 anos, Charles morava em Fort Worth, Texas, e trabalhava como estenógrafo num depósito de papel. O problema (mas seria mesmo um problema?) é que a fábrica ficava na “Rua Boa”, na zona do baixo meretrício de Fort Worth. Charles era de uma família religiosa, e afirma nunca ter recorrido aos serviços das profissionais da área: “Entrei casto e saí casto”. 

Mesmo assim, todos os dias ele percorria a rua de ponta a ponta, e as garotas, sentadas no batente com a saia levantada até a cintura, assobiavam para ele.

O problema era que Charles conseguira uma bolsa de estudos no curso para pastor na Universidade Cristã do Texas, embora não se sentisse muito “vocacionado”. Mas a mãe dele sonhava em ver o filho fazendo sermões no púlpito. Na prova final, Charles inspirou-se na história de um velho que passava os dias numa cadeira de balanço diante de um cabaré. 

Esse velho, muito conhecido na rua, tinha sido um empresário rico de Fort Worth que, ao ficar muito rico mesmo, foi para Wall Street e ficou mais rico ainda. Era amigo de uma cafetina da Rua Boa, e conseguiu dinheiro para que ela montasse vários cabarés ali e enriquecesse. 

Veio o Crash da Bolsa em 1929, e o camarada perdeu tudo. Voltou para Fort Worth para retomar a vida de empresário, depois para procurar emprego onde fosse, e nada apareceu. Ele acabou na rua. A cafetina soube, mandou chamá-lo, e disse: “Fique morando aqui, a casa é sua.” E o ex-magnata de Wall Street aposentou-se como freguês perpétuo do cabaré! Eu chamo a isso a Mega-Sena da vida.

Charles achou a história instrutiva e, para sua prova final, compôs um sermão inspirado na Bíblia: “Lança o teu pão sobre as águas que passam; porque depois de muito tempo o acharás” (Eclesiastes, 11:1). Depois que fêz o sermão com toda eloquência, o professor disse: “Rapaz, você escreve bem, mas nunca será um pastor. Isso é lá exemplo que você dê, para atrair as pessoas para Cristo?” Rasgou o sermão e jogou os pedaços na cesta, e Charles perdeu a bolsa.

Anos depois, Charles estava trabalhando na polícia de Fort Worth, como escrivão. Cabia a ele fichar os delinquentes. E uma bela noite os policiais trazem à delegacia, quem? O professor da Universidade Cristã, que tinha sido flagrado numa situação equívoca com uns rapazinhos. Havia jornalistas lá fora esperando para fazer a notícia, pois o sujeito era conhecido na comunidade. 

Charles pegou a ficha com as digitais e disse: “Eu lhe sou muito grato, porque meu negócio não é ser pastor, é escrever ficção científica.” Rasgou a ficha e jogou os pedaços na cesta. Lança o teu pão sobre as águas que passam; porque depois de muito tempo o acharás.





0273) O ritmo na poesia e na prosa (4.2.2004)

Um dos principais detalhes que diferenciam a prosa do poema é a métrica. Métrica é a repetição de ritmos, de cadências de sílabas, para criar um padrão de regularidade sonora, assim como os mosaicos e os vitrais criam um padrão de regularidade visual. Modernamente, temos o chamado “verso livre” tão praticado aqui no Brasil, o qual é um meio-termo entre o verso metrificado e a prosa. Os poetas principiantes sentem um enorme alívio ao tomar conhecimento da existência do verso livre, porque não precisam ficar “contando nos dedos pra metrificar” e o tempo todo com aquele medo de estar produzindo o chamado “verso de pé quebrado”, aquele que não há quem consiga ler na cadência prevista.

Pensar que o verso-livre é mais fácil do que o verso-metrificado é o mesmo que pensar que pintura abstrata é mais fácil do que pintura figurativa. De fato, ambos o são, mas só num nível muito primário de abordagem. Concordo que é mais fácil besuntar borrões numa tela do que fazer um retrato de Dr. Lourival que fique parecido com Dr. Lourival. Quando chegamos a um nível mais alto, contudo, quando estamos falando de um pintor de verdade e de um poeta de verdade, ambos sabem que essa aparente liberdade é um desafio ainda maior do que o anterior. Trata-se de fazer borrões que signifiquem algo em si, sem referências ao “mundo das coisas”; e trata-se de produzir com o verso-livre ritmos muito mais complexos e variados do que o patati-patatá da métrica tradicional.

Assim como a poesia, a prosa também tem ritmo, mas este ritmo geralmente é irregular, ou seja, não vemos a recorrência de padrões, a repetição de cadências. É curioso observar como os escritores brasileiros usam o verso de redondilha maior (ou verso de 7 sílabas) no interior da prosa, principalmente quando tratam de assuntos regionais. Já li em algum lugar que a redondilha, o verso por excelência da nossa poesia folclórica e da Música Popular Brasileira, já se entranhou a tal ponto no inconsciente auditivo do nosso povo que o brasileiro já fala em redondilha, mesmo sem perceber. Isso é ainda mais notável na fala nordestina e, por extensão, na prosa nordestina.

José de Alencar ficou com o exemplo mais famoso ao escrever: “Ó verdes mares bravios da minha terra natal, onde cantam as jandaias nas frondes da carnaúba... Verdes mares que brilhais como líquida esmeralda, perlustrando as alvas praias ensombradas de coqueiros...” Talvez não seja bem assim, mas estou tentando citar de memória para testar até que ponto essas coisas se fixam em nossos neurônios. As linhas famosas de Alencar, abrindo o romance Iracema, impõem de saída ao leitor uma cadência musical que, mais do que estimular nele a sensibilidade lírica, avisa-o de que o que se segue é um “rimance”, uma “balada”, uma história contada em forma de canção. Um romance que traz em si o DNA das histórias cantadas por poetas à luz das fogueiras, numa época em que poesia e narrativa eram uma coisa só.

0272) A sombra sonora de um disco voador (3.2.2004)




Anos atrás, o Diário da Borborema publicou uma matéria sensacional. Um disco voador tinha sido avistado no Distrito Industrial de Campina. Mais do que avistado, tinha sido clicado pelo fotógrafo Machado Bittencourt, que estava voltando de um trabalho qualquer e tinha à mão a câmara pronta para registrar a passagem da espaçonave alienígena. Fotos na primeira página, sensação, os programas de rádio não falavam noutra coisa, e o jornal vendendo mais do que o cordel da morte de Lampião (esse falatório é justamente a gigantesca “sombra sonora” projetada pelos OVNIs). As fotos mostravam com enorme nitidez a espaçonave, no tradicional formato discóide revelado nos EUA pelas fotos famosas de George Adamski.

No dia seguinte, caiu outra bomba. Era mentira! Tudo tinha sido um golpe armado por Machado, para mostrar o quanto era fácil forjar esses troços. O disco não passava de uma calota de automóvel, e as fotos publicadas no dia seguinte mostravam, se bem me lembro, um molecote atirando a calota ao ar enquanto Machado apontava a câmera. O cineasta quase foi escorraçado de Campina pelos acreditantes do dia anterior.

Machado, de quem nunca fui um amigo muito próximo mas que recordo com saudade, estava prestando um serviço muito importante no mundo de hoje, um mundo que se baseia muito em recursos tecnológicos e efeitos especiais. Estava mostrando como é fácil, e como está ao alcance de qualquer um, produzir registros falsos que dão uma enorme impressão de realidade. O mundo de hoje está cheio de São-Tomés ingênuos, que bradam: “É verdade! Existe, sim! Eu vi com meus próprios olhos!” Lamento dizer que tudo isto está errado. O disco-voador do Distrito Industrial não era verdade; não existia; e os que o viram não o fizeram com seus próprios olhos, mas com o olho da câmara de um fotógrafo competente e dotado de um senso de humor irreverente e sardônico.

Desconfiem, amigos. Desconfiem do “manuscrito autêntico do século 16”, que qualquer restaurador da Biblioteca Nacional poderá lhes explicar como se falsifica (papel, tinta, lacre; até as bactérias da época podem ser conseguidas). Desconfiem das aparições sobrenaturais “testemunhadas e documentadas” por pessoas idôneas: as pessoas podem ser idôneas, mas em geral são meio burras, e nunca conversaram com um ilusionista profissional. Desconfiem dos paranormais que entortam utensílios ou materializam objetos: qualquer curso de mágica por correspondência pode transformar num Uri Geller eu, você ou seu tio aposentado que vive em busca de algo para preencher o tempo livre.

Fotos espetaculares de discos voadores foram criadas por Tom Callen, astrônomo do Museu de História Natural de Estocolmo, usando “uma câmara, alguns modelos, um computador, e um software de efeitos gráficos”. Os resultados (e as dicas técnicas) podem ser vistos em: http://www.csicop.org/si/2003-09/faking-ufo-photos.html. (Eita, agora que dei a dica a Paraíba vai virar espaçoporto.)

0271) Uma solução salomônica (1.2.2004)




Fiquei sabendo que alguns movimentos reformistas têm agitado a Paraíba ultimamente. Um deles, que já dura há algum tempo, e do qual participam amigos meus, é o que pretende mudar o nome da capital do Estado. A rapaziada não gosta de “João Pessoa”, por uma série de razões, e preferiria um nome mais poético, como “Cidade do Cabo Branco”, “Filipéia de Nossa Senhora das Neves” ou o tradicional “Parahyba”.

Homenagens personalizadas são inevitáveis, e João Pessoa, José Américo, João Dantas, João Suassuna e tantos outros são vultos importantes, que fazem parte da nossa história. Reconheço, no entanto, que os nomes com ressonância poética têm um atrativo a mais. Eu não tenho nada, por exemplo, contra o nome “Campina Grande” – mas também acho que “Vila Nova da Rainha” é um nome muito mais bonito, até porque faz referências simbólicas à Cantoria de Viola e à cachaça, duas coisas que embelezam a vida, se apreciadas com moderação e bom gosto. Mas nem por isso irei me abalar da minha poltrona para liderar uma cavalgada reivindicando que o nome atual seja trocado pelo antigo.

Mesmo jovem eu sou um cara meio conservador, tradicionalista. Não gosto que mexam nas coisas só porque elas são antigas. Em 1978 uma diretoria do Treze achou por bem trocar o nome de Treze Futebol Clube para “Treze Atlético Paraibano”. Nessa época o melhor time do Brasil era o do Atlético Mineiro, o Galo alvinegro de Belo Horizonte, que só não foi campeão brasileiro com justiça porque perdeu nos pênaltis para um truculento time do São Paulo. O Brasil inteiro torceu pelo Atlético, mas parece que ninguém torceu mais do que esses trezeanos que resolveram homenagear o Galo de lá mudando o nome do Galo de cá. Graças a Deus apareceu alguém que reverteu esse sacrilégio.

O Botafogo de João Pessoa não teve a mesma sorte. Na década de 1970 desembarcou em Tambaú um industrial paulistano, torcedor do São Paulo, que tornou-se presidente do Botafogo (e deu-lhe uma bela duma equipe, e vários títulos) com a condição de que as cores passassem a ser as mesmas do time do Morumbi. Palavras não foram ditas e o pavilhão alvinegro transformou-se em pavilhão tricolor, mudança que, ao que me consta, permanece até hoje, e que gerou inúmeras gozações em Campina, onde o Bota passou a ser chamado “o Camaleão do Contorno”.

E agora (me dizem) tem outro movimento: para que Campina Grande vire a capital do Estado! É movimento demais, e eu tive uma brilhante idéia. Já que Campina quer ser capital, e João Pessoa quer mudar de nome, fazemos o seguinte. Passamos a capital para Campina, mas esta passa a se chamar “João Pessoa”. E mudamos o nome de João Pessoa – para “Campina Grande”! Dois coelhos com uma cacetada só! Seria até uma maneira de promover a integração entre os conterrâneos, acabar com as rivalidades bobas, lembrar que somos mais parecidos uns com os outros do que os seres humanos com os chimpanzés. É ou não é uma solução salomônica?

0270) Incêndio em Alexandria (31.1.2004)




(Catedral em Chamas, foto de Gustavo Moura)


Não se iludam: a Biblioteca de Alexandria não ardeu em chamas uma vez só. Neste exato momento em que escrevo e que você me lê, existe uma biblioteca inteira virando fumaça em algum lugar do mundo. Sossegue: o que está se perdendo não são grandes obras da literatura. São os arquivos pessoais de um débil-mental qualquer que não sabe administrar direito seus recursos informáticos, e vez por outra manda para o espaço todos os arquivos do seu disco rígido, todos os seus programas, às vezes o trabalho de um mês, às vezes o de uma vida inteira.

Conheço um cara (não vou dizer quem é) que, nos velhos tempos do DOS, viu surgir na tela uma pergunta tipo: “Format C? Y N ”, hesitou só um instante e teclou Y, “yes”, achando, certamente, que o C, que ele sabia ser o disco rígido com todos os seus arquivos, estava meio desorganizado, meio desformatado, e não custava nada dar-lhe uma boa formatação, que pelo jeito significava colocar os arquivos por ordem cronológica, ou alfabética. Minutos depois ele ficou sabendo que formatar um disco é algo parecido com apagar um quadro-negro.

Na virada do Ano Novo dei uma guaribada no meu computador, que incluiu um HD de 80 Gigabytes para substituir o anterior, de 10 Gb, o qual estava tão cheio que toda vez que eu esbarrava na mesa derramava arquivos sobre a escrivaninha. Veio aqui em casa o técnico que habitualmente faz esses upgrades. Enquanto ele instalava o disco e os outros penduricalhos, eu folheava uma revista e respondia suas perguntas.

Nisto, o telefone toca, é um assunto urgente que me prende durante meia-hora. Enquanto isto, o cara reinstala o Windows, reinstala o Internet Explorer, reinstala o Outlook Express. Quando volto, encontro apenas as cinzas fumegantes de Alexandria. Esqueci de avisar a ele que queria manter os cerca de 500 Bookmarks (ou Favoritos) do Explorer, pacientemente capturados em madrugadas insones. Esqueci de avisar que queria manter o caderno de endereços do Outlook anterior, ou seja, todos os meus correspondentes eletrônicos. E esqueci de avisar que precisava daquelas 2.300 mensagens recebidas e 1.800 mensagens enviadas que atulhavam o Outlook. Como o profeta Jeremias, ajoelho-me e choro, enquanto, como dizia Castro Alves, “silêncio sepulcral estende as asas sobre a vasta ruína fumegante.”

Perdi tudo! Não, ora que diabo, não perdi nada. Endereços a gente volta a recolher (escrevam, amigos!). As mensagens não-salvas foram para o espaço, com discussões, filosofias, conversas pessoais, muitos versos, muitos trocadilhos infames, muita falação-da-vida-alheia, muito nhém-nhém-nhém por causa de dinheiro, e muitas frases inesquecíveis. Tão inesquecíveis que destruídas inda perduram, junto com as frases ditas ao ar livre, à brisa do mar, e que nenhuma fita magnética registrou. Ficam em nossa lembrança, que é a memória-RAM do tempo. A gente só esquece quando não tem mais com que lembrar.

0269) A força da Tradição (30.1.2004)




A Tradição gera a Vanguarda, e gera o Mercado. Ninguém faz trabalho que não seja em cima de uma tradição, mesmo quando nega ou parece ignorar que essa tradição existe. Os performáticos-de-bienal, por exemplo, que fazem um esforço danado para dizer às pessoas que não esperem deles uma natureza-morta pintada a óleo, estão aproveitando-se de uma tradição de “instalações” que remonta no mínimo aos dadaístas de depois da I Guerra Mundial.

As Tradições são sempre específicas a cada atividade. Quando um garoto de cabelo verde e piercing nas pálpebras passa o dia praticando escalas de guitarra, ele certamente está seguindo uma tradição qualquer, seja a de Van Halen, seja a de The Edge. Mesmo quando se trata dessas bandas punk em que os garotos compram os instrumentos hoje e estream amanhã sem saberem tocar, existe uma tradição punk de fazer isto. Os gestos estéticos fundadores, originais, são raros. Os que dão certo passam a ser a vanguarda; mas sempre existe uma Tradição, que é o chão onde a Vanguarda pisa.

Os jovens são os mais desconfiados com a palavra Tradição, que para eles tem um cheiro de coisa velha, arcaica, superada. O que é uma grande bobagem, pois quando o sujeito é jovem todo o restante é mais velho do que ele. Quando um jovem artista abre os olhos para o mundo, para onde quer que ele olhe ele só vê a Tradição, só vê O Que Foi Feito Antes, assim como quando olhamos para um céu estrelado não vemos essas estrelas do jeito que elas são agora, mas do jeito que cada uma delas era milhares de anos atrás. Sabemos que algumas dessas constelações já se desarrumaram, que algumas das estrelas que produziram essas luzes já se consumiram em cinza nuclear; mas para efeitos práticos, como a navegação marítima, elas continuam servindo. Assim é a Tradição.
A Tradição corre o perigo de ser restritiva e sufocante quando tentam torná-la uma coisa sagrada, como ocorre às vezes com a cultura popular, o folclore. Já que é Tradição, baixa-se uma lei dizendo que não pode mais mexer nisso, naquilo, naquilo-outro. Sociedades vagarosas, reacionárias, também usam a Tradição como pretexto para boicotar novidades. O resultado é que surgem movimentos de vanguarda radicais, violentos, que tentam enxovalhar a Tradição, ridicularizá-la, livrar-se desse peso insuportável. É compreensível esse niilismo, mas ele é sintoma passageiro, é distorção menor.

Tradição é de todos, é a memória, é o Passado e o Presente. O poeta Pablo Neruda, num poema famoso, disse do dicionário: “Dicionário, não és tumba, sepulcro, féretro, túmulo, mausoléu, senão preservação, fogo escondido, plantação de rubis, perpetuidade vivente da essência, celeiro do idioma.” A Tradição é tudo isto, e para o que fazemos agora nada seria mais honroso do que ser um dia incorporado por ela. A Tradição que herdamos é a soma final de tudo que era forte, de tudo que sobreviveu.

0268) A vida é bela (29.1.2004)




Não me considero um indivíduo preconceituoso, embora o seja. Quando não tem mais jeito, livro-me do assunto resmungando: “Quem quiser que goste, mas eu detesto.” Detestei, sem ver, A vida é bela de Roberto Benigni, aquele que roubou o Oscar de Central do Brasil. Depois desse atentado ao nosso orgulho patriótico, a crítica brasileira caiu de pau no filme, e eu também. Onde já se viu, usar o Holocausto dos judeus para fazer gracinha? Oswald de Andrade dizia nestes casos: “Não vi e não gostei”, mas muita gente aqui não viu com medo de gostar. Acabei vendo agora. Pois não é que o filme é bom?

A vida é bela é um retrato do fascismo italiano do ponto de vista de uma cidadezinha, como faz Fellini em Amarcord. Outro lado interessante dele é a importância da fantasia como uma espécie de leitura-e-escritura do mundo. Os personagens de A vida é bela vivem numa espécie de realismo mágico próprio. Guido, o personagem principal, vive interpretando e “coreografando” pequenas cenas do cotidiano para dar-lhes um aspecto mágico. Um roteiro muito simples e hábil faz com que ele se aproveite de inúmeras coincidências e falsos acasos para dar a impressão de que pode fazer, magicamente, coisas acontecerem. Na verdade, ele apenas antevê um pequeno fato e rapidamente faz uma profecia. Com isto, acaba conquistando Dora, que não é maluca e sabe muito bem que aquilo não é magia – mas é o charme da ficção dele que a diverte e acaba por seduzi-la.

O médico nazista que faz um desafio de charadas com Guido é o reverso disso. A certa altura Guido percebe que para ele as charadas são mais importantes do que tudo. Sem conseguir aderir ao delírio coletivo do nazismo, ele se refugia num delírio pessoal, para proteger a si próprio como Guido protege o filho. Todos vivem num mundo de fantasia: a guerra é uma fantasia de grandeza dos nazi-fascistas, as charadas são uma fantasia de fuga do médico, e Guido inventa, para proteger o filho, uma complicada fantasia de que aquela ida deles para o campo de concentração é uma espécie de “reality show” do tipo No Limite, onde eles têm que aguentar algumas privações para que possam marcar pontos e ganhar o grande prêmio.

O garotinho passa incólume por uma guerra e uma internação num campo, pensando o tempo inteiro que aquilo não passa de um jogo (o que lembra histórias de ficção científica como O jogo do exterminador, de Orson Scott Card). Muitas das críticas feitas ao filme queixam-se de que tudo é muito favorável, as escapadas são facílimas, os carrascos não são realistas. Ora, o filme tem a proposta muita clara de ser uma fábula, uma história que jamais poderia ocorrer daquela forma no mundo que conhecemos, mas que precisa ocorrer daquela forma na tela para que percebamos aspectos do mundo “de cá” que normalmente não percebemos. Roberto Benigni trabalha na linha de Chaplin e de Fellini. Só não precisava era ter feito aquela palhaçada na noite do Oscar.

0267) A voz do morto (28.1.2004)




Em seu romance Fundação (na verdade uma série encadeada de narrativas curtas, publicadas em revistas entre 1942 e 1950) o escritor Isaac Asimov criou um dos seus personagens mais fascinantes, Hari Seldon. Seldon é um cientista que inventou uma nova ciência, a Psico-História, uma mistura de Sociologia, Estatística e Futurologia. Com a Psico-História, ele é capaz de prever todas as turbulências que irão sacudir o império da raça humana, que a essa altura do futuro se espalha por toda a Galáxia. Perto de morrer, Seldon grava uma porção de vídeos, deixando com seus descendentes instruções para que eles sejam exibidos dentro de tantas ou tantas décadas. Quando isto acontece, o cientista aparece, descreve exatamente como está a situação política da Galáxia e indica os caminhos que devem ser seguidos. Ele já tinha previsto tudo, desde antes, aplicando as leis matemáticas da Psico-História.

Essas cenas me vieram à mente agora, depois dos atentados de 11 de setembro, com o aparecimento periódico de vídeos de Osama bin Laden, onde ele faz comentários vagos sobre a política mundial e exorta os muçulmanos em geral a continuarem combatendo os Estados Unidos. Imagino que esses vídeos sejam aguardados pelos seguidores da Al-Qaeda com a mesma expectativa com que os habitantes de Trantor, a cidade-planeta de Asimov, aguardavam os pronunciamentos de Hari Seldon, feitos na Câmara do Tempo. São aquele apertar de parafusos, aquelas correções de rumo que os profetas fazem de vez em quando,

Bin Laden nem precisa provar que está vivo. Um líder guerrilheiro ocidental talvez fizesse questão de datar seus vídeos – mostrando um jornal do dia (como fazem os sequestradores quando fotografam os reféns) ou referindo-se a fatos específicos. Parece que a estratégia de Bin Laden é nunca dar certeza. Por um lado, a fidelidade de seus seguidores não depende de ele estar vivo ou não; por outro lado, se provar que está vivo ele talvez faça recrudescerem as buscas.

O mais interessante deste processo, no entanto, é que os profetas tornam-se tanto mais eficazes quanto mais inespecíficos. Se Nostradamus tivesse dito: “O presidente Jimmy Carter será assassinado no poder...” e isso não ocorresse, ele ficaria desmoralizado. Mas não. As suas Centúrias são todas naquele tom de “A grande sombra cinza se erguerá do Oriente, e fará tremer o herdeiro dos falcões; o ouro será jogado ao chão, e o grande Rio deixará de correr durante a noite.” Aí pronto: como nada específico está sendo dito, cada um analisa a xaropada do jeito que bem entende, e pode extrair do texto acima tanto uma análise da Guerra de Canudos quanto uma resenha negativa do filme “O senhor dos anéis”. Hari Seldon, personagem de ficção científica, fazia intervenções claras, precisas, indubitáveis. Profetas como Nostradamus e espertalhões como Bin Laden recorrem a um blá-blá-blá simbólico que pode ser lido de inúmeras maneiras, sempre dando a impressão de que acertaram na mosca.

0266) O visitante sem rosto (27.1.2004)




Há mais de meio século que todos os anos, na madrugada de 19 de janeiro, um vulto encapuçado entra no cemitério de Baltimore, no Estado de Maryland, e deposita três rosas e uma garrafa de conhaque francês sobre o túmulo de Edgar Allan Poe, homenageando o aniversário do poeta de “Annabel Lee”. Ninguém sabe quem é o visitante. As três rosas, ao que se supõe, são para o poeta, sua esposa Virginia Clemm e a mãe dela, Maria Clemm, que foi uma espécie de segunda mãe para Poe. O conhaque deve ser uma homenagem à, digamos, propensão etílica que ajudou a matá-lo aos 40 anos.

A visita noturna e o presente anônimo foram notados pela primeira vez em 1949, no primeiro centenário da morte de Poe. Desde então vem se repetindo pontualmente, todos os anos, e sempre da mesma forma. Admiradores de Poe costumam se reunir no cemitério, nessas madrugadas, para esperar a chegada do visitante misterioso, a colocação dos presentes, e a partida, sem uma palavra, sem outro gesto. Nunca é muita gente, porque Baltimore é uma das cidades mais frias dos EUA, e janeiro é inverno brabo. E rendo aqui minha homenagem ao povo americano, pois apesar da ditadura da TV naquele país ninguém nunca levou uma equipe para acender refletores, ligar câmeras e arrancar o pano do rosto do cara para perguntar: “E aí, como é essa emoção de todo ano vir trazer esse presente?...”

No dia em que eu tiver uma grana mais folgada eu vou pegar um avião para Baltimore em 18 de janeiro só para ver esse ritual. Acho fascinante, principalmente por cercar a figura de Poe, um dos sujeitos mais brilhantes e complicados que já encostaram uma caneta num papel. Mistério, silêncio noturno, fatalismo e recorrência– tudo isso tem a ver com a obra do poeta de “Ulalume” e de “O Corvo”.

Em 1993, o visitante deixou um bilhete lacônico: “A tocha será passada adiante”. A mensagem foi interpretada como um aviso de que o ritual passaria a ser praticado provavelmente por um filho do visitante original, o que foi confirmado por outra nota em 1998. Ao que parece, contudo – ah, as novas gerações! – o ritual está se desunerando. Em 2001, foi deixada junto com o presente uma nota em que o visitante afirmava estar torcendo pelos New York Giants, que iriam enfrentar os Ravens de Baltimore (assim batizados em homenagem ao poema de Poe) pelo SuperBowl, o campeonato de futebol americano. A mensagem, claro, deixou Baltimore revoltada, e os Ravens acabaram vencendo a partida. E dias atrás, foi deixada uma nota onde o visitante se manifesta, um pouco tardiamente, sobre os chega-pra-lá políticos da Guerra do Iraque. Diz o bilhete: “Na sagrada memória de Poe e no local de seu último repouso não há espaço para o conhaque francês. Com grande relutância, mas em respeito a uma tradição de família, o conhaque é trazido. A memória de Poe viverá para sempre.” Futebol, política... Não, amigos, o mundo não é mais o mesmo. E o corvo disse: “Nunca mais!”




0265) A escolha de Sofia (25.1.2004)




De seis em seis meses, um calafrio perpassa pela minha casa. Talvez seja o mesmo sentido pelas vítimas de tantos “pogroms” e perseguições históricas, desde Paris sob o Terror até a Rússia czarista. É chegada a hora de um dedo implacável apontar para uma fila de indivíduos e sair dizendo: “Você morre... Você morre... Você morre... Você aí sobrevive.” Estou sendo melodramático e talvez um tanto desrespeitoso para com os seres humanos que já passaram por isto; mas concedam-me esta licença poética, porque estou falando de seres por quem sinto o mesmo amor que outros sentem por bichos e plantas: estou falando de livros.

Chegou a hora de, diante das estantes, começar o inevitável expurgo dos livros postos em horizontal por cima dos outros, dos livros empilhados no sofá, dos livros amontoados no-canto-da-parede-onde-não-dá-pra-ver-da-porta, dos livros relegados à poeira e ao mofo do antigo quarto-de-empregada, hoje depósito de tralhas e metáfora visual do Inconsciente Freudiano. É livro demais, e não pára de chegar. Cedo ou tarde, é preciso ligar para o Sebo e convocar: “Venham, tragam consigo o Trem da Morte, há 200 condenados empilhados no centro do escritório, já informados de sua sentença. Venham logo, antes que alguém se arrependa!”

Detesto, mas é preciso. Dizem os cientistas que o Universo está em expansão, mas nas prateleiras onde cabiam 70 livros há dez anos continuam cabendo os mesmo 70. Será que é porque cada livro está se expandindo também? Será que todos os objetos do Universo estão se expandindo? Apalpo, ansioso, a linha da cintura. Pela minha mente perpassam temores com que Einstein e Stephen Hawking jamais tiveram que se preocupar.

É livro demais, por isso minhas idéias estão neste tumulto. Cada viagem que faço, levo na ida uma sacola vazia dentro da mala, para trazê-la na volta cheia dos livros que compro e que ganho. Tento ler tudo, mas é impossível (desculpem, colegas!). Se o Espaço se expande, o Tempo se contrai, porque antigamente o dia tinha 72 horas, e a cada ano que passa ele vai minguando. Aos 15 anos já cheguei a ler três livros num só dia; hoje precisaria de duas semanas. E os livros se multiplicam, como coelhos australianos. Preciso passá-los adiante. É constrangedor me desfazer de um clássico da literatura comprado 15 anos atrás por uma pequena fortuna, mas, se não li até agora, não leio mais. Adeus, Marcel! Adeus, Honoré! Adeus, Fédor Mikhailovitch! Quem sabe nos veremos na velhice.

Sou, no entanto um otimista incurável. Quando meus amigos da “Berinjela” chegam pontualmente, bolsas vazias em punho, percebo que não são o Trem da Morte, são o Expresso 2222 que veio resgatar do Limbo todos aqueles livros em busca de um leitor. Passo-os adiante, como cheques polpudos que me deram a ilusão de riqueza, mas que nunca descontei. Irão respirar agora; irão ser vistos, desejados, conquistados. Outros olhos, que não os meus, os lerão. E viveremos todos felizes para sempre.