segunda-feira, 28 de setembro de 2009

1282) “Sambando nas brasas, morô?” (22.4.2007)



Estreou no Rio o filme de Elizeu Ewald Sambando nas Brasas, morô?, um docudrama ambientado na década de 1950 no Rio de Janeiro. Docudrama é um neologismo que a turma do cinema inventou para esses filmes que misturam documentário e ficção. Não é simplesmente um filme de ficção com reconstituição de época, é um filme que usa imagens feitas na própria época retratada, ou, no caso de um filme totalmente contemporâneo, uma mistura de cenas documentais e trechos encenados com atores. Sambando nas brasas, morô? é a história de um jovem músico de Minas Gerais (Marcello Novaes) que vai morar no Rio, na casa do irmão mais velho, no começo dos anos 1950. O rapaz toca na orquestra da Rádio Nacional e depois na noite carioca; o irmão é cinegrafista da Agência Nacional, do governo Getúlio Vargas. Com estes dois ganchos narrativos, o filme nos mostra um abundante material de imagens sobre a música, o rádio e a política da época, além de imagens de um Rio de Janeiro que não existe mais.

O filme é em preto-e-branco, e a transição entre material de arquivo e material filmado é feita sem solavancos narrativos, embora seja perceptível (e inevitável) a diferença de nitidez na fotografia e um de do outro. O lado documental é reforçado pela inserção de entrevistas (a cores) com pessoas que viveram aquela época: Carlos Heitor Cony, Armando Nogueira, Paulo Moura, Nelson Pereira dos Santos, José Louzeiro e vários outros. Sambando nas brasas nos faz passar pelo governo Getúlio Vargas, pelo atentado contra Carlos Lacerda, o suicídio de Getúlio (Cony comenta: “Getúlio era um suicida nato”), a eleição de Juscelino e a tentativa de golpe contra sua posse, a conquista da Copa de 58, a construção de Brasília. Tudo isto devidamente filmado pelo “camera man” interpretado pelo ator Clemente Viscaino, que acaba virando uma “testemunha ocular da História” empunhando uma câmara de 16mm.

Paralelamente a isto corre a história de amor entre o saxofonista Pedro e Arlete (interpretada por Tracy Segal), uma paquera que começa ao som de sambas no Cassino da Urca e chega ao casamento ao som da Bossa Nova de João Gilberto. Este filme de Elizeu Ewald poderia ser emendado, sem sutura, ao seu filme de 2001, Nelson Gonçalves, em que ele usa a mesma técnica e o mesmo estilo para contar a vida do grande cantor da vida boêmia. O mais interessante nestes filmes é a maneira como se pode hoje recorrer a material de arquivo para preencher os interstícios descritivos de uma ação. Mesmo existindo uma diferença de tonalidade, granulação, foco, etc. nas imagens do Rio antigo, podemos, com um pouco de suspensão da incredulidade, imaginar que estamos vendo um filme de 1955, tal a fluência com que passamos de uma imagem para a outra. A existência de uma imensa quantidade de material de arquivo disponível conduz a esse novo gênero do filme-colagem, onde existem infinitas possibilidades de fusão entre passado documental e presente dramatúrgico.

1281) Zola e a Fatalidade (21.4.2007)


(Émile Zola)

Será que existe mesmo esse negócio, a Fatalidade com F maiúsculo? Claro que as fatalidades minúsculas existem e acontecem todo dia, como o cara que vai botar uma carta no Correio, passa perto de uma construção, cai-lhe uma viga na cabeça e tchau. A Fatalidade é outra coisa, é algo que pertence mais ao domínio do Destino do que ao do Acaso, é algo que parecia escrito-nas-estrelas, predeterminado para acontecer. Por mais que se fuja a ela, está-se fugindo na direção de Tebas ou de Samarra, ou seja, sempre na direção desse encontro marcado com nosso futuro irreversível.

No filme Belle de Jour de Luís Buñuel há uma cena em que o casal interpretado por Jean Sorel e Catherine Deneuve vai caminhando por uma rua de Paris e vê numa calçada uma cadeira de rodas, vazia, estranhamente deixada ali. Sorel se interrompe e fica olhando para aquele objeto com um ar fascinado. A esposa o puxa pelo braço, “vamos embora, o que foi?” E ele, “nada, nada...” Ainda um pouco intrigado recomeça a andar, meio que olhando para trás. Ele próprio não sabe por que aquilo lhe chamou a atenção. Saberemos nós, no fim do filme, quando ele é alvejado pelos tiros de Pierre Clémenti e fica paralítico. Foi um vislumbre do próprio futuro; um aviso do Destino.

Num livro de Sérgio Paulo Rouanet leio um comentário sobre Émile Zola, o grande romancista do naturalismo francês da virada dos séculos 19/20. Zola era um neurótico obsessivo, que deu um certo trabalho aos psiquiatras da época. Os obsessivos são essas pessoas que lavam as mãos cem vezes por dia, ou que ao sair de casa voltam vinte vezes porque acham que deixaram alguma luz acesa ou alguma torneira aberta. Há o caso famoso de uma mulher que só saía de casa levando o ferro de passar roupa, para ter certeza de que não o deixara ligado. Diz Rouanet: “Zola precisava antes de dormir tocar várias vezes os mesmos móveis, abrir as mesmas gavetas. Contava os bicos de gás, os degraus de uma escada. De noite, abria os olhos sete vezes, para provar a si mesmo que não ia morrer” (Os Dez Amigos de Freud, vol. 2, pag. 363).

Ora – como morreu Zola? O próprio Rouanet registra (vol. 1, pag. 142) que Zola morreu em 28 de setembro de 1902, durante o sono, envenenado pelo óxido de carbono produzido pela lareira de seu apartamento. A chaminé estava entupida e o gás se acumulou no aposento. Depois suspeitou-se de um entupimento proposital; Zola arranjara muitas inimizades com sua participação no Caso Dreyfus, em que combateu com ferocidade o anti-semitismo na França. Mas à luz dessa morte, as ansiedades e obsessões anteriores parecem se justificar. Como se ele pressentisse no futuro, um perigo relacionado ao gás, à noite, à hora de ir dormir. Como se precisasse se certificar, todas as noites, movido pela angústia dos pressentimentos vagos, de que estava em segurança e que aquela coisa que temia não iria acontecer.

1280) Kurt Vonnegut Jr. (20.4.2007)




Li não sei onde que idade madura é quando começam a morrer os nossos ídolos, e velhice é quando começam a morrer nossos colegas de faculdade.

Ao que parece ainda estou no primeiro estágio. Morreu aos 84 anos Kurt Vonnegut Jr., escritor para quem o fato de estar vivo era uma mera casualidade, e que sempre encarou com desconfiança o planeta Terra, a humanidade que o habita e ele próprio.

Vonnegut tinha uma relação conflituosa com a literatura de ficção científica, cujos temas ele utilizava, mas a cuja comunidade afirmava não pertencer, talvez com medo de ser discriminado. Para uma crítica literária pretensiosa e desinformada, como é grande parte da norte-americana, o simples fato de alguém escrever dentro de determinado gênero cancela por antecipação qualquer possibilidade de boa literatura.

O grande clássico de ficção científica de Vonnegut, na opinião da crítica, é As Sereias de Titan. Pelo meu gosto pessoal, seu melhor livro é Matadouro 5, em que ele mistura o bombardeio americano a Dresden, na II Guerra Mundial (ao qual ele escapou, pois na época estava prisioneiro dos alemães nessa cidade), com as aventuras de Billy Pilgrim, um rapaz que é abduzido por extraterrestres e passa a viajar aleatoriamente no Tempo, fazendo um ping-pong caótico entre Passado, Presente e Futuro.

Vonnegut era sardônico, amargo, irascível, e, como muitos indivíduos portadores destes traços, dado a rasgos melodramáticos e sentimentais. Parecia-se muito (e não só fisicamente) com Mark Twain.

Seus livros de maior sucesso são muitos: Almoço dos Campeões, Pastelão, ou Solitário Nunca Mais, Galápagos, Hocus Pocus e vários outros. Tinha um estilo telegráfico, de frases curtas, bordões repetidos, personagens que se comportavam às vezes como personagens de histórias em quadrinhos. Algo no seu sarcasmo lembrava os filmes de Robert Altman e as HQs de Robert Crumb.

Vonnegut criticava com acidez a cultura-de-massas, como no conto “Harrison Bergeron”, em que um personagem é levemente mais inteligente que a média da população, e o Governo implanta um rádio-transmissor em seu cérebro, o qual emite um sinal ensurdecedor de 20 em 20 segundos, para impedir que ele use sua inteligência e obtenha vantagens. O sujeito está conversando e quando está prestes a ter uma idéia, o transmissor soa: “Seus pensamentos fugiram em pânico, como ladrões ouvindo um alarme”.

Vonnegut dizia que um leitor diante de uma página impressa é como um violinista diante de uma partitura: metade da obra está ali diante dele, e a outra metade cabe a ele executar no seu instrumento, que no caso do leitor é sua própria mente.

Vonnegut nunca desistiu. “O planeta está tentando se livrar de nós,” dizia ele. “Depois de duas Guerras Mundiais, e do Holocausto, e da Guerra dos Bálcãs, ele chegou à conclusão de que somos uns animais inviáveis”. Daí viriam os terremotos, tsunamis, e até mesmo a Aids. “É o sistema imunológico da Terra que está nos perseguindo”.







1279) Viva o clichê (19.4.2007)


(The Progressive Review)

De vez em quando nesta coluna eu desço a ripa nos clichês literários e cinematográficos. Isto significa que advogo a extinção imediata deles, sua proscrição, algum tipo de “pogrom” ou de “solução final”? Longe disto. O clichê, o lugar-comum, a banalidade, o estereótipo mil vezes repetido, tudo isto tem sua utilidade dentro da retórica criativa. O segredo é saber usá-los com parcimônia e discernimento. O que é um clichê? Em geral, é uma maneira interessante de mostrar ou dizer algo, uma maneira que mostra ou diz com tal eficácia que todo mundo começa a utilizá-la. Daí a pouco, todo mundo já viu algo parecido. Daí a alguns anos, ninguém agüenta mais ver – isto é uma figura de linguagem, porque estudos científicos já demonstraram que o público agüenta, sim, rever uma coisa um milhão de vezes, desde que haja alguém disposto a mostrá-la um milhão de vezes.

Vou dar um exemplo banal. O filme começa com a luz se acendendo na sala de um apartamento, onde entra uma mulher jovem, vestida de executiva. Ela joga a bolsa sobre o sofá, liga a secretária eletrônica, e sai por uma porta; quando começamos a ouvir os recados ela retorna, mastigando uma maçã; senta no sofá joga os sapatos para longe... Pronto, está dito tudo. É uma jovem independente, mora sozinha, trabalha pra caramba, mal tem tempo de comer... Houve um dia um roteirista que, incumbido de apresentar rapidamente esta personagem bolou esta ceninha. Que foi copiada alguns milhares de vezes desde então.

Já viram um bêbado no cinema brasileiro? Ele vem sempre cambaleando pela rua afora, bebendo na boca da garrafa. Olhe, eu nunca vi na vida real um bêbado bebendo da boca da garrafa, e olha que nestas cinco décadas eu já passei mais tempo dentro de bares do que dentro de bibliotecas. Mas não importa. Mostrar o cara bebendo na garrafa tem mais ênfase do que mostrar num copo. A função do clichê é dizer algo numa fração de segundo, e nessa fração de segundo ficou dito: esse sujeito está bêbado às quedas.

A função do clichê é passar informações rápidas sobre detalhes secundários para poder avançar a história e falar de coisas mais importantes. Para que essa informação seja passada rapidamente, a imagem tem que ser clara, direta inequívoca: esse sujeito está bêbado, aquela moça mora sozinha e trabalha muito. O clichê se justifica como um atalho na descrição ou na exposição, para conduzir a narrativa ao que realmente importa, ao que de fato interessa. O problema é quando os clichês se sucedem, os lugares-comuns vêm um atrás do outro, e só levam a novos lugares-comuns e novos clichês. Aí percebemos que o autor não tem muita coisa a dizer, está simplesmente repetindo coisas que já viu e que aprendeu a fazer, mas que em si não dizem muito – é como aqueles músicos que ficam a tarde inteiro “praticando escalas”, tocando dó-ré-mi-fá-sol-fá-mi-ré-dó, para ficar com os dedos mais ágeis, mas a música em si nada diz, não desperta emoção estética alguma.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

1278) Afeganistão: Cabul (18.4.2007)




Quando eu tinha 7 ou 8 anos ficava de Almanaque Mundial em punho, decorando as capitais do mundo. Para quê? Não sei, mas para um agnóstico precoce um almanaque era um bom sucedâneo para as Escrituras Sagradas. Tudo que tinha ali era verdade. Sendo verdade, valia a pena saber de cor – pois nunca se sabe. 

Todo o meu conhecimento sobre o Afeganistão residia nas duas palavras acima, até o dia em que os talibãs explodiram as estátuas de Buda no flanco da montanha. Confesso que quando George W. Bush invadiu o país algum tempo depois, sob o esfarrapadíssimo pretexto da estar caçando Osama Bin Laden, pensei: “Bem feito para todos dois”.

O que aconteceu foi que de repente o Afeganistão começou a existir, não só para mim, mas para o mundo ocidental em peso. Prova disto é a quantidade de livros com “Cabul” no título que a gente encontra no balcão da livraria. 

O mais conhecido é O livreiro de Cabul, reportagem de uma jornalista norueguesa que ficou algum tempo hospedada na casa do tal livreiro, e depois escreveu um livro, o qual tem vendido que só pipoca em comédia. 

Em princípio o livro seria uma louvação do esforço do livreiro para manter acesa (digamos) a chama da cultura num país devastado pela intolerância religiosa e depois pela guerra; mas a jornalista, norueguesa que é, não foi embora sem fazer suas críticas ao machismo e ao patriarcalismo local. Vai daí que agora surge outro livro: Eu sou o livreiro de Cabul, em que o personagem do primeiro contesta a norueguesa e defende seus próprios valores.

Cabul no Inverno é um relato (meio pessimista, ao que parece) do pós-guerra no país, e acaba de chegar às livrarias As andorinhas de Cabul, um romance que se passa no Afeganistão pré-invasão norte-americana. E tem também Mulheres de Cabul, outra reportagem de viés feminista, retratando as muitas repressões específicas sobre as mulheres afegãs, cujo destino popularizou no Ocidente, nos últimos anos, outra palavra: “burka”. 

E na capa deste último livro vi uma foto que me deu um sobressalto. A foto mostra algumas meninas, trajando a pesada burka das mulheres afegãs, amontoadas em um lugar qualquer e fotografadas de perto, olhando para a câmera.

Esta foto me lembrou de imediato outra, parte da famosa série tirada pelo fotógrafo Flávio de Barros na Campanha de Canudos. É a foto das pessoas aprisionadas pelas tropas federais nos últimos dias de combate no Belo Monte: uma pequena clareira com centenas de mulheres e crianças andrajosas sentadas no chão. 

Um detalhe desta foto, ampliado, foi utilizado na capa da edição dos Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles sobre a Guerra de Canudos. É a imagem de uma mulher inesperadamente bela, com duas crianças, o olhar abatido, sem rumo. As duas fotos são reproduzidas em tom sépia, e em ambas existe a mesma granulação, os mesmos andrajos, a mesma expressão perdida. 

Dá o que pensar, cem anos depois. Afeganistão: Canudos.






1277) A via-crucis de Romário (17.4.2007)



Escrevi aqui (“A romaria de Romário”, 6 de fevereiro) sobre a campanha do grande Baixinho rumo ao seu milésimo gol. Tudo estava bem encaminhado. Romário marcou 9 gols em apenas 3 jogos, contando até (ninguém me convence do contrário) com uma pequena colaboração dos juízes (marcando pênaltis e mais pênaltis) e de alguns goleiros que iam nas bolas sem muita convicção, em jogos cujo resultado já estava definido, e um gol a mais não faria diferença.

Quando ele atingiu o 998, o Rio de Janeiro (cidade movida a marketing) se mobilizou inteiro para o milésimo. Quem não mora na cidade não tem a proporção da coisa; ouve o alarido das tevês e das rádios, mas ouve à distância. Num dos jogos em que ele poderia ter o feito o Gol Mil, saí passeando pelas ruas do bairro do Flamengo, num domingo às seis da tarde, e onde houvesse um TV ligada as calçadas estavam cheias de cadeiras, e de gente em pé, assistindo e esperando. E não eram apenas os futeboleiros habituais. Vi famílias inteiras, o cara levando a mulher, os filhos pequenos sentados no colo... Tudo isto para quê? Para um dia o menino dizer, aos cinqüenta anos: “Eu vi o gol mil do Romário”.

Por enquanto ninguém viu ainda, e eu culpo o próprio Baixinho. Na semana que antecedeu o jogo Vasco x Flamengo, quando ele tinha 998, o “Globo Esporte” descobriu um gol que a equipe dele não tinha computado, o que elevaria o número para 999. Marrento, ele recusou e devolveu o presente: “Fica de lambuja”, disse ele ao microfone. No domingo, o Vasco deu uma sapatada de 3x0 no Flamengo, e ele fez o terceiro gol, um golaço. Tivesse aceito o gol recém-descoberto, aquele teria sido o Gol Mil, e era um gol para entrar na História, o terceiro de uma vitória esmagadora sobre o maior rival. Haveria flashes espoucando até agora.

Mas não quis. Não quis, e daí em diante, como dizem os jogadores, “a bola não quis mais entrar”. Jogos e mais jogos sem nada acontecer, inclusive este último Vasco 4x4 Botafogo, em que durante os 90 minutos Romário ficou com a bola (segundo a TV-Globo) exatamente 10 segundos, o tempo de driblar um zagueiro e chutar por cima do gol. O Vasco perdeu nos pênaltis, caiu fora do Campeonato, e a equipe de produção do Baixinho ficou com uma festa adiada nas mãos. Pior são os técnicos de marketing dizendo cobras-e-lagartos dele, dizendo que o rapaz amarelou. Pois é, agora, só em maio.

Quando vocês revirem os gols e as jogadas fantásticas de Pelé na Copa de 70 (o chute a gol do meio de campo, o drible de corpo no goleiro uruguaio, o salto de dois metros para cabecear contra o gol da Itália) lembrem que aquele cara tinha 29 anos e mil gols no currículo. Estava num clímax que ninguém jamais igualou. Romário merece fazer mil gols, e até mais. O que não merece é passar por um sofrimento tão grande. O peso do marketing está sendo excessivo para um cara que tem 41 anos em cada panturrilha.

1276) A areia da ampulheta (15.4.2007)



Muita gente experimenta a sensação de que, à medida que os anos passam, vão ficando cada vez mais curtos. Tenho várias teorias para explicar este fato inusitado. Quando tínhamos dez anos de idade, um ano parecia uma coisa interminável, que não iria acabar nunca. Pensávamos nas férias de fim de ano e achávamos que quando elas chegassem estaríamos decrépitos, de barbas brancas. Hoje, doze meses passam assim: vupt! Quando a gente menos imagina, lá vem a Micarande de novo.

Leon Tolstoi tinha uma boa teoria, baseada nas proporções. Dizia ele: “Para um menino de cinco anos, um ano é 1/5 do tempo que ele experimentou, ou seja, é muita coisa. Para um velho de 80 anos, é apenas 1/80”. Faz sentido, porque corrobora uma verdade intuitiva que descobri sozinho: nossa mente desconhece o Passado e o Futuro, conhece apenas o Presente, e este corresponde à memória de todas as nossas experiências. Tolstoi aos 80 anos tinha um Presente com esta mesma extensão, quase incomensurável, mas o preço disto era que um ano, lá dentro, sumia de vista.

Há teorias segundo as quais os anos estão mais curtos devido a um processo astronômico qualquer, e que nossos calendários e a nomenclatura das quatro estações não correspondem mais às voltas da Terra em torno do Sol. Mas a Ciência discrepa.

Outra teoria diz: imagine uma ampulheta, um relógio-de-areia. A parte de cima está cheia de areia, a qual começa a escorrer, num filete fininho, pelo orifício, para se depositar na metade de baixo. A areia da parte de cima foi cuidadosamente nivelada, de modo que corresponde a um círculo colocado num plano horizontal. Este círculo é Um Ano (ou um dia, ou um mês, o que quisermos). Seu diâmetro depende de quê? Depende da quantidade de areia que resta para se escoar. À medida que lá embaixo a areia vai escoando, o volume total da parte de cima se reduz, a areia como um todo vai descendo, e o círculo plano da sua superfície vai se reduzindo em tamanho. O sujeito olha para o lado de repente e pensa: “Oi... Diminuiu?!”

Esta redução explica também a sensação que temos, ao longo da vida, de que o mundo vai ficando pequeno. As distâncias físicas diminuem, porque automóveis e aviões são mais rápidos. As distâncias psicológicas também, graças ao fax, ao DDD e DDI, à Internet, ao Skype. A cada encolhimento do Espaço, corresponde um encolhimento proporcional do Tempo. Se hoje a gente transpõe mil quilômetros num pulo, por que não transporia mil dias?

E a vida segue, construindo seus castelos numa areia que não pára de se escoar por um ralo invisível, numa hemorragia poenta, paciente e fatal. Daí a pouco o círculo de cima já está deste tamanhinho, e parece ainda menor pela quantidade de coisas que ali edificamos, planos, projetos, sonhos, tudo já se atravancando e se esbarrando num circulozinho cada vez menor; mas já nos acostumamos a ele, estamos ali há tantos anos que temos todo o direito de achar que ele vai permanecer ali ininterrupt

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

1275) O realismo camuflado (14.4.2007)


(A Ceia de Dali)

Dois quadros famosos que exemplificam bem a questão do Realismo são as recriações da Última Ceia de Cristo, por Leonardo da Vinci e por Salvador Dali. O primeiro todo mundo conhece; o segundo pode ser achado no “Google Imagens” sob o título “The Sacrament of the Last Supper”. À primeira vista, a ceia de Da Vinci é realista e a de Dali é fantástica. Na primeira, há um recinto normal, pessoas retratadas de forma costumeira, coisa e tal. Na segunda temos uma sala que mais parece um cenário de ficção científica, com estruturas que ora parecem de metal maciço, ora parecem transparentes; o corpo de Cristo também é parcialmente transparente (podemos avistar através dele os barcos amarrados ao ancoradouro).

Um exame mais demorado, no entanto, nos mostra que não é bem assim. Ambos os quadros são uma mistura equilibrada entre o realismo e o não-realismo (não direi propriamente o Fantástico, mas o Improvável). A Ceia de Da Vinci é um retângulo deitado com uma composição em X, centralizada na cabeça de Cristo. Sempre me intrigou o fato de a gente ver treze pessoas sentadas de um lado só da mesa. O lógico, o realista, seria que estivessem distribuídos em torno dela (como aliás estão, na Ceia de Dali), mas havia na época uma convenção pictórica que fechava os olhos à lógica. A impressão que nos dá é que havia um pintor na Ceia e eles ficaram todos de um lado da mesa para todos poderem aparecer de frente. (Uma situação já satirizada por Luís Buñuel em Viridiana, na cena da ceia dos mendigos, em que posam para uma “fotografia”).

No quadro de Dali, todos os apóstolos têm corte de cabelo moderno, tipo anos 1950, o que diminui seu possível realismo. Mas devemos ter mente que o quadro de Da Vinci é também uma reinterpretação de cabelos, barbas e vestes da época de Cristo, feita no século 15, e nada nos garante que haja uma preocupação realista. A pintura sacra de todos os séculos cansou de mostrar centuriões romanos e apóstolos judeus vestidos nos trajes da época do pintor. Há um traço realista que passa despercebido, mas me parece essencial: as dobras da toalha da mesa. Da Vinci mostrou este precioso detalhe, e Dali aperfeiçoou como só ele sabia fazer. Quando desdobramos uma peça de tecido (toalha, lençol, etc.) vemos nela as marcas da dobra, formando retângulos traçados por vincos alternadamente salientes ou em forma de sulcos. É um detalhe meio imperceptível, mas que nos dois quadros me dá uma sensação de realismo maior do que todo o restante.

Última nota: a ceia de Da Vinci é um dos quadros mais copiados do mundo. As únicas reproduções autênticas são as que mostram, abaixo da figura de Cristo, a parte superior de uma porta, pois a pintura original está na parede do refeitório de uma igreja em Milão. Parte da pintura foi destruída há séculos para a abertura desta porta. Um sacrilégio, mas simbólico: não será o próprio Cristo uma porta, já que ninguém vai ao Pai senão por ele?

1274) “300” (13.4.2007)



O filme de Zack Snyder, baseado na história do quadrinhos de Frank Miller, é uma dessas experiências em que todos os esforços se destinam à reconstituição do visual que lembre as “graphic novels”. Pelo que li, o filme foi rodado em um mês e meio, e depois passou por mais de um ano de pós-produção, em que cada tomada foi submetida a sucessivos tratamentos de software para ganhar aquele visual meio granulado, meio descolorido, que é o seu principal trunfo estético.

Em termos de roteiro, é uma defesa do militarismo, com alusões à política americana atual, que não sei até que ponto são voluntárias ou inadvertidas. Claro que o lado pró-americano é o mais visível. O filme defende a importância de se manter uma elite de guerreiros super-treinados, que podem facilmente, em inferioridade numérica, derrotar uma tropa de soldados amadorísticos, desorganizados. Esparta é até hoje, merecidamente, o símbolo de uma civilização de soldados, coisa em que muitos norte-americanos gostariam de ver transformado seu país.

Por outro lado, os espartanos são os invadidos, não os invasores. Se fôssemos comparar o filme à situação do Oriente Médio, eles poderiam ser comparados aos afegãos ou aos iraquianos que se sacrificam tentando repelir um exército muito superior. Analogia reforçada pelo fato do rei Leônidas ser a cara de Osama Bin Laden. Rodrigo Santoro, concordo, não lembra muito George W. Bush; mas o estilo afetado, efeminado e sibarita do Rei Xerxes lembra muito mais o lado decadente da civilização norte-americana do que a cultura talibã. Pode-se ver no filme uma alegoria de um país menor e mais pobre, porém digno e ascético, sendo invadido por uma potência riquíssima e pervertida.

A imprensa caiu de pau (o “Globo” publicou um artigo histérico e divertido de Arnaldo Jabor) na violência do filme: decapitações, mutilações, estripamentos, etc. Esse tipo de violência explícita descrita em câmera-lenta começou com Sam Peckinpah, e hoje se beneficia das tecnologias de animação que aceleram os movimentos intermediários e retardam o instante do orgasmo sádico em que um guerreiro traspassa o outro com a lança, mandando borrões de tinta vermelha em todas as direções.

Jabor tem razão em vários aspectos. A violência do cinema norte-americano atual parece ter a função de nos anestesiar, de nos embrutecer, de nos tornar cada vez menos sensíveis à violência, a fim de permitirmos que ela se propague. Qualquer coisa que aconteça, o sujeito dá de ombros e diz: “Ah, no cinema eu já vi coisa muito pior do que isso”. Existe no gênero do filme-de-guerra um limite muito fluido entre glorificar a coragem e glorificar a crueldade, entre mostrar a bravura e mostrar o sadismo. A proibição do sexo gerou a pornografia, um sub-gênero onde mostra-se apenas sexo o tempo todo, sob as formas mais mirabolantes. A violência, menos reprimida, está cada vez mais ganhando uma pornografia própria.

1273) A reciclagem de clichês (12.4.2007)



Um escritor de ficção científica disse uma vez: “Nunca use uma idéia que você aprendeu na televisão. A TV é o fim da cadeia alimentar das idéias. Quando ela chega lá, já sugaram todas as proteínas que ela poderia ter pra dar”. O cara que disse isto não tinha preconceito contra coisas modernas, pelo contrário, era um cara que escrevia FC. Mas, por isto mesmo, era capaz de visualizar o trajeto de uma idéia no mercado das histórias.

Suponhamos uma boa idéia. Digamos: “Um mundo-simulação onde os personagens eletrônicos pensam que são gente de carne-e-osso”. Publicada num livro, ela fica hibernando ali durante dez, vinte anos, sendo conhecida apenas pelas dez ou vinte mil pessoas que leram aquele livro (estou falando em mercado norte-americano). Mas é uma boa idéia, e cedo ou tarde um produtor esperto ou um roteirista teimoso consegue comprar os direitos do livro.

Enquanto isto, no mercado literário, a idéia não foi esquecida. Já se criaram variantes, já se escreveram livros tentando desmenti-la, e quem leu estes livros também leu o livro que os inspirou. Dentro do mercado da literatura de gênero (FC, policial, terror, etc.), este tipo de diálogo, de “feedback” é costumeiro, é a respiração normal de uma literatura. Todos estes livros provocam resenhas, críticas, respostas, e a idéia original volta a ser debatida, dissecada, melhorada, enriquecida.

Seguem-se mais alguns anos de tentativas de fazer o filme, que acaba sendo feito, e estréia 25 anos depois do livro original ter saído. O filme passa meio despercebido, mas quem leu o livro corre e vai vê-lo. Isto provoca um novo surto de interesse pela idéia, brotam novos textos, contos, um ou outro romance. Ao mesmo tempo, o filme também chama a atenção de outras pessoas na indústria. Poucos anos depois, um roteirista esperto adota a idéia e bola em cima dela outra história. Atores famosos topam estrelar. O filme é feito, e vira um arrasa-quarteirão. Dois anos depois, há uma dúzia de filmes semelhantes sendo feitos, todos em cima da mesma idéia.

A esta altura, no meio literário ninguém agüenta mais falar naquilo, até porque neste intervalo não pararam de aparecer idéias novas e diferentes. O sucesso de alguns daqueles doze filmes provoca seqüências, paródias, novelizações, quadrinhos. E, logo depois, uma série na TV. Que leva algum tempo para ser produzida, e quando vai ao ar é vista por um adolescente (ou por um adulto meio desligadão) que pensa: “Puxa vida! Um mundo-simulação que pensa que é real! Que idéia maneira! Como é que ninguém pensou nisto antes? Vou escrever uma história!” Meu conselho é: escreva, sim, companheiro. Eu não fiz outra coisa em minha vida senão seguir estes impulsos. Mas – não se iluda. Você vai estar reinventando a pólvora. Mesmo que o que você venha a produzir seja pólvora mesmo, e da boa, você não será nunca o Inventor, será apenas um fabricante a mais de um troço que todo mundo já conhece.

sábado, 19 de setembro de 2009

1272) Borges e “O Justiceiro” (11.4.2007)



Um dos contos mais atuais de Jorge Luís Borges é “Deutsches Requiem” (no livro O Aleph). Nele, o nazismo é mostrado pelo lado de dentro, pelo ponto de vista de um cara que acredita que aquele pesadelo é o futuro do mundo. Otto Dietrich Zur Linde, o narrador, vê com euforia a ascensão do nazismo e sua expansão devastadora pela Europa. No final, quando o resto do mundo se ergue contra Hitler e o esmaga por todos os lados, ele ainda consegue ver nisto uma vitória. Suas palavras finais são: “Ameaça o mundo agora uma época implacável. Nós a forjamos, nós que já somos sua vítima. Que importa que a Inglaterra seja o martelo e nós a bigorna? O importante é que reine a violência, e não a servil timidez cristã. Se a vitória e a injustiça e a felicidade não são para a Alemanha, que sejam para outras nações. Que o céu exista, mesmo que nosso lugar seja o inferno”.

A monstruosidade da ideologia é reforçada, por contraste, pela beleza poética desta última frase, que encerra a mais altruísta das filosofias. Zur Linde exprime aquilo que Borges mais detestava e desprezava, mas o autor cede ao personagem sua melhor inspiração literária. Para quê? Para evitar a caricatura, mostrar que o Nazismo é uma doença mental que pode acometer a qualquer um. O nazismo veio para implantar o terror, a guerra, a loucura à mão armada. Veio para ameaçar o mundo com uma monstruosidade tão absurda e desmedida que para destruí-la, para torná-la inviável, foi preciso criar “um monstro ainda maior, e ainda mais monstro”. E o reino dos monstros começou de fato a imperar sobre a Terra.

Hitler afirmou certa vez: “Quem quiser viver é constrangido a matar. Martelo ou bigorna. Minha intenção é preparar o povo alemão para ser o martelo”. Esta frase estava (me parece óbvio) na memória de Borges quando ele compôs o fecho do seu conto. Zur Linde vai além de Hitler, pois percebe que a função do nazismo era trazer para o mundo A Lei do Martelo e da Bigorna, e para que isto acontecesse era indiferente qual dos dois a Alemanha viria a ser.

Na história em quadrinhos O Justiceiro, escrita pelo irlandês Garth Ennis, na última parte do episódio “Nascido para matar”, ambientado na Guerra do Vietnam, lemos a certa altura:

“Há uma grande Besta-Fera à solta no mundo dos homens. Ela despertou em tempos sombrios para enfrentar um terrível inimigo. Percorreu a Europa e o longínquo Pacífico, esmagando o Mal que encontrou pelo caminho. No entanto, quando foi vitoriosa, quando a perversidade da Cruz Gamada e do Sol Nascente teve fim, os guardiões da Besta-Fera julgaram por bem não devolvê-la ao seu sono. A Fera tem muitas cabeças, cada qual com um nome escrito: Lockheed, Bell, Monsanto, Dow, Grumman, Colt e muitos mais. E elas são muito famintas. Por isso, a Fera deve se alimentar... e, a cada geração, nosso país vai à guerra pra garantir seu sustento”. A Fera que nos livrou de Hitler está à solta, mas quem vai nos livrar da Fera?

1271) A escada do poder (10.4.2007)



(Wilson Mizner)

Sou um grande aprendedor, ou, na feliz expressão de Jessier Quirino, um “prestador de atenção”. Dou ouvidos a todo mundo e nunca me arrependi disto. 

Uma das pessoas a quem dou ouvidos de vez em quando (vemo-nos uma ou duas vezes por ano, se tanto) é um conhecido meu a quem chamarei ficticiamente Ascenso Seguro. Conheci-o no Baixo Leblon, por entre chopes cremosos e pizzas no palito. 

Ascenso tinha uma atuação incessante na área cultural, foi nomeado para um cargo qualquer do quinto escalão, projetou-se, apareceu na mídia, fez amizades, entrou na política, e hoje pontifica num escalão que aos meus olhos leigos deve ser segundo ou terceiro. 

Ascenso é solícito, é infatigável, e tem uma qualidade que o distingue em nosso ambiente cultural: está de bem com todo mundo, fala bem de todo mundo. Num meio famoso pela maledicência-pelas-costas, nunca o vi dizer que Fulano é burro ou que Fulana é feia. É o tipo do cara que ajudaria a levar o cavalo de madeira para dentro de Tróia, e que, depois de fechado o portão, contaria tudo aos troianos. 

“O segredo,” confidenciou-me ele meses atrás, numa madrugada repleta do Nova Capela, durante um cabrito-com-brócolis, “é imagem. O que você é, é problema seu, mas o que as pessoas vêem em você é problema da comunidade. É como no futebol. Quando um técnico lhe escala, não é porque gosta de você ou acha que você é um cara legal. É porque precisa de alguém para cobrir os avanços do lateral esquerdo, ou porque precisa de alguém para triangular na ponta e cruzar bolas na área”. 

“Ah, entendi,” falei eu. “A imagem da gente tem que passar duas coisas: potencial, e disponibilidade”. 

Ele retrucou: “Cara, você é muito inteligente, já podia estar em Brasília. Pois é isso mesmo. Mas tem outra coisa: você precisa olhar os dois lados da escada, o de cima e o de baixo. O grande erro dos caras é que eles só olham para cima, para os caras que estão nos degraus superiores, e que podem lhes dar uma chance. Tem que olhar para os degraus de baixo também. A humanidade se divide em dois grupos: os Figurões e os Figurantes. Não adianta de nada você estar de bem com os Figurões e ter uma multidão de Figurantes querendo botar terra no teu motor”. 

Vai daí que Ascenso Seguro tem uma atuação social irrepreensível. Todo dia no Natal e no meu aniversário recebo um cartão personalizado com abraços efusivos, e deduzo que o mesmo acontece com outras mil pessoas. 

Ascenso recorda os nomes dos meus filhos, os títulos de meus livros (pelo menos de alguns deles), e – devo ser justo – me trata com cortesia irrepreensível e uma simpatia sincera. Talvez porque tenha sido eu quem, num desses papos de mesa de bar, citou-lhe a frase de Wilson Mizner, famoso alpinista social norte-americano: “Trate bem as pessoas quando estiver subindo na vida, porque você vai encontrá-las de novo quando estiver descendo”. 

Ascenso gravou este dito a-ferro-em-brasa na memória, e desde então passou a me tratar melhor ainda.




1270) Poluição visual (8.4.2007)



Conversando com amigos paulistanos fiquei sabendo de uma façanha recente da prefeitura local. Estou vendendo pelo preço da fatura, portanto, se me equivocar em algum detalhe peço desculpas antecipadas ao burgomestre. Ao que parece, a administração municipal está trabalhando para reduzir a poluição visual na cidade. Ação que, em tese, eu subscrevo inteiramente. Hoje em dia a gente não pode andar na rua sem ser assaltado por uma profusão indescritível de placas, cartazes, displays, letreiros pintados, letreiros modelados, out-doors, o escambau. Marquises, fachadas, muros, paredes, postes, calçadas, onde quer que haja meio metro de espaço livre vai alguém e enche de “reclames”: ‘CHAVEIRO ENCANADOR ELETRICISTA 24 HS” – “ALISA-SE CABELO E FAZ ESCOVA” – ‘LANCHONETE NOSSA SENHORA APARECIDA XISBURGUER XISTUDO E PÃO NA CHAPA” – e assim por diante. Dá um livro.

Por que tanta propaganda? Principalmente pelo fato de que o brasileiro vive do pequeno comércio, dos pequenos serviços. Com o quê, aliás, eu simpatizo, porque detesto mercados monopolizados por meia-dúzia de companhias gigantescas. Já pensou se somente o MacDonald’s e o Bob’s tivessem licença para vender xistudo? O brasileiro é descolado, ativo, tem iniciativa, adora não ter patrão e fazer as coisas por si próprio. Vai daí, surge essa proliferação da mini-economia. O problema é que, quanto menor a bodega, maior a placa que ela precisa afixar para mostrar que existe. E não só maior, como pintada em tinta acrílica, com letras vermelhas e azuis sobre fundo amarelo berrante.

Proibir? Nem pensar. Padronizar tudo num só tipo de placa? Errado: parece coisa stalinista para facilitar a vida dos burocratas e deixar os usuários unanimemente invisíveis naquela mar de monotonia. Estabelecer critérios máximos de tamanho, colocação, etc.? Talvez, porque Dona Fulana tem direito de avisar aos passantes que faz bolos e tortas por encomenda, mas não precisa de seis metros de muro para dizer isto.

Enfim – soluções existem, basta haver inteligência, bom senso e boa vontade de parte a parte. (Por outro lado, pense em três coisas difíceis de se encontrar hoje em dia!) Mas o prefeito paulistano inventou uma solução radical: mandou proibir placas de qualquer natureza, inclusive as placas e cartazes nas portas do teatro. E a classe teatral está se insurgindo contra esta medida estapafúrdia. Porque uma coisa é a Pirelli ou a Ambev ocupar 150 outdoors pela cidade afora anunciando seus produtos, e outra coisa é um teatro, que só funciona ali naquele ponto, colocar em sua própria porta os cartazes das peças que estão ou estarão sendo em breve oferecidas ao público. A coisa mais difícil do mundo é administrar interesses conflitantes. Ser síndico é mais difícil do que reger uma ópera. Tiro meu chapéu para quem encara uma tarefa tão difícil, mas será que não dá para resolver essas coisas sem recorrer à Solução Herodes?

1269) Estatização vs. Privatização (7.4.2007)



Não vou entrar no mérito desta questão, porque não é muito a minha praia, assim como não é a praia de 99% dos brasileiros. Ouço o barulho da briga, mas como ocorre no andar de cima fica difícil de escolher por quem torcer, até porque tudo que a gente escuta são os insultos que cada um dispara na direção do outro. Já percebi que em questões altamente polêmicas cada um dos oponentes não está discutindo com o outro, mas com a Caricatura do Outro. Está olhando para o outro e enxergando apenas aquela meia-dúzia de traços característicos do outro, exagerados desproporcionalmente, inchados, deformados, criando uma figura ao mesmo tempo muito parecida e muito diferente da verdadeira fisionomia do Outro.

É isso que acontece, por causa de nosso arrebatamento emocional e de nossa formação intelectual precária, quando vamos discutir qualquer questão um pouco mais complexa. Evolucionismo vc. Criacionismo. Brecht vs. Stanislawski. Poesia Praxis vs. Poesia Concreta. Armorialismo vs. Tropicalismo. Estou colocando apenas algumas polêmicas famosas que ocorreram ou ainda ocorrem em diversos campos, e, mais uma vez, não entro do mérito de quem está certo ou quem está errado. O que percebo é a retórica que acompanha todas as discussões.

Para os partidários da Privatização, o Estado é um polvo gigante e obeso que oprime o cidadão, tiraniza seu cotidiano, restringe sua liberdade, impõe-lhe produtos padronizados e de má qualidade, é incapaz de gerir com competência os milhares de negócios que arrebatou às mãos indefesas da iniciativa privada, gasta tudo que tem para sustentar uma burocracia proliferante e ociosa, abre mil canais clandestinos para corrupção, desvio de verbas e suborno, aumenta impostos sem dar nada em troca, suga todas as riquezas do País como um sumidouro sem fundo.

Para os partidários da Estatização, a iniciativa privada, ou o Mercado, é uma selva sem lei, onde só vence o mais forte, mais rico ou mais desonesto, um cassino desenfreado de enriquecimento às custas do consumidor, uma luta desleal em que as grandes redes e os monopólios esmagam as pequenas iniciativas individuais, um jogo de cartas marcadas em que o país é loteado entre meia dúzia de tubarões insaciáveis, uma disputa feroz que, sem a mediação do Estado, nada mais é do que uma guerra de gangues para ver quem enriquece mais rapidamente e sai correndo para os paraísos fiscais, deixando a conta para ser paga por quem vier depois.

Isto é o que cada um diz do outro. Isto é o que escuto nos balões de diálogo no andar de cima, por entre trompaços, pescoções, derrubada de mobília, quebra-quebra de pratos. Qual dos dois tem razão? Qual dos dois tem razão em qualquer briga, em qualquer polêmica? Difícil de dizer, porque eles mesmos não sabem. Não estão brigando com o Outro. Estão brigando com a Caricatura do Outro, como o Monstro do Outro, com o medo que sentem do Outro.

1268) “Fernando e Isaura” (6.4.2007)



O primeiro romance de Ariano Suassuna, de 1956, só foi publicado 38 anos depois. O autor o considerou um “exercício de juventude”, um afiar de lâminas para a batalha mais séria que viria a seguir, o Romance d’A Pedra do Reino, elaborado entre 1958 e 1970. Comparado a este, Fernando e Isaura é um trabalho menor, uma noveleta sem a profundidade ou a amplitude do outro livro, o qual, escrito depois, foi publicado primeiro, e tornou-se o termo de comparação para tudo que o autor viesse a publicar em seguida.

Fernando e Isaura é um conto de amor impossível, amor fadado à tragédia desde o começo. A ação se passa entre Alagoas e Pernambuco. Fernando é um rapaz órfão, criado pelo tio, Marcos, um fazendeiro viúvo. Um dia, numa viagem, ele se mete numa briga, é ferido e passa dois dias com febre, delirando. Quem ajuda a cuidar dele é uma moça dessa cidade, Isaura. Algum tempo depois, é justamente esta Isaura que Marcos pede em casamento, e como não pode ir pessoalmente, encarrega o sobrinho, que ele ama como um filho, de fazer o casamento em seu lugar, por procuração. Dias antes da data do casamento, Marcos encontra por acaso Isaura, numa cidade próxima. Ele não sabe que ela é a noiva do tio, e apaixona-se por ela. Ela não sabe quem é ele, apenas reconhece o rapaz de quem tratara, e por quem se apaixonara desde então. Os dois são fulminados por uma fatídica paixão à primeira vista. Só depois que passam uma noite juntos descobrem suas verdadeiras identidades, e se desesperam.

Seguem-se outras peripécias, que não revelarei para não estragar a leitura (o livro foi publicado pelas Edições Bagaço, de Recife). Como as histórias baseadas nas lendas medievais, o Acaso e o Destino têm um papel importante na ação. As coincidências e os equívocos de identidade acontecem de maneira tão inesperada que aquilo, pensa o leitor, não pode deixar de ser manobrado por alguma Força Cósmica. Estamos aqui diante de um dos principais mecanismos do melodrama, um mecanismo tão poderoso que é usado, nem sempre de maneira sábia, há trezentos anos.

Na “Advertência” escrita para publicação, em 1994, o Autor confessa-se meio constrangido por oferecer ao público de hoje, principalmente aos jovens, uma história “tão fora de moda”. Ele não diz isto por achar que os sentimentos expressos no livro estão superados, mas por considerar que “os conflitos que, por causa da paixão, atormentam, aqui, os personagens, provavelmente não serão nem sequer entendidos pela geração formada por educadores que procuram fechar os olhos até para a realidade monstruosa do crime, contanto que não sejam forçados a admitir a verdade de qualquer norma moral.” E acha também que uma história tão apaixonada será esnobada “neste tempo de autores frios, lúcidos e impiedosos”. O autor é pessimista demais; “Fernando e Isaura” tem o carisma das grandes tragédias, e, com meia dúzia de bons atores, daria um excelente média-metragem.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

1267) As capas de Rosa (5.4.2007)



Estive folheando edições antigas dos livros de Guimarães Rosa em busca de ilustrações para um trabalho, e me dei conta do quanto a obra do escritor mineiro foi graficamente malbaratada nos últimos anos. Desde logo quero fazer a ressalva de que em 2006, ano do cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile, e do sessentenário de Sagarana, a editora Nova Fronteira produziu edições de luxo caprichadíssimas, que ainda não adquiri por estar esperando um câmbio favorável. Espero que signifiquem uma espécie de “mea culpa” pelo empobrecimento gráfico que a Editora impôs à obra, depois que adquiriu seus direitos (que pertenciam à José Olympio).

As primeiras edições da Rosa, pela José Olympio, eram cheias de ilustrações feitas por artistas gráficos como Poty ou Luís Jardim, que trabalhavam em parceria com o autor. Desenhista hábil, Rosa fazia esboços das figuras que tinha em mente e as repassava para os artistas. Dava atenção especial a certos símbolos meio cabalísticos, meio astrológicos, que ele não explicava – apenas encomendava, e os artistas reproduziam. Em Primeiras Estórias, Rosa bolou um esquema que, pelo que eu me lembre, não tem similar na nossa literatura: o índice ilustrado, que aparece nas orelhas e no interior do livro. Cada um dos 21 contos do livro recebe uma ilustração horizontal que consta de uma série de pequenas figuras de pessoas animais, paisagens, etc., reproduzindo os aspectos distintivos de cada conto. Variantes destas ilustrações aparecem na capa e na contracapa, uma para cada um dos contos.

Rosa gostava de letras gregas, de símbolos matemáticos: o Grande Sertão: Veredas não se encerra pela palavra “FIM”, mas pelo símbolo gráfico do Infinito, o conhecido “oito deitado”. Tutaméia não tem ilustrações internas, a não ser algumas vinhetas gráficas padronizadas, mas sua capa é feita no mesmo espírito de Primeiras Estórias: uma colagem de pequenas figuras que, com alguma argúcia detetivesca, podemos ir aos poucos identificando como relativas aos contos do livro.

Depois que a obra de Rosa foi para a Nova Fronteira, o nível caiu assustadoramente. Preocupada em torná-la mais acessível aos leitores jovens (aos quais, invariavelmente, se atribui uma combinação de desinformação e amor ao clichê), os livros de Rosa adquiriram uma programação gráfica padronizada: capa branca, título e nome centralizados, e na parte superior uma foto colorida da paisagem sertaneja, o que faz os livros ficarem parecidos com um Guia 4 Rodas. A família, ao que parece, não reclamou, porque as vendas aumentaram. Mas se você achar num sebo, caro leitor, exemplares das edições da José Olympio, com as ilustrações de Poty ou Luís Jardim, entesoure-as. Elas representam pontos altos de nossa inventividade literária na direção de uma integração real entre texto e imagem, algo que poucos escritores tentaram – somente Rosa, Suassuna, Valêncio Xavier, e meia dúzia de outros.

1266) Grandes árvores do mundo (4.4.2007)


(Ténéré, 1961)

Sou um admirador da Natureza, mais com olhos de cientista do que de poeta. “Que belo crepúsculo!” exclamam as pessoas, com os olhos marejados de romantismo; e eu concordo. Como não ficar comovido? Fico pensando na quantidade de refrações e de sub-refrações que aqueles raios luminosos estão realizando entre camadas sucessivas de nuvens, de vapor rarefeito, de poluição atmosférica. É impossível que aquela combinação peculiar de obstáculos ópticos ocorra outra vez. Aquele crepúsculo que estou vendo jamais se repetirá.

O saite “As Dez Árvores Mais Magníficas do Mundo” (http://www.neatorama.com/2007/03/21/10-most-magnificent-trees-in-the-world/) produz uma sensação parecida. Se admiramos obras da engenharia (pirâmides, muralhas, templos) como não admirar uma coisa bela que brotou sozinha, sem prancheta, sem mestre-de-obras, sem licitação pública? Neste saite vemos fotografias de árvores como a sequóia “General Sherman” na Califórnia, a árvore mais volumosa do mundo (cerca de 1.500 metros cúbicos, 6 mil toneladas). Curiosamente, mais volumosa do que ela parece ser (mas não é, por não ser tão alta) a “Árbol del Tule”, um cipreste em Oaxaca (México) que parece (desculpem-me o antropocentrismo) um projeto a quatro mãos entre Gaudí e Santiago Calatrava. Também curioso é o “Gigante Trêmulo do Utah”, um único organismo vegetal composto de 47 mil caules muito finos que se espalham por 107 acres de terra; a foto em preto-e-branco, sob a neve, é de emoldurar e pendurar na parede.

Está aqui a famosa sequóia com uma abertura na base de seu tronco por onde passa um automóvel (na verdade, há quatro árvores assim na Califórnia). Tem a árvore-igreja de Allouville-Bellefosse, na França, em que uma capela foi construída num carvalho oco em 1669. A árvore foi morrendo aos poucos e as partes mortas sendo substituídas por próteses de madeira, a tal ponto que hoje não se sabe mais o que é natural ou artificial.

Não há limite para os prodígios da Natureza – nem para a estupidez humana. Em 1964 um estudante estava extraindo amostras de uma árvore, nos EUA, quando a sua broca quebrou dentro do tronco. Ele pediu autorização ao Serviço Florestal para cortar a árvore e recuperar a peça. Fê-lo. E aí descobriram, pelo exame dos anéis internos do tronco, que a árvore tinha 5 mil anos, e era provavelmente, naquela época, a árvore mais velha do mundo. E há o caso da “Árvore Solitária de Ténéré”, uma acácia situada no Saara nigeriano, que sobrevivia solitária na areia (a foto é impressionante) graças a raízes com 36 metros de extensão. Era a única árvore numa área de 400 km, e possuía dois troncos paralelos. Em 1959, um deles foi destruído pela colisão de um veículo, deixando apenas um toco; em 1973, um motorista líbio, embriagado, derrubou o tronco restante, que foi levado para o Museu Nacional da Nigéria, e substituído no local de origem por uma escultura em metal. Não precisa muito mais para desmoralizar a Humanidade.

1265) Do cangaceiro ao traficante (3.4.2007)



Vi na TV uma entrevista com MV Bill, “rapper” que realizou documentários em vídeo como Falcão: Meninos do Tráfico, o qual foi exibido no “Fantástico” e provocou grande polêmica. A certa altura, Bill tocou no problema do que ele chama de “invisibilidade” do adolescente negro e pobre. Numa época em que os garotos começam a tornar-se homens, a definir sua personalidade, eles percebem que não existem. Ninguém olha para eles, ninguém se dá conta de sua presença – porque eles são negros e pobres. Só perdem essa invisibilidade (segundo Bill) quando pegam numa arma Um sujeito com um arma na mão todo mundo enxerga, todo mundo respeita.

Isto me lembrou um trecho do Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, no Folheto LXXIX, “O Emissário do Cordão Encarnado”, no qual Quaderna presencia o debate político-ideológico entre Adalberto Coura, o esquerdista romântico, e Arésio Garcia-Barretto, o individualista cínico e violento. Diz Adalberto que os rapazes sertanejos entram para o Cangaço sabendo que irão morrer muito cedo, mas achando que é preferível uma vida intensa com uma morte prematura do que uma vida longa mas cheia de humilhações, e sem sentido.

Diz Adalberto: “Por isso, não se importa de viver perseguido como um cachorro mordido. Sabe que esse é o preço que terá que pagar para poder possuir mulheres com as quais, antes, não poderia nem sonhar, as filhas de gente poderosa, lindas e orgulhosas, que passeavam os olhos por ele sem nem ao menos o avistarem, como se ele não existisse, e que agora o vêem, com espanto, terror e perturbação, vestido com sua Armadura de couro e com as insígnias de prata de sua realeza, aparecendo diante delas não mais como um ser ignorado e desprezado, mas como o temeroso Senhor de sua honra e de seu destino, o Emissário de uma vida cruel, selvagem, errante e guerreira, fascinadora e terrificante”.

Não pode haver descrição melhor para o que acontece com esses garotos de Morro que aos dezesseis anos já estão cobertos de colares de ouro e roupas importadas, com duas pistolas enfiadas no cinto e um AR-15 a tiracolo, desfilando no interior da favela como se fossem Reis. Sabem que vão viver pouco, mas não ligam. Estão vivendo muito.

Aqui no Nordeste celebramos e endeusamos os Cangaceiros porque eles são para nós os símbolos de uma vida livre e guerreira, de uma ruptura e de um inconformismo que, mesmo não tendo pretensões revolucionárias de mudar a sociedade (que algumas obras de arte lhes atribuem, projetando neles uma ideologia que é só do autor), romperam com a vida de servilismo e exploração, revoltaram-se contra um destino que lhes era imposto. O que admiramos neles não são os atos que praticam, é a coragem de terem deixado de praticar o que praticavam antes, e que, apesar de humilhante, era mais seguro. Como podemos, então, estranhar que algumas pessoas das favelas (não todas, nem muitas) façam desses novos cangaceiros os seus ídolos?

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

1264) Ariano Suassuna e Ray Bradbury (1.4.2007)




Não é brincadeira minha. Existe algo em comum entre o paraibano nascido em 1927 e o norte-americano nascido em 1920. Ambos criaram uma paisagem espaço-temporal própria que se identifica com sua própria infância, e ambientaram nela a parte mais emotiva e autobiográfica de sua obra. Nenhum dos dois é um saudosista que viva do Passado; ambos, apesar da idade, são hoje indivíduos ativos, lúcidos, e mergulhados nas lutas culturais e políticas do momento presente, em seus respectivos países. Mas na obra de ambos a infância e a memória têm uma importância crucial.

Bradbury passou a infância, nos anos da Grande Depressão, na cidadezinha em que nasceu: Waukegan (Illinois), um vilarejo do Meio Oeste. Quando tinha 14 anos seus pais se mudaram para Los Angeles. Ali ele se tornou escritor profissional e roteirista de Hollywood, mas em seus livros retornaria repetidamente para o ambiente de sua infância, onde situou alguns dos seus livros mais poéticos e imaginativos, como O País de Outubro (1955), O Vinho da Alegria (1957) e Algo sinistro vem por aí (1962). O ambiente da cidadezinha do interior é magicamente reconstituído e poetizado. Lá se misturam a excitação pelas descobertas da adolescência e o terror ao entrar em contato com os perigos do mundo. É de se notar a importância que tem na obra de Bradbury o “carnival”, que não é carnaval: é uma instituição tipicamente norte-americana, uma mistura de circo e de parque-de-diversões ambulante, cheio de brinquedos, prodígios e criaturas extraordinárias.

Ariano passou sua infância em Taperoá, até se mudar para Recife, onde mora. Foi numa Taperoá mítica, poetizada, que ele situou suas obras mais importantes, entre elas A Pedra do Reino. O Circo tem uma grande importância na formação da visão-do-mundo do autor e de seus personagens, como Quaderna. E nos folhetins em que a infância deste é recontada (O Rei Degolado e As Infâncias de Quaderna), a descoberta das belezas da vida (as caçadas, os cantadores, os folhetos de cordel, o teatro de mamulengos, as cavalhadas sertanejas) se dá juntamente com a descoberta da violência humana (as guerras políticas da Paraíba) e da tragédia cósmica (a Morte Caetana, mulher que se transfigura em Onça quando chega a hora de arrebatar as vidas humanas).

O romance mais importante de Bradbury, Fahrenheit 451 (1953) é, involuntariamente, uma homenagem ao Romanceiro Popular Nordestino, que Ariano sempre defendeu e sempre cultivou. Numa sociedade totalitária do futuro, onde a TV é obrigatória, os bombeiros são encarregados de queimar todos os livros. Os subversivos desse tempo são indivíduos que, para não serem presos por possuirem esses objetos proibidos, resolvem decorá-los, preservá-los na memória. (Nesse mundo, talvez Bradbury quisesse decorar Moby Dick e Ariano Os Sertões.) Não pode haver homenagem mais poética aos poetas da Tradição, ao Romanceiro, às cantigas antigas, às Literaturas da Voz.


1263) Nós, os paulistas (31.3.2007)




Em seu saboroso e enriquecedor livro Tropicalista Lenta Luta Tom Zé afirma a certa altura uma coisa que sempre me deixou, se não de cabelo em pé, pelo menos com a pulga atrás da orelha. Diz ele à pag. 97: 

“Outro paulista, Pedro Taques, historiador, hoje nome de estrada enganjenta, disse em Nobiliarquia Paulista que o caboclo nordestino descende dos primeiros bandeirantes de São Paulo, que chegaram ao Nordeste e preservaram a fibra e a vigilância moral justamente graças a esta solidão desamparada de migrantes. Ao contrário dos que, cá no Sul, degeneraram em ‘cruzamentos’ e maus costumes de uma vida cortesã”.

Apesar de ser basicamente um elogio, sempre li isto meio com o pé atrás. Parece coisa de baiano, dizer que nós paraibanos somos, no fundo, um bando de paulistas. 

Foi necessária a intervenção do carioca Euclides da Cunha (nascido, para ser escrupuloso, em Cantagalo) para confirmar esta teoria migratória em “O Homem”, a parte intermédia de Os Sertões, onde a certa altura ele diz:

“Da absorção das primeiras tribos surgiram os cruzados das conquistas sertanejas, os mamelucos audazes. O paulista – e a significação histórica deste nome abrange os filhos do Rio de Janeiro, Minas, S. Paulo e regiões do sul – erigiu-se como um tipo autônomo, aventuroso, rebelde, libérrimo, com a feição perfeita de um dominador da terra, emancipando-se, insurreto, da tutela longínqua, e afastando-se do mar e dos galeões da metrópole, investindo com os sertões desconhecidos, delineando a epopéia inédita das Bandeiras...”

A verdade é que o Rio São Francisco foi a vagarosa avenida que ao longo de séculos fez o escoamento destes aventureiros rumo ao Nordeste. Uns vinham em busca de ouro ou esmeraldas. Outros, mais afeitos aos livros de aventuras, vinham em busca de cidades como o Eldorado. Outros queriam apenas o que tanta gente prefere ter: uma vida livre, sem prestar contas a Seu Ninguém, e nas horas de aperto contando apenas consigo mesmo. 

Foram se fixando no vale do São Francisco, subiram, cruzaram o rio, cruzaram a fictícia fronteira entre o noroeste da Bahia e o sul do Piauí, derivaram na direção dos altos sertões do Cariri cearense, e dos extremos da Paraíba e de Pernambuco.

Criaram aqui uma civilização inteira, erigiram fazendas, mataram índios e onças. Um belo dia, parou à sua porta uma charrete e dela desceu um senhor de terno preto com uma pasta na mão. Era o fiscal do Governo, que vinha cobrar os impostos. “Governo? Que Governo?” exclamaram os “paulistas”. “Quem inventou isto aqui foi a gente”. 

Uma das principais tarefas civilizatórias do Brasil para o século 21 será integrar estas duas civilizações: a que veio por fora, em navios, atracando no porto e fundando capitais de Estado, e a que veio por dentro, desbravando o mato a facão, plantando algodão e criando gado. Todos são brasileiros. Problema vai ser achar um Brasil que atenda a todos.




1262) Ave Modigliani (30.3.2007)


(Modigliani)

Modigliani era um gênio, um dos grandes pintores do começo do século 20. O tratamento visual que ele deu à figura humana é inesquecível. Imprime-se em nossa memória para sempre, basta ter folheado aos quinze anos um álbum de seus quadros. Sua pessoa tem também aquela aura de romantismo e tragédia tão importantes para os tais adolescentes que adentraram o mundo da Arte em coleções como “Gênios da Pintura”. Consta que quando ele morreu no hospital, sua namorada, Jeanne Hébuterne, voltou correndo para a água-furtada onde os dois viviam, jogou-se lá de cima e morreu também. O que me lembra, ao revés, uma frase cínica e irretocável de H. L. Mencken: “Não importa o quanto uma mulher ama um homem, ela o amará muito mais se ele se suicidar por ela”.

Modigliani transformava todas as mulheres em silhuetas esguias, altas, longilíneas, como se, ao caminharem nuas pelo interior do quarto, elas estivessem sendo atraídas pelo Céu, pelo Grande Atrator da Beleza que provavelmente reside num Ponto Ômega qualquer do espaço. Elas têm uma sensualidade lânguida, epidérmica, mas inesgotável, capaz de ser ativada pelo toque da impressão digital correta. Uma vez, no Museu de Arte, exibimos O Ano Passado em Marienbad de Resnais, mas como o projetor não tinha a lente Cinemascope, exibimos o filme com a imagem distorcida, horizontalmente achatada, e o rebatizamos como “O Ano Passado em Modigliani”.

Mas Modigliani morreu jovem. Pintou sei lá quantos quadros, mas pintou pouco em comparação ao que teria pintado se tivesse vivido mais. Por falar nisso, Picasso, que morreu com mais de 90, também pintou pouco, porque se estivesse vivo até hoje ainda estaria pintando até com um mouse. Todos os grandes artistas morrem cedo, morrem jovens a qualquer idade, porque nos dão a impressão de terem acessado, por acaso ou por obstinação, algum veio profundo da Criação, o qual lhes possibilitaria a produção ininterrupta de grandes obras enquanto vida tivessem.

Suponhamos, então, a existência de um admirador de Modigliani, um jovem pintor de talento chamado Leon Zebriskovsky, que estudou a fundo a obra do mestre, tinta por tinta, pincel por pincel, e é capaz de reproduzir de olhos fechados suas composições ziguezagueantes, seus contrastes figura/fundo, suas anatomias que brotam de uma região limítrofe entre o ídolo africano, as madonas renascentistas e a aparente desproporção que têm os corpos quando experimentados tatilmente no meio das trevas. Um pintor dotado de todas estas qualidades produziria, um século após a morte do Mestre, quadros que o Mestre não pintou mas poderia ter pintado caso vida tivesse. É uma maneira de prolongar no tempo aquele olhar único e aquela mão sem paralelo, que nos deram tantas epifanias de beleza. Falsário? Imitador? Plagiário? Ou simplesmente um Artista em Grau Menor, que não tem a bênção da originalidade, mas tem, como seu Mestre, um poço artesiano em contato com a Fonte da Beleza?

sábado, 12 de setembro de 2009

1261) Manuscritos desaparecidos (29.3.2007)




(Samuel R. Delany)
Por alguma razão que os psicólogos talvez expliquem, a crítica literária tem um fascínio inesgotável pela Lenda dos Manuscritos Desaparecidos. Os exemplos são inúmeros. São livros escritos por autores de renome, que por uma razão ou outra se perderam e ninguém leu. Volta a meia um deles está sendo desenterrado. 

Recentemente os jornais noticiaram que uma autora holandesa, Hella Haasse, localizou em casa os recortes de um folhetim que publicou num jornal há 57 anos, e cujos originais se perderam. A autora não lembrava de ter recortado os capítulos, que só foram encontrados agora. 

A história é interessante, mas não se compara à valise cheia de manuscritos sem cópia que a esposa de Hemingway perdeu numa estação de trem de Paris. Ou à minha história preferida do gênero: Voyage, Orestes, romance de Samuel Delany, um dos grandes autores de ficção científica dos EUA.

Em 1963, Delany enviou este livro (cujo manuscrito datilografado tinha 1.056 páginas) para várias editoras, que o recusaram: o narrador era negro, o protagonista era gay... Delany, que na vida real é as duas coisas, viu que não era a hora de falar em tais assuntos. Anos depois ele ficou famoso com Dhalgren, outro romance de mil páginas, que vendeu um milhão de exemplares. 

Um dos editores de antes lembrou-se de Voyage, Orestes e ligou para o autor.Em 1963, um escritor de 22 anos não tinha dinheiro para fazer fotocópias de um livro. Não existiam, então, as hoje onipresentes máquinas xerox. Delany tinha apenas uma cópia datilografada. Seu agente literário precisou mudar de escritório, com dezenas de caixas de papelão com manuscritos. Uma dessas caixas, onde tinha ficado Voyage, Orestes após sua derradeira recusa, perdeu-se. 

Depois de algumas semanas de buscas, ele desistiu, e avisou ao autor. ”Não faz mal,” pensou Delany. Porque havia a cópia-carbono da versão datilografada, numa casa onde ele havia morado por alguns anos, na Rua 6, em Nova York. Estava num armário, em segurança, no porão da casa. 

Delany pegou o metrô e foi até lá, para descobrir que a casa tinha sido vendida há poucos meses, tinha sido demolida, e ali em cima ia ser construída outra coisa. Ele contactou os donos da casa, que lhe disseram: “Ficou tudo lá no porão.. só tinha uns trastes velhos... você falou que eram papéis sem importância...” E de fato eram, até o momento em que a primeira via se perdeu.

Um livro de mil páginas escrito ao longo de três anos merecia ter um melhor destino. Mas, como dizia o poeta, o Passado não está morto, ele nem sequer terminou de passar ainda. Eu não duvido que a próxima manchete “Autor encontra manuscrito desaparecido há meio século” se refira a Voyage, Orestes, quando uma caixa de papelão cheia de pastas amareladas pelo tempo aparecer num depósito em Coney Island, ou quando um comando da Guerrilha Literária Futurista abrir um túnel até o porão da casa da Rua 6.









1260) A diluição dionisíaca (28.3.2007)




(Dionisos)

Os filósofos descreveram estes dois aspectos do ser humano. 

O lado apolíneo, que vem do deus Apolo, é o lado do equilíbrio, da harmonia, das proporções corretas, da beleza obtida através da razão, do auto-domínio. 

O lado dionisíaco vem de Dionisos, ou Baco, que é o deus da farra. É o nosso lado exagerado, sensual, contraditório, voltado para a satisfação dos sentidos, das emoções, das paixões primitivas e corporais. 

O lado apolíneo nos conduz para as regiões mais elevadas da arte, da ciência e da filosofia; o lado dionisíaco nos conduz ao sexo, às drogas e ao rock-and-roll. 

Todo mundo tem algo de ambos, todo mundo oscila entre o predomínio de um ou do outro. Em alguns tipos humanos um deles prevalece; os nossos clichês e preconceitos nacionais se cristalizam muitas vezes em torno desses aspectos. Aos nossos olhos, um sueco ou um alemão são invariavelmente apolíneos; um jamaicano ou um camaronês têm que ser dionisíacos.

O Brasil é um quebra-cabeças em forma de colcha-de-retalhos, mas quem nos vê de longe, da Europa, digamos, tende a nos achar dionisíacos. Para eles, somos um povo eternamente voltado para a festa, a comemoração ruidosa, o prazer, a sensualidade, o hedonismo. E de fato, basta olhar em volta para ver o quanto isto está presente em nossa vida. E o quanto é justamente este aspecto que irrita e impacienta muitos dos nossos intelectuais, que vêem o povo pulando carnaval ou dançando axé-music na praça e dizem: “Por isso que o Brasil não vai pra frente!”

Esta é uma questão interessante, porque o dionismo (valha a palavra nova) não é bom nem mau, em si, é apenas uma possibilidade do ser, tanto quanto o seu reverso, o apolismo. 

Se me perguntassem a proporção ideal entre os dois eu diria que precisamos ser 51% apolíneos e 49% dionisíacos. Por que? Porque para mim existe um princípio fundamental na natureza, inclusive a natureza da alma humana, que é o equilíbrio. Sem equilíbrio, a coisa desanda; e o equilíbrio, virtude suprema, é uma característica apolínea.

Para esta questão, vale a lei do mel e da farinha: quando temos muito de um, precisamos equilibrar as coisas adicionando o outro. Quando vivemos num ambiente basicamente apolíneo, a tendência é irmos nos tornando cada vez mais sérios, cada vez mais formais, cada vez mais civilizadamente escandinavos. Aí é preciso que Dionisos entre pela janela para bagunçar as coisas, para instaurar por alguns momentos o Reino da Gréia e da Bagunça. 

Por outro lado, quando o mundo está bagunçado demais, festivo demais, permissivo e hedonista demais, e principalmente quando tem grupos econômicos fortíssimos impondo esta situação porque extraem dela enormes lucros, é preciso a gente chamar Apolo e a voz da razão. Nem a ditadura, nem o caos. Equilíbrio acima de tudo, para que Apolo e Dionisos possam conviver pacificamente. Festa é bom, mas o ano letivo tem que começar em algum momento.






1259) “Doidinho” (27.3.2007)




Continuação de Menino de Engenho, este romance de José Lins do Rego é também uma ruptura. O livro anterior era rural, este é interiorano (chamá-lo de “urbano” seria exagero). O anterior trazia para o leitor dos anos 1930 a novidade de um ambiente exótico, os engenhos de cana-de-açúcar da Zona da Mata paraibana. Este, contando a vida de Carlinhos no internato, perde o exotismo de superfície. Molda-se com mais facilidade à mente do leitor, que já lhe conhece a ambientação através do clássico com que é tantas vezes comparado: O Ateneu de Raul Pompéia. Valeria a pena rastrear na literatura brasileira o sub-gênero “Romance (ou Conto) de Internato”, a que pertencem estes dois títulos. Pela importância que os colégios internos tiveram na formação escolar e literária de tantos brasileiros de famílias abastadas, a lista deve ser longa, embora o único outro título que me ocorra à memória seja o conto “Pirlimpsiquice” de Guimarães Rosa, uma das escassas histórias não-rurais do autor.

A leitura de Doidinho (1933) me traz à mente uma obra com a qual parece não ter nada a ver: Anos de Ternura (“The Green Years”, 1944) de A. J. Cronin. Meu pai tinha as coleções completas de Zé Lins e de Cronin editadas pela José Olympio nos anos 1950, a de Cronin em verde, a de Zé Lins em azul-marinho. Anos de Ternura, posterior a Doidinho, mostra como mais importante do que a influência de um autor sobre outro é a influência de mundos semelhantes sobre mentes parecidas. As angústias e os deslumbramentos do menino irlandês num colégio da Escócia não são muito diferentes do que Carlinhos vem a conhecer no colégio de Itabaiana. Os livros de Cronin e de Zé Lins conheceram o sucesso popular em virtude das mesmas qualidades: uma memória vívida a serviço da imaginação romanesca; estilo claro, mesmo quando o pensamento é tortuoso; senso de humor; senso do melodrama; crítica social por um viés humano, mais do que político.

Doidinho ocorre numa zona intermediária entre o mundo rural e o mundo urbano. No Capítulo 32, Carlinhos descobre a história de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, clássico que hoje pertence mais ao sertão nordestino do que à Europa tão globalizada e “high-tech”. Diz Carlinhos, com candura: “Grande livro, que nada tinha que ver com a vida, mas que me veio mostrar que eu era ainda criança, porque acreditei nele, da primeira à última página. (...) Era um livro de capa encarnada, grosso, de páginas encardidas, amarrotadas. Com ele aprendi a temer mais a Deus do que com o catecismo”. No Capítulo 29, ele descobre o Cinema, recém-instalado em Itabaiana, passando seriados, dramalhões, faroestes, comédias do “Bigodinho”. Aquelas projeções artesanais, primitivas, coruscantes, que Carlinhos descreve numa frase exemplar: “O cinema de Chico Sota tremia como um velho”. Um cinema de cordel, de clássicos toscamente adaptados, mas transmitindo a excitação da descoberta de uma maneira nova de enxergar o mundo.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

1258) Resistência Cultural (25.3.2007)




(Monteiro Lobato)


Às vezes me acontece estar numa mesa-redonda ou coisa parecida e alguém me apresentar assim: “E agora vamos passar a palavra a Braulio Tavares, escritor, compositor, um batalhador da resistência cultural nordestina”. Sei que é um elogio, e que se aplica a mim, até certo ponto; mas gostaria de ir agora um pouco além deste “certo ponto”.

“Resistência” lembra a Resistência Francesa, do tempo da ocupação da França pelos nazistas, na II Guerra Mundial. Indivíduos heróicos, agindo na clandestinidade, lutando contra um ocupante poderoso e bem armado, mas conseguindo atingi-lo de vez em quando por meio de táticas de guerrilha. Lembra também a luta atual de alguns grupos de iraquianos contra a presença do exército americano no país. (Nem todos, é claro. Grande parte não passa de gangues religiosas aproveitando o caos da guerra para liquidar os membros das gangues rivais.) A “resistência” é um movimento que cerra fileiras em torno de um território qualquer que está sendo invadido, e tentar rechaçar esta invasão.

Até aí, tudo bem. Se o nosso time está sendo atacado, precisamos de uma zaga eficiente. A questão é que, quando se trata de cultura nordestina, precisamos de muito mais do que meia-dúzia de zagueiros e volantes rebatendo bolas para a lateral. Precisamos de um meio-de-campo que receba essas bolas e as repasse para um ataque. Ou seja: não basta resistir ao lixo cultural que vem de fora, precisamos exportar o nosso Não-Lixo cultural, invadir os espaços alheios, proclamar a alta qualidade do que fazemos. A melhor defesa é o ataque.

Caetano Veloso, numa canção famosa, disse: “Sejamos imperialistas!” Como tudo que o baiano diz, tem uma ambigüidade crítica muito útil. Criticamos o imperialismo cultural que quer invadir nossa cultura, mas precisamos reconhecer que, se tivéssemos o mesmo poderio econômico deles, faríamos a mesma coisa. Então, tentemos fazê-la mesmo sem ter esse poderio. Sejamos imperialistas. Vamos fazer os filmes de Vladimir Carvalho passarem nos shoppings da Califórnia, vamos promover tributos a Jackson do Pandeiro em Paris, vamos obrigar “The New Yorker” a dar matéria de capa sobre Augusto dos Anjos. Como? Não sei, mas se a Bahia e Pernambuco fazem isso com seus figurões, então não é impossível fazê-lo.

Monteiro Lobato também afirmou: "Nada de imitar seja lá quem for. Temos de ser nós mesmos. Ser núcleo de cometa, não cauda. Puxar fila, não seguir". Lembro isto porque falar apenas de “resistência” acaba tendo uma conotação imobilista, conservadora. Temos que resistir às mudanças impostas de fora, e nesse impulso acabamos resistindo a qualquer mudança, acabamos imobilizando e fossilizando nossa própria cultura. Mas se somos um exército que invade o território alheio não podemos ficar imóveis, temos que nos expor ao imprevisível, ao imponderável, temos que nos adaptar, nos modificar, se quisermos sobreviver. A melhor maneira de resistir à expansão alheia é expandir-se.