terça-feira, 19 de junho de 2012

2900) Harry Stephen Keeler (19.6.2012)



(esquema de uma "webwork" de Keeler)

Existem artistas que a gente admira mas não curte, e artistas que a gente curte mas não admira. Há grandes romancistas cuja prosa nos entra por um ouvido e sai pelo outro sem que o sismógrafo do cérebro sofra o menor estremeço. E há romancistas que reconhecemos serem menores, romancistas a quem obviamente faltam certos requisitos, mas que nos despertam um fascínio permanente.  

É o caso de um dos grandes excêntricos da literatura dos EUA, Harry Stephen Keeler (1890-1967), autor de uma obra gigantesca, disforme, muitas vezes canhestra, de vez em quando brilhante, com rasgos estilísticos que fariam encabular um ginasiano e com enredos de uma complexidade que faz Thomas Pynchon parecer um minimalista. Bem – comparar com Pynchon não adianta, porque Pynchon é um keeleriano sem os defeitos de Keeler.  Digamos: Balzac.

Keeler criou um processo, chamado de “webwork”, para compor seus enredos complicados, com dezenas de personagens, centenas de situações entrecruzadas, pistas falsas, confusões de identidade, coincidências e anti-coincidências (=quando algo que deveria acontecer não acontece). 

Escreveu quase 100 romances, e olha que o romance típico dele não tem menos de 400 páginas (muitos, por alguma razão, são traduzidos em Portugal). Mantinha um gigantesco arquivo de recortes de fatos estranhos, bizarros, inesperados, que usava em suas narrativas de crime e de FC. 

Sua homepage (http://bit.ly/bWvEZl) dá exemplos de sua prosa saborosa, inusitada, meio desconexa, em romances como O Enigma da Caveira Viajante, O Rosto do Homem de Saturno, O Caso dos 16 Feijões, O Mistério do Periquito de Madeira, O Homem que Mudou de Pele, etc. Sua volúpia fabulatória não tem paralelo, bem como seus extraordinários sistemas de criação de enredos.

Falei que não admiro Keeler? Falei mal. Poderia dizer, como o Conselheiro Acácio, que admiro suas qualidades mas não seus defeitos. E a verdade é que os defeitos (a prosa muitas vezes canhestra, as situações improváveis e forçadas, os personagens que não parecem pessoas mas meras funções para desencadear peripécias) só são considerados como tal num sistema de valores que visa à produção de uma prosa produzida noutro nível de realidade.  Criticamos Keeler com instrumentos feitos para medir Balzac (que aliás era combatido, em sua época, por críticos que usavam instrumentos pré-Balzac). 

A editora independente Ramble House imprime seus livros por demanda (http://bit.ly/9KpjZy); suas frases inimitáveis podem ser seguidas no Tweeter através de @HarrySKeeler. Era um homem obsessivo, trabalhador incansável, e fundou um império habitado por ele só.