domingo, 14 de setembro de 2008

0548) O Partido Fantasma (21.12.2004)



Alguns dias atrás (“O protagonista invisível”, 18 de novembro) comentei um curioso personagem de Hitchcock no filme Intriga Internacional: o agente secreto Kaplan, com o qual Cary Grant é confundido durante grande parte da trama, sofrendo seqüestros e tentativas de assassinato por parte de outros espiões. Só lá pela metade do filme Grant, que está no encalço do tal Kaplan, para saber por que motivo o confundem com ele, começa a interrogar os empregados do hotel onde ele se hospeda e descobre que na verdade nenhum deles o vira. A reserva é feita pelo telefone, a bagagem é remetida por alguém, as roupas são deixadas para lavar em cima da cama... mas ninguém jamais viu Mr. Kaplan em carne e osso. Pela simples razão de que ele não existe, é um personagem fictício criado pelo Serviço Secreto para... bom, vão ver o filme que vocês entendem.

Parece mirabolante? Não é tanto quanto a vida real. No começo de dezembro, um professor holandês confessou à imprensa que durante anos serviu de espião para o Ocidente junto à China comunista, fazendo-se passar pelo presidente de um Partido Comunista que simplesmente não existia. Pieter Boevé foi recrutado pelo serviço secreto holandês ainda muito jovem, após uma viagem à China para um desses encontros nacionais da juventude. O serviço secreto criou um fictício Partido Marxista-Leninista Holandês (MLPN) e Boeve durante doze anos atuou como presidente deste partido fantasma, fazendo repetidas visitas à China, onde era tratado com honrarias.

A farsa incluía a publicação de um jornal, De Kommunist, totalmente redigido pelo Serviço Secreto. Boevé, hoje com 76 anos, comenta que o MPLN foi o único partido radical totalmente forjado da História, e certamente o único que funcionou de fato. Boeve usava o nome-de-guerra de Chris Petersen, e o suposto partido gabava-se de ter 600 membros, mas o número real nunca passou de doze. Alguns eram comunistas sinceros que, como Paul Wartena, hoje professor da Universidade de Utrecht, doavam 20% de seus salários para a entidade. Wartena, após o desmascaramento público do MPLN, está exigindo que o Serviço Secreto holandês o reembolse.

Nada disto é estranho para quem leu 1984 de George Orwell (1949), onde uma célula comunista é criada pela polícia para atrair comunistas, ou O Homem que Era Quinta-Feira de G. K. Chesterton (1908) onde um policial infiltrado num grupo subversivos acaba descobrindo que todos os outros membros também pertencem à polícia. A história da espionagem é, para além do mero jogo político-ideológico e das atividades criminosas, uma das melhores alegorias para o caráter ilusório das atividades humanas. Como saber que alguém é o que diz ser? Como provar a alguém que somos o que dizemos ser? Como saber, dentro de nós mesmos, se somos de fato o que pensamos ser? A história da espionagem é talvez, reduzida aos seus termos mais simples, a mais metafísica das tramas policiais.

0547) O Silêncio do Delator (19.12.2004)



José Nêumannne acaba de lançar seu segundo romance, O Silêncio do Delator, pela editora A Girafa (São Paulo). É um livro caudaloso (540 páginas), mas que se lê num só fluxo: no começo o leitor custa a pegar o tom e o ritmo, mas depois que consegue passar terceira, vai em terceira até o fim. Nêumanne comenta a certa altura do livro que fez uma opção por um “texto zero”, ou “grau zero do texto”: uma prosa sem enfeites (ou com poucos enfeites), seu complexidades lingüísticas, aquilo que Isaac Asimov chamava de “prosa vidraça”, transparente, discreta, servindo de veículo submisso e silencioso para a passagem das idéias com um mínimo de refração.

Sou meio suspeito para falar do livro porque é a história da minha geração, que é a mesma do autor, ele mesmo ligeiramente mais jovem que eu. O livro é uma autópsia impiedosa (como aliás tudo que se faça a um cadáver) dos ideais cultivados pela chamada “geração anos 60”, a geração que foi adolescente nessa turbulenta década e que foi a única, até hoje, que acreditou serem possíveis os sonhos sonhados então.

A técnica utilizada é um coral entrecruzado de vozes (amigos da adolescência se reencontram na meia-idade, no velório de um deles) e de temas (sexo, drogas, rock-and-roll, revolução política, misticismo oriental, o Brasil). São monólogos interiores entre os quais se incluem o do defunto e o do autor, e ao pularmos de um para outro vamos percebendo as contradições, os desmentidos, os equívocos, os mal-entendidos entre aquelas pessoas que perderam a virgindade, experimentaram drogas e tiveram a idéia de derrubar o governo numa época em que se ia à loja da esquina para comprar o disco mais recente dos Beatles ou de Bob Dylan. As canções dos dois servem como roteiro, cada uma intitulando um capítulo do livro, e definindo o tema que os monólogos silenciosos se encarregarão de retomar e improvisar em cima.

A necessidade destes improvisos temáticos já é uma notável “constraint” (restrição auto-imposta), mas o autor se obriga a outra, ainda mais acrobática: evitar qualquer menção geográfica que possa situar a história num lugar específico. Somente um leitor campinense, e daquela geração, será capaz de reconhecer a precisão com que o espírito-do-tempo é captado, porque o livro prescinde totalmente dos adereços externos do realismo: nomes de ruas, lojas, bares, colégios... Sabemos que se trata do Brasil, e mais nada. O que talvez desaponte alguns leitores que, sabendo tratar-se de um “romance de geração”, irão procurar em vão a cor local, a “tranche de vie”, a “horta da Luzia”, as miudezas memorialistas a que a gente se apega tanto após certa idade.

O romance de Nêumanne não ocorre num vácuo, pelo contrário, ocorre no turbilhão de catástrofes políticas que lembramos tão bem. Mas seu passado é tão estilizado e impessoal quanto certos futuros da ficção científica, como o de Godard em Alphaville. É Campina Grande, mas poderia ser qualquer lugar.

0546) Cem milhões de origamis (18.12.2004)



Thaksin Shinawatra, o primeiro-ministro da Tailândia, está se defrontando com uma situação problemática em seu país. As províncias tailandesas do Sul são habitadas por muçulmanos, num país de maioria budista, e isto provoca freqüentes choques armados que só este ano já causaram mais de 500 mortes. O “premier” precisava de uma campanha de marketing para amainar o ímpeto separatista daquela região, para fazê-los sentirem-se amados e respeitados pelo restante da população, e aí teve uma brilhante idéia.

Todo mundo sabe o que é o “origami”, a antiga arte oriental de fazer figuras com papeizinhos dobrados. A garça de papel é considerada um símbolo de paz no Japão e em todo o Oriente. Shinawatra propôs à população que todos se unissem num mutirão cívico para fazer 62 milhões de garças de papel (uma para cada habitante do país), que no dia do aniversário do rei Bhumibol Adulyadej, 5 de dezembro, seriam atiradas do céu sobre as províncias do Sul. Instruções sobre como fazer a dobradura foram afixadas em edifícios públicos e divulgadas pela imprensa; postos de coleta para receber os origamis prontos foram espalhados por todo o país.

No último dia 5, mais de 50 aviões militares, cada um carregado com uma média de 50 mil origamis, fizeram repetidos vôos rasantes sobre a região do Sul, despejando sua carga de passarinhos de papel. Multidões se aglomeraram ao ar livre para recolhê-los, porque o Governo também baixou instruções sobre a coleta do lixo resultante do evento. E havia um prêmio especial para quem achasse um origami dobrado e assinado pelo próprio “premier”.

O número de origamis caídos do céu oscilou entre 60 e 100 milhões, de acordo com diferentes jornais. Algumas pessoas adoraram, outras torceram o nariz. Um muçulmano protestou: “Ninguém vai ligar para esses pássaros aqui, mesmo que eles fossem feito de dinheiro dobrado. Será que eles não entendem que um muçulmano não adora símbolos, adora somente a Alá?”

A primeira leitura que isto me sugere é pensar que não existem limites para o que se chama hoje “o Estado espetáculo”, os governos que transformam o ato de governar numa mistura de reveion, quermesse e parada de 7 de setembro. A segunda é que também não existe limite para o delírio dos poderosos. Eu bem gostaria de saber o que é que esse premier anda fumando. Mas a terceira leitura que me ocorre é ver o lado onírico, o lado poético dessa chuva de milhões de avezinhas brancas caindo sobre as cabeças de todo mundo. Existe poesia nisso, mesmo tendo sido idéia de um Governo para enganar os bestas. Existe uma beleza meio infantil nessa cena, que parece um quadro de Chagall, parece um conto dos cronópios de Julio Cortázar, parece um filme de Hayao Miyazaki (o que fez A Viagem de Chihiro), parece uma história em quadrinhos de Moebius. Ah, se toda bobagem inútil e megalomaníaca dos governos tivesse um resultado assim.