quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

4439) "Roma" de Alfonso Cuarón (27.2.2019)




Vi o filme de Alfonso Cuarón em streaming pelo Netflix. Meus amigos diziam que só presta ver no cinema, na tela grande, e eu concordo, porque a tela grande é um dos principais elementos da concepção estética do filme. (Vi no computador, mas meu monitor é muito grande.)

O filme conta o dia-a-dia de uma empregada índia na casa de uma família de classe média mexicana, em 1970. Diz-se que é a memória autobiográfica do diretor Cuarón, que na história seria representado pelo garoto Paco. O filme é fotografado num preto-e-branco excepcional.

Por mais que eu admire fotografia a cores, sempre acho que o preto-e-branco nos dá uma versão mais direta da realidade. As cores, no cinema, são como os adjetivos na escrita. O P&B nos dá a imagem substantiva da vida, sem enfeite, sem comentário, sem ketchup.

A protagonista, Cléo (Yaritza Aparício), é uma daquelas índias silenciosas que parecem ter sido arrancadas de uma pirâmide mexicana na selva. Poucas cenas do filme não a têm como foco. É silenciosa, diligente, observa tudo.

Na cena em que vai para o quarto com o namorado (e engravida), ela o observa encantada enquanto ele, nu, faz proezas de artes marciais. Depois, ela vai procurá-lo no subúrbio, onde ele se exercita. Vê que ele é apenas mais um no meio de tantos. Que é tão machista e bitolado quanto os outros. E não percebe que ela mesma é a única que consegue praticar a pequena façanha de equilíbrio proposta pelo instrutor. Como diria algum espectador brasileiro, Cléo é ninja e não sabe.


A família é mais uma família na perpétua crise que é a subida de status das classes médias, onde todo sacrifício tem que ser feito trincando o dente e sem bater a pestana. Tem um Fusca guardado nos fundos, mas o dono da casa desembarca (numa cena memorável) num Ford Galaxie que mal cabe na garagem.

Uma família que me lembrou a canção de Caetano Veloso e Torquato Neto, “Ai de mim, Copacabana”, contemporânea (1968) da família de Cuarón:

Um dia depois do outro
talvez no ano passado, é indiferente,
minha vida, tua vida,
meu sonho desesperado,
nossos filhos, nosso Fusca,
nossa boutique na Augusta,
um Ford Galaxie,
o medo de não ter um Ford Galaxie...


Quando o marido arranja uma aventura e vai embora, o Ford Galaxie vira um trambolho, engaveta-se nos caminhões, esboroa as colunas da garagem, até que a esposa tem um momento de lucidez, “desapega”, e o troca por algo mais realista.

A imagem cinematográfica de Cuarón é enorme, um retângulo desmedido, maior do que um Galaxie. Daí o olhar vagaroso da câmara, como uma jibóia despertando, aquela profundidade de campo e amplitude de visão que faz de cada plano uma composição complexa de coisas que se aproximam e se afastam, se deslocam.

Muita gente por aí chamando o filme de lento, porque hoje em dia ninguém parece estar acostumado a planos de um minuto. Ou é no ritmo de comercial de cerveja, ou "é arrastado, dá sono”.

A estética adotada pelo diretor é correta, e fazer montagem rápida, de planos picotados, com uma imagem daquelas dimensões é como tentar jogar ping-pong usando uma bola de basquete.

A câmera se liberta, e de maneira magnífica, naqueles longos travellings laterais nas avenidas da Cidade do México, reconstruída com aparente perfeição (que sei eu da Cidade do México em 1970!). Há um momento de rara descontração das duas empregadas, apostando corrida até a lanchonete; e depois (no mesmo sentido, da direita para a esquerda), o trajeto angustiado de Cléo tentando alcançar os garotos que correm à frente, de noite, rumo ao cinema.



Cléo é sempre a responsável por tudo, por crianças que são crianças e desobedecem o tempo todo.

Um cinema onde o garoto Paco vê o pai (que deveria estar no Canadá!) correndo às gargalhadas ao lado de uma mulher jovem. E corta para a cena de Marooned, o astronauta solto, perdido, vagando no espaço.

Esses deslocamentos de câmera prenunciam uma das cenas mais marcantes, o movimento (desta vez da esquerda para a direita) acompanhando a entrada de Cléo no oceano, sem saber nadar, para resgatar as duas crianças que estão sendo puxadas pelas ondas. Pelo que se diz, uma sequência cheia de cortes, edições, superposição de imagens, mas tudo em benefício de uma aparente continuidade de tempo e espaço, uma brilhante construção de suspense e angústia.


Cléo é inescrutável. Já disse alguém que “todo chinês tem mil anos”. A gente “lê” nessa índia maia ou asteca como lê aqueles planos intermináveis de Greta Garbo. O que conta naquele silêncio é o que ele consegue despertar dentro de quem o observa.

Mais uma vez Caetano & Torquato:

Você olha nos meus olhos e não vê nada...
Assim mesmo é que eu quero ser olhado.


Como efeito de contraste, a patroa é inquieta, cheia de tiques, transparece a todo instante o caos interior que a faz tremer. A situação a transformou numa “síndica do naufrágio”, e ela tenta se sair como pode.

Dizem (no Internet Movie Data Base) que Cuarón, na sua obsessão de reconstituir a própria infância, mandou trazer de várias partes do México, da casa de parentes seus, móveis iguais aos que havia na casa de seus pais, e os utilizou na cenografia. O filme é dedicado a “Libo”, Libória, a babá que cuidou dele e dos irmãos na infância.


(Libória Rodríguez e Alfonso Cuarón)

É um mundo cruel e carinhoso, o das babás, porque a única maneira de aguentar aquilo e não endoidecer é amando aquelas crianças alheias, que muitas vezes acabam sendo as únicas crianças que terão na vida.  Como no verso do repentista Canhotinho, de Taperoá, cantando com Lourival Batista:

Quando era injusto o Brasil,
os pretos se cativaram;
o choro dos filhos brancos
as mães pretas consolaram,
e o leite dos filhos pretos,
os filhos brancos mamaram. 





(Elísio Félix, "Canhotinho", 1913-1965)






terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

4438) A estória de Lélio e Lina (26.2.2019)




(capas da primeira edição)

É um dos textos mais longos de Guimarães Rosa, e se fosse enviado para uma editora de hoje certamente alguém tentaria convencer o autor a publicá-lo como um volume só, pois dependendo do tamanho da fonte, ilustrações, diagramação etc. daria um bom livrinho de umas cem páginas.

Vai aqui uma comparação, usando a segunda edição do livro Corpo de Baile, a única que reuniu os sete “contos” num único volume, nesta ordem:

1. Campo Geral ................................ 77 páginas
2. Uma estória de amor .................... 69   “
3. A estória de Lélio e Lina ............. 86   “
4. O recado do morro ....................... 50   “
5. Lão-Dalalão .................................. 56   “
6. “Cara-de-Bronze” ......................... 44   “
7. Buriti ............................................  124  “

Essa mesma edição (e acho que somente ela) incluiu nas orelhas do livro pequenos resumos de cada estória, provavelmente escritos pelo autor. Eis aqui o resumo fornecido para este conto:



III – A Estória de Lélio e Lina
O fazendeiro do Pinhém e seus doze vaqueiros. A mocinha lisa de Paracatu. Dona Ruth, a mais formosa. Lélio descobre o sofrer de amor. Jiní, a mulata cor de violeta. O amigo que teve de partir. O amigo que endoideceu. A velhinha que ensina outra existência. O boi incendiado pelo raio. Manuela seduzida. Desafio de duelo. Os fechadores de pastos. Ódio do filho. O pranto de Mariinha. Ver o fim da noite. Rumo do longe. A mãe raptada.

Como tudo em Guimarães Rosa, suscita mais perguntas do que respostas. Todos os detalhes dessa lista estão de fato no conto, com diferentes graus de importância. E nada revelam.

É a história de um vaqueiro jovem, Lélio, que chega à fazenda do Pinhém depois de se largar pelo mundo em busca de trabalho. Quem de certa forma o traz até ali é um cachorro que ele achou no caminho e seguiu: o cachorro é da fazenda, e lhe serve de guia. Ele conversa com o dono, Seu Senclér, chegam a um acordo e ele fica ali trabalhando com o gado.

Todo o conto é a narração de como Lélio, um rapaz quieto e observador, amadurece lentamente ao longo de um ano, convivendo com os homens e principalmente com as mulheres do Pinhém. É uma das histórias menos “de-enredo” de Rosa; a narrativa é apenas um suceder de fatos comuns, sem nada de fantástico, heróico, extraordinário.

São várias moças que circulam na fazenda: Mariinha, Manuela, Jiní, Adélia Baiana, sem falar nas duas “tias”, as prostitutas simpáticas (Conceição e Tomázia) que moram juntas e atendem os vaqueiros. Lélio cria relações diferenciadas com cada uma delas, enquanto tenta, de si para si, esquecer uma moça bonita e rica por quem se apaixonou algum tempo atrás, sem muita esperança.

Em diferentes momentos da história, Lélio resolve que está apaixonado por uma delas, mas logo acontece algo que o faz mudar de idéia. Isso dá verossimilhança psicológica ao conto, e ao mesmo tempo o deixa numa instabilidade em que qualquer direção parece possível.


(ilustração de Poty para "Sagarana")

Ele fica conhecendo Dona Rosalina, uma mulher idosa que “podia ser sua avó”, cabelo todo branco, mas com olhos lúcidos e fala precisa. Ela meio que adota Lélio, chama-o de “Meu Mocinho”, e estabelece com ele uma relação de amor mãe-filho. Mesmo que perpassada por uma certa tensão erótica, um certo charme de parte a parte. Ela comenta: “Ou fui eu que nasci de mais cedo, ou você nasceu tarde demais.

Os dois convivem próximos. Cada vez que Lélio sofre um buleversamento amoroso corre à casa dela para se aconselhar. O filho da velhinha não vê com bons olhos aquele xamego, aquela amizade tão pegada. Ameaça tomar providências, mas fica tudo por isso mesmo. Lélio circula entre as moças, cerca uma, conversa outra, tem uma paixão carnal intensa com uma terceira...

E no fim da história, ele e Dona Rosalina, que ele agora chama “Lina”, arrumam a bagagem dela e partem juntos, para longe, um lugar chamado o Peixe Manso, onde ela tem amizades e parentes.

Guimarães Rosa costura essa história simples com a fartura de detalhes de sempre, detalhes que às vezes a gente só capta em segunda ou terceira leitura. A prosa dele é como um mato, não dá pra ver tudo ao mesmo tempo.

Quem traz Lélio ao Pinhém, no comecinho do conto, é um cachorro fugido: pois a dona dele é justamente D. Rosalina. O que nos lembra o conto “Sequência” (em Primeiras Estórias, 1962), onde um rapaz viaja léguas perseguindo uma vaca fugida, a qual retorna à fazenda de onde foi tirada. Quando o rapaz é recebido na fazenda conhece a moça com quem irá amar e casar. Seguir um animal é seguir o inconsciente. É dar parceria ao Acaso.


(ilustração de Luís Jardim para "Sequência": na tradução em inglês, "Cause and Effect")

O amor platônico entre um homem jovem e uma mulher idosa pode ter para alguns um perfil freudiano, edipiano. Eu prefiro ver em Lina uma espécie de anima junguiana, um arquétipo de mulher idosa, sábia, compassiva, que vai percebendo coisas e dando delicados toques. Ela é como uma lente através da qual Lélio se acostuma a ver os outros vaqueiros, e todo o pessoal da fazenda.

Pequenos detalhes remetem a outras histórias. Em noite de festa, e no dia da partida final, Lina usa “vestido verde-escuro, chapéu da mesma cor”. O verde sugerindo juventude e atenuando a idade, mas lembrando também o conto curtinho “Fita Verde no Cabelo (Nova Velha Estória)” (em Ave Palavra, 1970).


Este conto é uma paródia de “Chapeuzinho Vermelho” em que uma menina, a mandado da mãe, cruza a floresta e vai visitar a avó. Quando chega lá, tendo perdido no caminho a fita verde, consegue ainda trocar umas palavras com a avó moribunda antes que ela se torne um “frio, triste e tão repentino corpo”. O Lobo é a morte, a morte na vida real. Vestida de verde, a idosa Rosalina parece recuperar a fita e tornar-se menina de novo, anterior ao conhecimento da morte.

O primeiro encontro entre Lélio e Lina se dá quando ele, voltando pelo mato, a vê colhendo lenha e a princípio se engana:

E, vai, a solto, sem espora, seu coração se resumiu: vestida de claro, ali perto, de costas para ele, uma moça se curvava, por pegar alguma coisa no chão. Uma mocinha. E ela também escutara seus passos, porque se reaprumou, a meio voltando a cara, com a mão concertava o pano verde na cabeça. (...) Mas: era uma velhinha! Uma velha... Uma senhora. (p. 187)

Os contos populares e orais são tão presentes na obra de Guimarães Rosa que até os personagens percebem essas alusões:

Lélio já tinha levantado o manojo de gravetos, e demorou para responder que morava ali mesmo no Pinhém. Porque aquela voz acordara nele a idéia – próprio se ele fosse o rapazinho da estória: que encontrava uma velhinha na estrada, e ajudava-a a pôr o atilho de lenha às costas, e nem sabia quem ela era, nem que tinha poderes. (p. 188)

Nos contos, é claro, a velhinha ajudada com tanto altruísmo se revela como sendo Nossa Senhora ou alguma fada poderosa, capaz de retribuir um dia o favor recebido, ou de entregar ao rapaz algo precioso que o fará conhecer sua futura amada, como na versão da “Moura Torta” recolhida por Câmara Cascudo nos Contos Tradicionais do Brasil.

Tem um certo simbolismo o fato de Lélio só conhecer D. Lina no dia em que está voltando da casa das “Tias”, onde teve relações com a negra Conceição e depois com a branca Tomázia. Como se, apaziguado, estivesse pronto para o conhecimento de um amor que não envolve o sexo. Porque pela diferença de idade (“podia ser sua avó”) o corpo de Lina lhe está tão proibido, por tabu social, quanto para Riobaldo estava o corpo de Diadorim.



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As notas são todas do volume "No Urubuquaquá, no Pinhém", Ed. Nova Fronteira, 7ª. edição, 1994)


sábado, 23 de fevereiro de 2019

4437) "O Corcunda de Notre Dame" (23.2.2019)




Terminei de ler, ou reler, O Corcunda de Notre Dame (Nossa Senhora de Paris), de Victor Hugo. É um dos livros da minha infância, e um dos poucos dos quais ainda conservo o mesmo exemplar que tinha lá em casa, seis décadas atrás. (Edigraf, São Paulo, 1958, sem indicação do tradutor).

Eu sempre pensei que tinha lido o livro todo, porque a vida inteira eu sabia trechos quase de cor – trechos que reconheci agora, no momento em que os relia. Diálogos, frases engraçadas, frases retumbantes, descrições específicas. Mas agora percebo que dificilmente eu teria atravessado aquilo tudo, mesmo tendo sido um leitor razoavelmente precoce.

Resumo: uma mulher humilde, do interior, tem uma filhinha pequena a quem adora. Um dia a filha é roubada por um grupo de ciganos, que deixa no lugar dela, meio por crueldade, um bebê-aleijão, com o corpo todo deformado, e poucas chances de sobreviver. Quem salva o bebê é um padre muito devoto e erudito que o adota e o cria como filho. Esse menino deformado é Quasímodo; ele se tornará sineiro e guardião de Notre Dame, sob a proteção de Cláudio Frollo, o arcediago. A menina raptada pelos ciganos passa a ser chamada de Esmeralda; vai se transformar numa mulher involuntariamente sedutora, e causar a desgraça deles dois.

Qual o gênero do livro? Realismo, romantismo, gótico, histórico, folhetim, barroco?  Dizem que um livro bom é um livro que explode essas rotulações, um livro que nenhum rótulo abarca por inteiro, e não vejo melhor exemplo do que este.


Me lembro de viver agarrado com o livro e também de assistir o filme de Jean Delannoy, com Anthony Quinn (Quasímodo) e Gina Lollobrigida (Esmeralda). Lembro cenas inteiras até hoje; e fiz um poema intitulado “O Homem Elefante passeia pela praia de Ipanema” (em O Homem Artificial, 1999), que é um “poema sonhado” (e escrito ao acordar) com imagens do filme.

Victor Hugo tinha 29 anos quando escreveu este romance, e só acredito nisso porque li em mais de um lugar.


É um romance engajado, um romance militante, um romance que defende uma ideologia. Hugo estava escandalizado com o “bota-abaixo” da sua Paris dos anos 1820 (o livro saiu em 1831). Escreveu sua história para defender a arquitetura tradicional, que estava, como a do Rio de Janeiro de hoje, sendo demolida pelo falso progresso ou deixada apodrecer pela corrupção.

Alguns dos capítulos mais brilhantes (como “Paris a vol d’oiseau”) talvez sejam ilegíveis para o leitor de hoje, criado numa dieta de frases curtas como grãos de alpiste, e de narrativa onde têm que acontecer ações físicas o tempo todo. O capítulo é um voo de drone sobre a Paris daquele tempo – ou melhor, a Paris de 1480 vista pela imaginação de um escritor na Paris de 1830.

O lado folhetinesco pode fazer torcer o nariz de algum leitor cansado de histórias sobre bebês raptados que reencontram (sem saber) os pais na vida adulta. Idem com as mortes trágicas, espantosas, com extensas perorações dos personagens.

Era um tempo em que você dava a um personagens uma fala de duas ou três páginas e não aparecia nenhum Manual de Redação e Estilo para dizer que estava errado. Ainda bem.

Hugo tem um talento exuberante, transbordante, chega quase a ser descontrolado. Um terço do livro, ou mais, parece ser composto de digressões longuíssimas, até reconhecermos que o tema do livro não é o pentágono amoroso entre Esmeralda, Quasímodo, o arcediago Cláudio Frollo, o capitão Phebo e o poeta Gringoire.


O tema do livro é a cidade de Paris, com foco na catedral de Notre Dame, e a vida desse elenco de personagens é o pretexto para fazer essa cidade do século XV erguer-se inteira do fundo do mar da História, como uma Atlântida resgatada.

Hugo pavimentou o caminho para todo o romance parisiense que se seguiu, desde os peculiares realismos de Balzac e Proust até a Paris folhetinesca de Ponson du Terrail, Michel Zevaco, Maurice Leblanc. O livro é um mapa histórico e um GPS da cidade inteira.

Pouco importa que Balzac tenha considerado o romance “um dilúvio de mau gosto”: me parece que Balzac, como Machado de Assis, fazia o possível para fugir ao que havia de gótico e de melodramático dentro dele mesmo.  Hugo vai neste livro desde a sala-de-visitas bem machadiana (o namoro de Phebo com Flor-de-Lis) até o submundo infra-humano do Pátio dos Milagres, e do laboratório de um alquimista a uma sessão de tortura em praça pública.

Não é uma dessas obras que a gente elogia dizendo ser “uma jóia de fino lavor”. É um livro enorme, desproporcional, heterogêneo, acidentado. Parece menos com a beleza austera e simétrica da catedral que o inspirou e mais com a Catedral de Sevilha, um conjunto de edificações incongruentes e fascinantes, que cresceu por justaposição ao longo dos séculos.

Não deixo de ver ecos de Quasímodo-raptando-Esmeralda nas cenas de King Kong (1933) onde o gorila rapta Fay Wray.



(manuscrito de Victor Hugo)

No início do livro, Victor Hugo diz ter avistado uma inscrição na parede interna de uma das torres da catedral, com a palavra grega ANANKE, “fatalidade”, inscrição que anos depois foi raspada. Essa palavra, gravada naquele cenário, foi, segundo ele, o impulso inicial para a concepção da história.

Ananke, fatum, fatalidade, maktub, estava escrito. Tudo isto faz parte da concepção de vida do melodrama e do folhetim, onde todas as coisas parecem convergir, como num acelerador de partículas, para produzir colisões e descargas de energia que sacodem vicariamente o leitor. O Universo e o mundo humano vistos como um Livro escrito por alguém, onde podemos apenas cumprir as ações, dizer as falas.

Este volume que li tem muitos erros de revisão, transposição de linhas, etc.  Em todo caso a Edigraf lançou na época, além deste livro, uma edição em dois volumes de Os Miseráveis que também tinha lá em casa. Havia um filme baseado neste também, com cenas impressionantes nos subterrâneos de Paris, que lembravam o Rocambole. Acho que é a adaptação francesa (1958), de Jean-Paul Le Chanois, cuja publicidade pode ter ajudado a fazer publicar aqui o romance.


O Corcunda de Notre Dame não é um romance fantástico, mas intersecciona gêneros que estão sempre contaminados de um certo sobrenatural, como o Gótico e o Barroco. Pode-se dizer que o filme tem um clima insólito, porque nele não se manifesta propriamente uma força espiritual ou além-matéria, mas porque depende de circunstâncias excepcionais de convergência, e da coincidência de elementos improváveis.

Esse tipo de história não questiona o universo físico, e sim o universo lógico. São coisas diferentes. A dualidade conflituosa entre Ciência e Religião durante milênios deu origem a essa noção de que a dualidade mais polêmica do Universo é matéria versus alma. E se fosse (como parece ser com idêntico peso) uma luta entre Ordem e Entropia?

Com todo o seu exagero, o seu dramalhão, seu sentimentalismo exacerbado, o livro de Victor Hugo é a transição entre duas literaturas. Com a mão esquerda estendida ao passado ele toca Rabelais, toca os romances góticos ingleses e franceses, toca o visionarismo alemão de Hoffmann e de Meyrink. Com a direita, ele derrama uma versão destilada dessa literatura em todo o romance popular que veio depois, de Rocambole a Vidocq, de Arsène Lupin a Fantomas.

É curioso notar a pouca influência de Hugo no romance francês do último meio século, mas isso certamente é desinformação minha. Tudo que leio dos franceses não lembra Hugo: lembra o vivisseccionismo visual do nouveau roman. Prosa descritiva, sem dúvida, mas prosa sem loucura, a não ser de vez em quando um certo molho freudiano.

Talvez ainda haja algum eco de sua exuberância verbal e fabulatória na aventura pseudo-medieval de Raymond Queneau (Les fleurs bleues, 1965).









quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

4436) Jorge Luís Borges nos EUA (20.02.2019)



(Anthony Boucher)

Se o proverbial arcanjo realizador de desejos me oferecesse a possibilidade de passar uma tarde inteira tomando um vinho e batendo um papo com um autor (falecido) de ficção científica e romances policiais, o nome de Anthony Boucher (rima com “voucher”) certamente estaria na minha lista.

Falei meses atrás sobre a primeira tradução de Jorge Luis Borges no EUA, que foi feita por ele:


Boucher (1911-1968) foi um dos nomes mais importantes na literatura policial e de FC nos EUA, embora tivesse uma atuação mais de bastidores do que sob os holofotes. Como editor, crítico, antologista, tradutor e autor.

Quando traduziu para o inglês “El Jardín de Senderos que se Bifurcan” (“The Garden of Forking Paths”), em 1948, Boucher mantinha há anos uma campanha em favor de uma ficção popular de entretenimento – o policial, a FC – escrita com a mesma consciência literária e a mesma riqueza da alta literatura. Que ele tanto apreciava.

Boucher foi uma criança doente (sofria de asma) que ficava muito tempo na cama e lia muito (como Stevenson, como Bram Stoker). Sofreu dos pulmões a vida inteira; seu filho Lawrence White diz: “Ele nunca teve na vida um só dia que se pudesse chamar um dia normal de saúde.” Escreveu, traduziu, editou, era fã de ópera (tinha um programa de rádio a respeito), colecionador de discos, fã de futebol e basquete, cozinheiro, conhecedor de vinhos.

Como crítico, era exigente, mas tinha sempre uma palavra de incentivo. Philip K. Dick jamais esqueceu suas palavras de apoio no início da carreira.

Era um crítico exigente, de opiniões claras, bem humorado e bem informado. Cultivava um discreto não-conformismo. Era católico, e talvez tenha sido o primeiro no romance policial a criar uma freira detetive, a Irmã Ursula, que aparece, entre outras histórias, em O Enigma da Túnica Amarela (“Nine Times Nine”, 1940).

Pelos registros que existem, foi Boucher quem apresentou o nome e os contos de Jorge Luís Borges a seu amigo Frederick Dannay, o editor-em-chefe do Ellery Queen’s Mistery Magazine, que publicou Borges em 1948.


(Frederick Dannay)

O estilo editorial do EQMM previa que novos autores, fossem estreantes, fossem traduzidos, tivessem seus contos precedidos por apresentações redigidas por Dannay. Dannay era a metade cerebral do pseudônimo “Ellery Queen”: ele concebia crimes intrincados, em escaletas rigorosas e cheias de minúcia, e a outra metade, seu primo Manfred B. Lee, escrevia o romance, com diálogos, ação, descrições, etc.

Ao apresentar na revista o conto de Borges, “The Garden of Forking Paths”, Dannay escreveu em 1948:

É nossa crença, há muito tempo, que Anthony Boucher reúne as três maiores qualificações que pode ter um tradutor: ele próprio pratica a escrita criativa; ele é sem dúvida um crítico cheio de criatividade; e por último mas não por menos, ele é possuído daquele entusiasmo furioso que só pode descrito como “apaixonado”. Em resultado disto, o sr. Boucher traduz histórias estrangeiras de ficção detetivesca com inegável autoridade. O estilo original do autor, sempre tão difícil de capturar em palavras estrangeiras, surge plenamente; entendemos a essência do enredo e as luzes e sombras da atmosfera e da caracterização...

Foi o sr. Boucher quem teve a idéia de traduzir “The Garden of Forking Paths” e de persuadir o autor a inscrever a história no Terceiro Concurso Anual do EQMM. Somos gratos ao sr. Boucher em sua dupla função de parteiro de mistérios; sem isso, nenhum de nós iria ter o prazer de ler o que o sr. Boucher considera ‘um pequeno clássico’.

À sua maneira bem peculiar, “The Garden of Forking Paths” é exatamente isso: uma obra-prima em miniatura. A história toda se baseia numa tremenda, numa colossal coincidência. Sem dúvida, como o leitor irá descobrir, a coincidência é de tal escala que não é simplesmente um meio para `resolver a história: ela é a história. E a rica sessão de exibicionismo que reveste a idéia básica vem somar de modo incalculável à ousadia da concepção do autor.

O Señor Borges é uma importante figura literária na Argentina – poeta, crítico, ensaísta e antologista. Em toda sua obra, especialmente em sua ficção, o autor emprega o tema do labirinto –é uma monomania persistente, que retorna com pequenas variações, como (o sr. Boucher nos recorda) as muletas nas pinturas de Salvador Dali. Em “The Garden of the Forking Paths”, o tema labiríntico do Señor Borges atinge sua plena expressão.

A obra do Señor Borges revela outra mania persistente: ele revela um apreço desproporcional pela erudição fictícia. Ele é capaz, por exemplo, de inventar um autor completamente apócrifo, ou um movimento literário inteiro, e escrever uma longa e saborosa dissertação sobre a importância esotérica dessa figura ou desse movimento; mas a fantasia e a sátira que ele entretece às suas opiniões críticas não são sempre destituídas de relevância. Num dos seus ensaios mais brilhantes, intitulado “Exame da Obra de Herbert Quain”, lê-se o notável parágrafo abaixo:

‘Já contei que seu primeiro romance é uma história de detetive, O Deus do Labirinto. Devo acrescentar que a editora pôs o livro à venda nos derradeiros dias de novembro de 1933. Na primeira semana de dezembro, as árduas e agradáveis circunvoluções de O Mistério dos Irmãos Siameses de Ellery Queen passaram a preocupar Londres e Nova Iorque; prefiro atribuir a essa desastrosa coincidência o fracasso total do livro de nosso amigo. E também (quero ser completamente sincero) às suas insuficiências técnicas e a pompa frígida e oca de certas descrições marítimas. Depois de passados sete anos, é impossível para mim recordar os detalhes do enredo; mas eis aqui o seu esboço, na medida em que minha memória o empobrece (e talvez o purifique). Há um assassinato indecifrável nas primeiras páginas, uma vagarosa discussão do crime no trecho mediano, e uma solução nas folhas derradeiras. Depois que o enigma é solucionado, há um longo parágrafo retrospectivo que contém a frase: “Todos imaginaram que o encontro dos jogadores de xadrez fora por acaso.” Esta frase nos permite compreender que a solução estava errada. O leitor inquieto retrocede aos capítulos iniciais e então descobre outra solução, que é a verdadeira. O leitor desse livro singular prova, em última análise, ser mais perspicaz do que o detetive.”

Vocês agora sabem o que devem esperar!

Em termos do judicioso e erudito Dannay, não se poderia desejar melhor recomendação.

Alguns comentários ao comentário dele:

1) Fica implícito que houve pelo menos uma troca direta de cartas entre Boucher e Borges, para que este fosse convencido a se inscrever no concurso internacional promovido pela revista. Também foram incluídos nesse número especial contos de George Simenon (Bélgica), Victor Palla (Portugal), Anton Chekhov (Rússia), Karel Capek (Tchecoslováquia), Gabriele D’Annunzio (Itália) e outros, no número 57, volume 12, do MMEQ, de agosto de 1948.

2) Comparar as idéias fixas de Borges com as de Dali (as muletas) não é a primeira coisa que nos ocorre, mas não deixa de ter fundamento.

3) No conto original de Borges lê-se de fato essa referência a O Mistério dos Irmãos Siameses, de 1933, mas Borges não diz que o autor é Ellery Queen; provavelmente para não evidenciar demais a homenagem embutida no nome Herbert Quain.







domingo, 17 de fevereiro de 2019

4435) O pior de tudo (17.2.2019)




(ilustração: Robert Place)

O pior de tudo nem é esse ácido queimando na boca do estômago desde a hora do café até o escovar-dos-dentes antes de apagar de vez a luz; como também não é a pressão nas veias do cérebro, ou artérias, sei lá o que são, sei que parecem inchadas como se cada má notícia lida em silêncio diante do monitor fosse o pumpear acelerado de uma bomba de encher pneu de bicicleta, inflando esses condutos sanguíneos, que segundo se diz têm a espessura menor que um fio de cabelo, são tão finos que os glóbulos vermelhos passam por dentro deles em fila indiana, mas depois de meia hora de redes sociais cada veia dessas está da grossura de um macarrão de bom calibre, o que faz a cabeça latejar a cada mexida, a cada vez que a gente lê algo inominável e o primeiro impulso, o primeiro e infantil impulso é ficar fazendo assim com a cabeça, não, não, não pode ser, e a cabeça responde com fagulhas, com agulhas, com faíscas dolorosas de nervo-exposto.

Também não é (=o pior de tudo) o fato de saber que tudo ocorre fora dessa mesma cabeça; não há muita lógica no fato de ela ostentar tanta pressão, afinal é lá fora a catástrofe, afinal é lá fora o desmoronar de um mundo, afinal tanto faz para o mundo que essa cabeça esteja saboreando à noite seus pesadelos habituais em cima do travesseiro empapado de suor quanto que esteja aqui sendo balançada com incredulidade e (bora reconhecer) um certo teatralismo se quem se boquiabre diante de cada despautério do real, histrionicamente, como se houvesse por perto (nunca há) alguém que percebesse um movimento sutil e erguesse o sobrolho e perguntasse o que é que há, você está bem, está com uma cara engraçada.

Não, as coisas são o que são, são porque são mesmo e não adianta balançar cabeça, bater cabeça, perder a cabeça, e caso seja mesmo necessário continuar lendo tantos fatos espantosos às oito da matina, horário infame, horário da cafeína dos insones, então que seja, mais vale a pena ir lá dentro e derramar a meia caneca que já esfriou esquecida, enchê-la da droga negra fumegante, trazê-la para o primeiro gole, que não resolve nada, e deixá-la ali ao alcance da mão que nem se move, deixá-la entregue à entropia de si mesma, esfriando como se a temperatura ambiente estivesse uns dez graus abaixo do que efetivamente está.

Um placebo provisório é tentar frasezinha de efeito no arquivo-word ainda em branco, um comentariozinho metido a esperto a respeito desse falso paradoxo, dizer algo como: “O verão está tão brabo que a gente pode deixar uma xícara em cima da mesa durante meia hora e o café permanece tomável.”

O pior de tudo não é a guerrilha das dores que se deslocam corpo afora com a rapidez de um grupo de espartaquistas bem treinados, atacando agora nas costelas, depois no ouvido, mais tarde na sola do pé, e por aí vai; afinal a ciência já provou que há pessoas somatizadoras e a presente vítima certamente é uma delas; deve existir inclusive uma relação topológica entre checar a data de um boleto e sentir a pontada no ouvido, pensar em dinheiro e sentir a acelerada no coração, ver a manchete do sinistro e já adivinhar a alfinetada fina bem na vértebra cervical. Há uma correspondência do-in entre cada dor do mundo e cada ponto sensível do corpo, descobre ele, esfregando as mãos excitado diante deste futuro Nobel. Estimulando-se a violência policial nas comunidades encarapitadas no morro produz-se a notícia capaz de fazer o calo-de-sangue crescer sob a pele; toda vez é assim, parece uma parceria, uma combinação sob contrato. Cada vez que um direito fundamental é atropelado pela fúria quadrupedal dos congressistas as veiazinhas das meninges fritam que é uma beleza. E assim por diante.

O remédio seria então o solipsismo, o retorno larvar ao umbigo primevo, o refúgio na caverna de cajado em punho? Parece que não, porque afinal o vírus informacional já foi transferido para os neurônios, e mesmo em caso de exílio voluntário não seria mais a notícia – e sim a lembrança – a deflagrar a dor correspondente. Não. O processo já teve início. O contágio já aconteceu. Agora é só uma questão de tempo até a pressão da realidade fazer explodir um desses fusíveis, um desses pontos nevrálgicos, e colapsar o conjunto num monte informe de carnes e ossos agora definitivamente imóveis e em irreparável resfriamento.

O pior de tudo nem é essa reiterada fantasia de auto-imolação, é o fato de que a única redenção talvez seja a consciência impotente de que isso de fato acontece, e não poder fazer nada, e não poder chorar pitanga, e não poder redigir um obituário poético pelo leite derramado, não poder ver o mundo pegar fogo e murmurar a mais pragmática e reconfortante das orações fúnebres, a que diz “antes ele do que eu”. Nem é isso o pior: o pior é o retalhamento das expectativas, o vazamento deflacionário das esperanças, a coagulação opaca dos fluxos vitais, a sensação de que a encruzilhada crucial está ficando cada-vez-mais lá para trás, enquanto o caminho-errado se alarga à nossa frente e se acelera sob nossos pés a cada dia que corre, e não adianta ir à janela, fumar um cigarro, jorrar chuveiro frio, vestir roupa limpa, ir à geladeira, raspar a barba desse rosto que parece um terreno baldio, arreganhar os dentes como se alguém estivesse filmando aquilo com uma câmara, vai ver que estão, vai ver que enquanto eu dormia já estamos no século das coisas pensantes, da casa inteligente, o espelho é uma placa transmissora, o interruptor é um microfone embutido, e num plano superdimensional existem criaturas com três cérebros e onze pseudópodos se divertindo com a minha neurose, ou talvez as criaturas nem sejam essas, sejam meros sujeitos iguais a mim, aqueles do colégio, os que me cobriam de tapa no recreio e me cravavam um lápis ameaçador nas costelas durante a prova exigindo as respostas, e respostas é o que não tenho para lhes fornecer, muito menos agora, ensaboado imóvel diante do espelho e pensando em cortar os pulsos com o prestobarba, bela maneira de começar o dia, um dia igual a todos os outros, nem melhor nem pior, um dia que começa como todos e que (tomara, tomara) terminará como todos, no travesseiro suado, no escuro final, no instante de fechar os olhos exaustos de ver e pedir que não seja aquela a última vez, já que a vida é um pesadelo do qual ninguém quer despertar.










quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

4434) O Romance da Besta Fubana (14.2.2019)




Fiquei sabendo recentemente que está para sair uma reedição deste livro mitológico (em todos os sentidos) da lavra de Luiz Berto, prosador de mão cheia que de certa forma justifica a reflexão ouvida de um amigo meu, carioca, bastante idoso, anos atrás: “Eu acho que o Nordeste só presta porque todo nordestino é doido”.

Não, não somos doidos, mas vivemos num mundo que nos demanda outras prioridades perceptivas. Vemos coisas que os outros não veem – não por algum defeito do aparelho vedor, mas porque o mundo aqui se organiza por outros critérios de urgência e de aderência afetiva.

O Romance da Besta Fubana (Belo Horizonte: Itatiaia, 1984) é um romance na linha que alguns já quiseram chamar de “realismo mágico” por equiparação à obra de alguns autores latino-americanos, mas que tem outra substância.

O livro conta os eventos que tiveram lugar na cidade de Palmares em 1953, com a convergência de uma série de fatos espantosos: uma romaria messiânica em torno da mulher do mendigo Zé da Ferida, sujeita a fenômenos de levitação e falas estranhas; uma revolta de raparigas que depois de provocadas baixaram o cacete na polícia local; o apedrejamento do Forum e da Prefeitura por uma multidão que não sabia ao certo por que estava fazendo aquilo; a insurreição de esquerda chefiada verbalmente pelo sapateiro Joaquim, comunista calejado de pisas na delegacia.

Esses tumultos todos acabam sendo encampados pelo inevitável “homem certo no lugar certo”: o paraibano Natanael, violeiro repentista, camelô, intrujão, conversador-mor, estrategista de ambições alheias e manipulador de expectativas.

Ele se torna o Líder da Revolução, com o auxílio do cego Chico Folote, que mantém um harém de ex-donzelas a seu serviço; do horoscopista Telles Júnior, raizeiro, filósofo particular, pesquisador da História Secreta da Humanidade; da ex-rapariga Amara Brotinho, que ao ser anexada por Natanel se revela uma liderança nata, santa dos descamisados; e do citado sapateiro Joaquim, cujo faro bolchevista radical o leva a pegar carona na primeira insurreição popular que apareça, e calhou de ser aquela.

O clímax acontece na Parte IV do romance, quando a Besta Fubana desce dos céus e pousa no teto do Mercado, a única estrutura física capaz de suportá-la.

A Besta Fubana largou um bocejo longo e exauriu um hálito quente, soltando labaredas com extensões só possíveis de serem medidas em anos-luz. Línguas astronômicas de fogo e de gases quentes que percorriam o universo numa velocidade descomunal. Um dos respingos de labareda, após longa viagem pelo infinito, alcançou o Nordeste Brasileiro e provocou a grande seca de 1932. Uma das secas mais terríveis de que já se teve notícia naquela terra sofrida. Recém-acordada do sono secular, a Besta Fubana revirou os olhos numa preguiça de mulher acabada de ser comida. E, nesse revirar de olhos, perscrutou o escuro recanto do universo que tinha escolhido para dormir. (p. 232-233)

A prosa de Luiz Berto é de uma segurança absoluta ao narrar os fatos mais escandalosos ou inverossímeis; seus personagens, como o Quaderna do Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, mantêm o tempo inteiro um olho no destino supremo da Humanidade e outro nos varejo das próprias vantagens. Quando a Revolução triunfa e Natanel distribui ministérios aos ajudantes citados acima, começa uma segunda luta pelo Poder, desta vez uma luta interna e mortal.

Chico Folote era o encarregado do Ministério das Coisas, dos Santos e das Coisas Santas, responsável, entre outras atribuições, pela organização das festas populares e pela arrecadação dos impostos da feira. Os demais impostos eram administrados pelo Ministério do Povo e das Águas, entregue a Joaquim. O Ministério das Mulheres e dos Bichos, chefiado por Amara Brotinho, se encarregava dos assuntos femininos, da administração da zona boêmia e da pecuária da República. O Ministério dos Fenômenos e dos Estudos, responsável pela cultura, pela educação e pela saúde do povo, ficou nas mãos de Telles Júnior. (p. 148)

Ou seja:

O Ministério estava entregue a um sapateiro, um cego esmoler, uma prostituta e um astrólogo, capitaneados pela competência e pela sabedoria de um cantador de viola. (p. 226)

O livro se conecta por um lado com a obra de Ariano Suassuna e de seu mestre, também palmarense, Hermilo Borba Filho.  Por outro lado, lança uma corrente alternada na direção de livros como As Pelejas de Ojuara (1986) de Nei Leandro de Castro, que compartilha seu frenesi escatológico e fescenino, além da hospitalidade com que recebe criaturas mitológicas.

Esse clima alucinatório-coletivo está presente também no visionário A Cachoeira das Eras (1979) de Carlos Emílio Corrêa Lima e, com maior aderência ao lado histórico e factual, nos romances do ciclo de Princesa, de Aldo Lopes (O Dia dos Cachorros, 2005, e A Dançarina e o Coronel, 2014), com a reconstituição de revoltas populares que começam no confronto político e terminam nas lendas passadas de boca em boca.

Há referências à clef a pessoas reais; não apenas o presidente Getúlio Vargas e o governador pernambucano Etelvino Lins, mas os poetas Juharez Correia (sob seu próprio nome) e Orlando Tejo, este sob a transparente alcunha de Ornaldo Timbu.

O livro de Berto é mais um elo numa corrente de romances nordestinos meio fantásticos, mas costurados com minúcia realista e extrema fidelidade na recriação de tipos populares, ambientes, costumes. É um regionalismo endoidecido, por assim dizer; uma recomposição da realidade num nível meio delirante de entendimento. Para poder comportar a distância abissal entre seus próprios pontos extremos.

Ariano Suassuna, através de Quaderna, dizia não praticar o estilo regionalista, mas o estilo régio. Com isso, aludia à mania de grandeza do personagem. Todo mendigo tem algo de monarca, quando mais não seja porque no seu mundo mental, onde ninguém mais tem interesse de conviver, ele é déspota absolutista, mesmo que não tenha uma bolacha seca pra jantar.

A Grande Líder partiu majestosa, ganhando os insondáveis abismos do infinito. Voltava para a eternidade. Seu vasto terreiro de onde era natural. Novamente, Sua trajetória deixou no céu um rastro de fogo, que foi visto de Oriente a Ocidente. Coriscos e extensas labaredas clareavam o escuro da noite. As tropas do governo olharam assustadas a grande massa esfumaçada e luminosa que levantava voo de dentro da cidade sitiada. Imensa nave partindo para uma viagem interplanetária. Uma visão encantada e fantástica, que haveria de ficar na memória das pessoas por todo o sempre. (p. 287)






segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

4433) "A Balada de Buster Scruggs" (11.2.2019)



Este filme dos irmãos Coen está em streaming no Netflix, não sei se chegou a passar nos cinemas, aqui no Rio pelo menos. Os sedentários agradecem. O Netflix, o YouTube e a UbuWeb têm seus pecadilhos, mas nada que rezar uns dois rosários não absolva. Têm crédito.

Os irmãos Coen são desses cineastas pouco convencionais que não apenas pegam idéias de todas as direções, como não fazem muita questão de fazer filmes parecidos uns com os outros. Este aqui, a meu ver, parece com E aí, meu irmão, cadê você? (“O Brother, where art thou?”, 2000), acima de tudo pela ambientação tipo Velho Oeste. E pelo agarre-o-que-puder de historietas, cáusos, anedotas.

Dias atrás eu estava comentando no meio de uns amigos o quanto o cinema de algumas décadas atrás nos dava filmes-em-episódios. As comédias italianas em episódios eram imbatíveis, fossem todos eles do mesmo diretor ou de vários.

O filme em episódios está para o longa-metragem comum assim como o livro de contos está para o romance.

Com aquela prudência de “acender velas a Deus e ao Diabo” dos comentaristas de futebol, os críticos exigem do filme em episódios que ele tenha coerência, sem por isso deixar de exibir variedade. Em Buster Scruggs, é a ambientação histórico-geográfica que dá a unidade do filme, por mais que as histórias que conta sejam diferentes em enredo, em tom, em paisagem social. É como um tecido inteiriço com várias estampas diferentes: percebe-se a mudança do desenho mas vê-se que os fios de algodão são os mesmos, independente da cor.


O primeiro episódio, “The Ballad of Buster Scruggs”, é o mais divertido, com Tim Blake Nelson fazendo um herói picaresco do faroeste, que cavalga de violão em punho na solidão dos desfiladeiros, cantando a plenos pulmões, para avisar o público que não é realismo que se deve esperar desse conto de façanhas munchausenianas.

O conto é tipo literatura de cordel, cheia de jactância verbal – um dos fios que costuram o filme inteiro. A toda hora brota um personagem com um “bife” de página e meia para recitar, com vocabulário preciosista e (os atores são muito bons) timing competente.


O segundo episódio, “Near Algodones” ainda tem algo do clima de “tall tale” do anterior, com a engenhosidade meio absurdista do caixa de Banco cheio de recursos contra assaltos, o suspense busterkeatoniano de quando o quase-enforcado vê o cavalo querendo ir embora de baixo dele, e assim por diante. É mais uma história que diverte pela imprevisibilidade.


O terceiro é “Meal Ticket”: aqui entramos no mundo meio bradburyano dos “travelling shows” em que um homem-tronco de incrível eloquência declama Shelley, Shakespeare, Lincoln e tudo o mais diante de embasbacadas platéias redneck oitocentistas.

Neste “conto”, o humor-risada se retrai um pouco. O que se produz é aquela risada-arquejo que explode e logo se contém, quando vemos algo bizarro demais para ser verdade.


O quarto conto, “All Gold Canyon”, baseado em Jack London, é um dos menos movimentados, mas tem praticamente um solo de Tom Waits como um velho garimpeiro escavando o chão escuro, úmido, de um vale espantosamente belo.

O velho é lacônico, e ademais está falando sozinho, mas aqui a gente percebe outro fio amarrando o filme: em praticamente todos os episódios um personagem canta uma canção inteira, diegeticamente (ou seja, é o personagem que canta, não a trilha sonora que aparece). Não há muita ação, a não ser na parte final; mas o personagem e o cenário sustentam tudo nas costas.


O quinto episódio, “The Girl Who Got Rattled” (baseado em Stewart Edward White) é uma história de amor que surge ao longo da peregrinação de uma caravana de carroções seguindo a famosa Trilha do Oregon, rumo à margem extrema ocidental do continente.

Um homem e uma mulher se conhecem, se ajudam, se entendem ao longo das pequenas tragédias da migração. Um casal de atores (Zoe Kazan e Bill Heck) com cenas de uma rara intensidade e contenção. Uma história que poderia ser menos cruel, mas ainda assim é a mais emocionalmente verdadeira de todo o filme. O roteiro severo ajuda a deixar a parte afetiva mais comprimida e poderosa.


O sexto e último, “The Mortal Remains”, é uma diligência com o habitual elenco de passageiros mutuamente desconhecidos que vão se revelando ao longo do trajeto. Tem um clima maupassantiano (“Bola de Sebo”), e aqui voltamos às longas perorações, cheias de retórica, que dão aos atores a chance de monólogos pitorescos. E mais duas canções dentro da diligência.

Este último episódio cria um efeito de estranhamento nas últimas cenas, como se ao longo da viagem a diligência tivesse penetrado inadvertidamente em outro filme. Ou os personagens, como num romance de Philip K. Dick, estivessem gradualmente sendo conduzidos para o Além Túmulo, sem perceber.

Os irmãos Coen conseguem harmonizar estas histórias porque é bem do temperamento deles essa facilidade em beber de todas as fontes, e de contar uma história meio surrealista com torção suficiente para que aquilo não só pareça ter mesmo acontecido, como pareça ter acontecido apenas uma vez.

A gente tem a sensação de que aquelas pessoas não se conhecem, nunca cruzaram umas pelas outras, mas tudo aquilo aconteceu meio que simultaneamente, num universo único, coerente. Mesmo os “tall tales”, com sua dose de mentira, pertencem àquele mundo, são as histórias que aquelas pessoas contam umas para as outras, em volta daquelas fogueiras entre os carroções, ou daquelas mesas de jantar de uma casa de hóspedes.

Eu sou suspeito, porque gosto de praticamente tudo que já vi dirigido pelos dois irmãos. É um jeito de fazer cinema que me agrada: ao mesmo tempo são perfecionistas e são descontraidamente leves. São eruditos e são completamente cultura-oral. Seus filmes geralmente sabem o momento certo da cena séria e da cena engraçada, da situação implausível e da situação dolorosamente verdadeira.