quinta-feira, 21 de julho de 2022

4845) O quadro (e o disco) mais caros do mundo (21.7.2022)




Se isto aqui fosse um artigo acadêmico, eu o intitularia "A Obra de Arte na Era de sua Não-Fungibilidade Comercial". 

Pelo que entendo, produto não-fungível é o produto único, que não pode ser substituído por um similar. Isso lhe dá uma condição de raridade, de individualidade. Inversamente, o produto fungível é o que pode ser trocado por algo igual ou equivalente.
 
Walter Benjamin tem um ensaio famoso, “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica” (1935), em que entre outras coisas ele compara os tradicionais quadros pintados a óleo e as obras das modernas artes gráficas. Um quadro pintado por Van Gogh é único, é não-fungível; uma gravura feita por Dürer pode ter 100 ou 500 cópias praticamente idênticas, e isto coloca a questão: essas gravuras caríssimas são fungíveis? Por um lado, têm gêmeas idênticas; por outro, a “família” inteira é rara e preciosa.
 
A possibilidade de reproduzir algo em grande quantidade (a imprensa, a fotografia, as gráficas, etc.) tira a “aura de unicidade” de uma obra, aquele charme do exemplar único e insubstituível, que faz a fortuna de artistas, colecionadores e marchands. Quando alguém diz “Eu tenho o quadro tal de Picasso” ele se refere ao quadro original feito pelo pintor. Pode haver até um certo número de cópias circulando – faz parte da tradição do estudo das artes copiar obras famosas. Mas o original é um só, e vale um milhão de vezes mais.
 
Um filme recente questionou tudo isso de maneira brilhante. The Lost Leonardo (André Koefoed, 2021) documenta o percurso de uma das pinturas mais polêmicas dos últimos tempos, o “Salvator Mundi” atribuído a Leonardo da Vinci. “Descoberto” por negociantes de artes em Nova Orleans, o quadro foi comprado por eles a um preço de 1.175 dólares.



(Leonardo da Vinci (?), Salvator Mundi, c1500)
 
Era considerado obra de algum aluno de Leonardo da Vinci, mas os compradores mobilizaram uma série de especialistas – restauradores, marchands, curadores – para saber se aquilo poderia, ou não, ser um Leonardo autêntico. Através de avaliações diversas, umas mais cautelosas, outras mais otimistas, eles conseguiram chamar a atenção do mundo para o quadro. Daí a pouco a pintura estava sendo noticiada e exibida como “Atribuída a Leonardo da Vinci”, e foi vendido por 127 milhões de dólares.
 
Bastou isso para mobilizar o mundo dos bilionários russos ou sauditas, gente com coceira no bolso. Em 2017, o quadro (cuja origem DaVinciana ainda está sob disputa) tornava-se “a Mona Lisa masculina”, e era vendido na Sotheby’s por 450 milhões.
 
Parece que a reprodutibilidade técnica das obras expandiu-se a ponto de empurrar para um recanto apertadinho do mundo as pinturas únicas, e isso, paradoxalmente, acabou ajudando a valorizá-las ainda mais. 

Sem esquecer que valor artístico é, SEMPRE, subjetivo. E autoria artística na pintura é, muitas vezes, difícil de estabelecer com 100% de certeza. O mercado de pinturas falsas é tão aquecido quanto o de pinturas verdadeiras. Orson Welles abordou isso de maneira tipicamente irônica no filme F For Fake (1973).
 
Aconselho uma olhada no filme de Koefoed, um mergulho cheio de curiosidade nesse mundo de “especialistas” que fazem um quadro religioso passar de 1 mil dólares para 400 milhões, no espaço de poucos anos. Um milagre-dos-peixes bem de nossa época.
 
Outra notícia recente diz respeito não à pintura, mas à música popular, e tem no epicentro o inefável Bob Dylan.


(Bob Dylan, por Milton Glaser)
 
Discos de música popular são frutos notórios da “reprodutibilidade técnica”, pois em tese são todos iguais, a não ser quando se trata de formatos essencialmente distintos de reprodução dos mesmos fonogramas – LP, CD, fita cassete, arquivo mp3...  Também temos que considerar que discos antigos, aqueles velhos vinis dos anos 1920 ou 1930, podem valer fortunas, pois apesar de serem objetos fabricados em massa tornam-se escassos (e por isto valiosos) com o passar do tempo.
 
Jeff Rosen é o empresário de Bob Dylan há vários anos, e devemos a ele (nós, os ouvintes e admiradores) uma série de iniciativas para trazer para o público produtos associados a Dylan. O lançamento regular da série Bootlegs, por exemplo, tem nos mostrado verdadeiros tesouros que Dylan (cuja cabeça ninguém até hoje sabe como funciona) preferiu deixar de fora dos álbuns, em detrimento de canções medíocres.
 
Rosen produziu a ótima caixa Biograph, o famoso show de trigésimo aniversário da carreira do cantor (em 1992), incrementou o saite www.bobdylan.com e produziu o documentário de Martin Scorsese, No Direction Home (2005) – a longa e resmungante entrevista de Dylan no filme foi concedida ao próprio Rosen.
 
Vai daí, deve ser ele que está por trás do lançamento recente de um disco único de Dylan, uma regravação em estúdio do clássico “Blowin’ in the Wind” em uma nova tecnologia de gravação (“Ionic Original”). O disco é de acetato, coberto com uma camada protetora, e pode ser tocado numa vitrola comum. É um disco único, sem cópia, atestado como “one of one”, exemplar único de uma tiragem total de apenas um.



Guardado numa caixa de madeira, o disco traz as assinaturas de Dylan, do produtor musical T-Bone Burnett e do engenheiro de masterização Jeff Powell.
 
O disco foi a leilão na Christie’s, em Londres, e foi arrematado pela merreca de 1,2 milhão de libras esterlinas, ou 1,44 milhão de dólares.
 
Um disco pop, que já foi um dos produtos mais fungíveis (=mais substituíveis) da indústria, chega agora a um status de sofisticada valorização como produto insubstituível.
 
O produtor musical, T-Bone Burnett, é um excelente músico e figura conhecida no mundo do rock e pop. É dele (por exemplo) a trilha sonora do filme dos Irmãos Coen, E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?.  É claro que num produto dessas dimensões não se espera do produtor menos do que entusiasmo, e ele manda ver, na Rolling Stone:
 
https://www.rollingstone.com/music/music-news/bob-dylan-auction-blowin-in-the-wind-1-8-million-dollars-1379474/
 
É uma rebelião contra o consumo massificado. Não é que eu não queira que as pessoas o escutem. Acho que é a melhor gravação que fiz na minha vida, então eu quero que todo mundo ouça. Para o meu ego e o meu senso de “eu queria que todos fossem como eu”, é um sacrifício. Bem, vocês ouviram. [O disco foi tocado em audições especiais para a imprensa e para possíveis concorrentes no leilão da Christie’s.] Bob está soando bem. A banda está soando bem. A canção é extraordinária. E vou dizer uma coisa, acho que é a melhor coisa com que já me envolvi. O melhor cantor, a melhor canção, grandes músicos, o som é matador. Vou lhes dizer: nunca fiz nada melhor do que isto, com certeza.
 
Claro que T-Bone deve ter embolsado bons caraminguás num projeto com o sarrafo tão alto, e claro que ele deve ter feito o possível para estar à altura.
 
Ainda não vi na imprensa quem terá comprado o disco, e se versões piratas dele (trata-se de uma gravação nova, feita em 2021) já surgiram. Alguém duvida?...
 
Dylan já aceitara participar de um projeto com esse perfil “Para Pessoas Diferenciadas”, fazendo um show na Suécia para UM ESPECTADOR.
 
Veja aqui meu texto a respeito:
 
E aqui um clip explicativo, com momentos do show:
 
O fato é que o mundo está cada vez mais cheio de pessoas capazes de dar 400 milhões de dólares por um quadro de procedência duvidosa, mas atrelado ao nome de uma celebridade renascentista; e de pessoas capazes de dar 1 milhão e meio por um disco que não tem similar, atrelado ao nome do único artista que tem um Grammy, um Oscar e um Nobel.
 
Ecclesiastes 11: 1
Cast your bread upon the waters, for after many days you will find it again. 
 


(“Jokerman” videoclip / "Self Portrait", Albrecht Durer, 1500)