quinta-feira, 21 de setembro de 2023

4984) A literatura de mundo afora (21.9.2023)




(Ngugi Wa Thiong'o)


Andei lendo, misturadamente, duas entrevistas de autores muito distantes entre si mas que trazem a discussão para um terreno comum: o da experiência transnacional, dos escritores exilados (voluntariamente ou não) em outro país ou outra língua, os escritores que se afastam de sua terra natal e assim podem até enxergá-la melhor.
 
Aqui no Brasil existe um viés nacionalista muito forte desde que nossa literatura começou a existir “oficialmente”, como fenômeno coletivo de fato, no segundo Império, em meados do século 19.  Ser nacionalista refletia os nossos arrufos de independência de Portugal, a nossa necessidade de falar do que era tipicamente brasileiro e só brasileiro, incluindo aí a nossa maneira peculiar de escrever, de falar, de recriar o idioma.
 
William Gibson se referia ao mundo do futuro imediato como “pós-geográfico”, talvez não no sentido de que países e fronteiras deixarão de existir, mas colocando em primeiro plano as conexões eletrônicas e internéticas que propõem novas formas de contato, aproximação, diálogo, agrupamento, acesso, compartilhamento.
 
Um refugiado, numa dessas levas recentes de êxodos coletivos, entrevistado na Europa, queixou-se de que, depois de semanas de fuga no meio de uma migração caótica, perdeu o celular. “Senti nesse momento que tinha saído do meu país.”  A experiência do exílio é física, presencial, mas a um toque e a um clique do aparelho alguém pode ter a impressão de estar de volta ao ambiente que frequentava, contando com imagens de câmera, sons em tempo real.
 
Dizem que D. Pedro II levou para seu exílio parisiense um travesseiro cheio de terra do Brasil, para manter a conexão simbólica. Sempre precisamos de objetos que, por uma espécie de “magia de contato” nos dão a sensação de estarmos tocando um lugar ausente. E quando Fernando Pessoa dizia que “minha pátria é minha língua”, não deixa de haver uma certa sutileza nisso, quando se sabe que foi criado na África do Sul e grande parte de suas primeiras leituras e primeiros escritos foi em inglês.
 
https://lareviewofbooks.org/article/prison-left-me-laughing-a-conversation-with-ngugi-wa-thiongo/
 
O queniano Ngugi Wa Thiong’o, cujo idioma nativo é o gikuyu, conversou com a Los Angeles Review of Books e lembrou a importância de ter uma língua natal. O jornalista perguntou-lhe se escrever em sua própria língua era uma questão de “salvação pessoal” ou de “libertação coletiva”.
 
NWT – Eu suponho que quando alguém escreve em inglês escreve para sua salvação pessoal. Joseph Conrad era polonês, mas aprendeu inglês aos 19 anos e produziu uma incrível obra literária nesse idioma. Foi uma questão pessoal, no sentido de que ele se realizou coo escritor, ou algo assim, mas ele não contribuiu para com a literatura polonesa. O mesmo se aplica a escritores como Chinua Achebe e eu. Things Fall Apart (1958), de Achebe, é um romance brilhante, em inglês; mas que não fez nada, absolutamente nada, pela literatura ibo. O mesmo no caso de James Joyce e muitos escritores irlandeses, pois o irlandês foi também sistematicamente destruído pelos colonizadores ingleses. James Joyce, na verdade, é bastante consciente, em seus escritos, da questão do idioma, mas ainda assim ele escreveu em inglês. O mesmo se aplica a meus primeiros romances, escritos em inglês: Weep Not, Child (1964), The River Between (1965), A Grain of Wheat (1967) e Petals of Blood (1977). Sou feliz por tê-los escrito, mas estou mais satisfeito ainda por ter escrito meus romances subsequentes em gikuyu.
 
(...)
 
Eu recuso uma hierarquia de línguas onde algumas línguas presumem ser mais elevadas do que outras – especialmente nos países pós-coloniais que experimentam algum tipo de sistema de opressão. Ao mesmo tempo, acredito que todas as línguas são únicas, especiais. Cada língua, por menor que seja, possui uma musicalidade única, que não pode ser substituída por outra. Gosto de compará-las a instrumentos musicais. Um piano tem seu som ou sua musicalidade específica, que não pode ser confundida com a de uma guitarra. Quando diferentes instrumentos estão tocando juntos, produzem harmonia; uma orquestra de muitas línguas.
 
Por que razão o senhor se recusa a usar o termo “língua de minorias” em seu livro?
 
NWT – Porque esse termo é geralmente usado de uma maneira ridícula. Pense, por exemplo, num idioma da Índia, que é falado por milhões de pessoas, mas ainda é chamado de “língua das minorias”. (Risos) Esses termos são parte do sistema hierárquico que eu rejeito. Mas existem línguas de poder? É claro! A língua do poder é a língua da nação dominante, ou a língua da classe dominante em uma nação. Eu sou do Quênia, e a minha língua materna é o gikuyu, mas no Quênia o inglês é a língua da administração pública e da educação – a língua do poder – mesmo que 90% dos quenianos não o usem. Se você pretende se educar ou alcançar qualquer posição no governo, tem que se curvar à linguagem do poder.
 
O senhor satirizou o modo como países africanos exploram os desfavorecidos para criar uma imagem pública. Há uma cena no começo de Wizard Of The Crow em que o narrador menciona que mendigos e moscas estão sendo usados nas ruas de Aburiria para atrair turistas.
 
NWT – (Risos) Olhe para as imagens da África. Elas mostram, em geral, a pobreza extrema, ou a riqueza da fauna e da flora, mas ignoram as pessoas comuns e as pessoas ricas que vivem ali. A África não é feita somente de pobres, de narizes escorrendo e moscas em volta dos olhos; está cheia de gente dirigindo Mercedes-Benz e helicópteros. O essencial seria mostrar as duas coisas. Não falo em ignorar a pobreza, mas em mostrar os dois lados, e revelar suas conexões. Se eu vier à Bélgica com a minha câmera, não vou apontá-la apenas para os palácios e os arranha-céus, mas também para as ruas, e o modo como o povo vive.
 


(Bruce Sterling)

Bruce Sterling, escritor de ficção científica, é um dos criadores do movimento cyberpunk, e seu trabalho eventual como jornalista (para revistas como Wired e outras) o levou a viajar pelo mundo todo. Ele acabou casando com uma sérvia, e em 2007 estava morando em Belgrado. Numa entrevista à Locus (#561, outubro 2007), ele comentou essa experiência de expatriamento voluntário, curiosidade por outras culturas e o choque que o olhar norte-americano (que ele considera meio provinciano, tacanho) experimenta diante da realidade da Europa Oriental.
 
 
BS – Uma coisa em que venho pensando ultimamente é um romance “regional” sobre o Planeta Terra. O mundo tornou-se um lugar pequeno, e é preciso que se escreva um romance-de-cidadezinha-pequena a respeito dele. Eu sou de uma região [Texas] muito voltada para o romance regional. O romance regional texano gira em torno da angústia do Gótico Sulista, sobre pais e filhos e a posse da terra – coisas tipo Lonesome Dove. Precisamos de um livro que relate o que aconteceu conosco de um ponto de vista transnacional, para interpretar o sentido cultural de tudo isto e fazer julgamentos de valor a seu respeito, porque é algo cada vez mais forte, e está acontecendo muito depressa. Isto vai ser bom para o quê, vai ser ruim para o quê? Quem são os vencedores, quem são os derrotados? O que temos a ganhar com isso tudo? Alguém precisa criar obras literárias sobre a globalização, mas não é o meu caso, porque não sou um grande romancista. (...)
 
Eu vivo hoje num país [a Sérvia] que já atravessou seis colapsos econômicos, mas você ainda consegue sair de casa e obter um jantar. Belgrado é uma cidade em gráfico ascendente no momento atual. Eles já passaram por uma hiperinflação, onde você vai ao mercado com um carrinho de mão cheio de cédulas e compra um pão; e não apenas todas as pessoas perderam suas economias, como depois vieram os bandidos e atearam fogo à cidade. Mas o mundo não se acabou (ele se acaba quando para de chover por dois anos e toda a vegetação morre). Essa situação econômica é apenas um epifenômeno. Você pode visitar lugares por toda a Europa onde a economia já entrou em colapso. A Europa é cheia de sociedade pós-catástrofes.” (...)
 
Se você viaja pelos Bálcãs, vê o tempo inteiro pessoas que já perderam tudo. Eles têm uma espécie de resiliência, um humor sinistro a esse respeito. Para mim, é uma espécie de segundo lar espiritual, de muitas maneiras, uma sociedade com um temperamento muito mais sombrio. Eu sou uma espécie de figura piadista, fazendo frases de mau-humor ao estilo de Mencken, mas em Belgrado eles me veem como um cara leve, um cara divertido. “Você é um americano amistoso, sempre espirituoso, sempre com uma frase engraçada.” Na América, dizem: “Por que você vive escrevendo sobre distopias?”  Não são distopias, é o mundo que é assim.”

Existe provavelmente espaço para o crescimento de uma literatura transnacionalista que não abra mão de todas as conquistas linguísticas, temáticas e ideológicas dos nacionalismos literários, mas que seja capaz de articular esse nacionalismo aos seus equivalentes mundo afora. Seria uma maneira de combater a padronização, a uniformização das narrativas, a propagação de uma literatura consumista que seria a mesma em todos os continentes.