sábado, 6 de agosto de 2022

4850) O sol e a chuva (6.8.2022)



(Luiz Gonzaga)

Uma imagem poética parece ter uma plasticidade infinita.  Pode ser utilizada de mil maneiras, e cada contexto lhe dá uma significação nova.  Podemos dizer inclusive que a poesia é o triunfo absoluto do contexto sobre o sentido original das palavras, a palavra “em estado de dicionário”, como disse Drummond. 

 

Uma palavra num texto poético (e aqui incluo tanto os poemas escritos quanto as letras de canções) existe e significa para o contexto em que está sendo usada.  Tirada dali, seu sentido é zerado novamente.

 

Veja-se, por exemplo, um tema antiquíssimo na poesia: o contraste entre o sol e a chuva.  Em contextos poéticos diferentes, os dois recebem tratamentos diferentes.  No Nordeste, por exemplo, o sol é um mal necessário.  Sem ele seria impossível a vida no planeta, mas também não precisava exagerar .  No Cancioneiro Nordestino, o sol provoca medo, ou um respeito misturado com repulsa, uma mágoa que não tem perdão que cure.  Como cantava Marinês: 

 

No Nordeste imenso, quando o sol calcina a terra

não se vê uma folha verde na baixa ou na serra...”

(“Aquarela Nordestina”, Rosil Cavalcanti). 

 

O sol é sempre visto como o sol da seca, o sol da morte, do calor insuportável. Como dizia Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas: “a luz assassinava demais”.

 

O poeta nordestino vê o sol como uma ameaça, como mostram os versos de “Súplica Cearense”, de Gordurinha: 

 

Meu Deus, eu pedi para o sol se esconder um tiquinho

pedi pra chover, mas chover de mansinho

pra ver se nascia uma planta no chão.

 

O sol é uma ameaça permanente, uma ameaça que não pode ser exorcizada com súplicas ou com preces.  Sua presença nas canções sertanejas é sempre ominosa, massacrante, transformando a paisagem num inferno.

 

Que braseiro, que fornalha,

nem um pé de plantação...

(“Asa Branca”, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)

 

Quando o sol tostou as folhas

e bebeu o riachão

fui inté o Juazeiro

pra fazer minha oração...

(“Légua Tirana”, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)

 

Por outro lado, a chuva é vista pelo poeta nordestino como uma bênção.  Um dia chuvoso é uma festa transbordante de alegria.

 

Rios correndo, as cachoeiras estão zoando,

terra molhada, mato verde, que riqueza!

e a asa branca à tarde canta, que beleza,

ai ai, o povo alegre, mais alegre a Natureza!

(“A Volta da Asa Branca”, Luiz Gonzaga e Zé Dantas)

 

Uma tarde de inverno no sertão

é um grande espetáculo pra quem passa

serra envolta nos tufos de fumaça

água forte rolando pelo chão;

o estrondo da máquina do trovão

entre as nuvens do céu arroxeado;

o raio caindo assombra o gado

atolado por entre as lamas pretas.

rosna o vento fazendo piruetas

nas espigas de milho do roçado.

(“Inverno no Sertão”, Ivanildo Vila Nova e Geraldo Amâncio).

 


(Cartola)

Muito diferente é o modo de ver o sol e a chuva no Rio de Janeiro.  Para um poeta carioca, sol é sinônimo de alegria, chuva é um fenômeno melancólico com o qual é preciso se conformar.  A indagação mais ansiosamente murmurada pelos cariocas, dia após dia, ano após ano, é: “Será que vai dar praia?...” – enquanto os olhos súplices se voltam para o céu, buscando o sol com a mesma ansiedade com que os sertanejos buscam as nuvens grossas e cinzentas que podem salvar sua vida.  

 

O Cancioneiro Carioca reflete esse estilo de vida, desde o samba até o rock e a bossa-nova.  Desta vez é a chuva que é um mal necessário, mas todos rezam para que passe logo.

 

Finda a tempestade, o sol nascerá,

finda esta saudade, hei de ter outro alguém para amar...

(“O Sol Nascerá”, Cartola e Elton Medeiros)

 

Chove chuva, chove sem parar...

Mas eu vou fazer uma prece

pra Deus, nosso Senhor,

pra chuva parar de molhar o meu divino amor...

(“Chove chuva”, Jorge Benjor)

 

Me dê a mão, vamos sair pra ver o sol...

(“Estrada do Sol”, Tom Jobim e Dolores Duran)

 

"Vamos sair pra ver o sol!"  Que sertanejo diria isto à sua amada? 



Mas mesmo o amor ao sol pode ganhar contextos diferentes.  Uma coisa é amar o sol no Rio de Janeiro; outra coisa é amá-lo num país frio e nublado como é a Inglaterra na maior parte do tempo.  Daí que as letras dos Beatles, por exemplo, estejam cheias de referências ao sol, como símbolo da alegria:

 

Veja, querida,

o sorriso retornando aos seus rostos.

Veja, querida,

parece que faz anos desde que ele esteve aqui.

Lá vem o sol...

E eu digo que está tudo bem.

(“Here Comes the Sun”, George Harrison)

 

Um dia você vai olhar e ver que eu parti;

pois amanhã pode chover, então... eu seguirei o sol.

(“I’ll follow the sun”, Lennon & McCartney)

 

Eu preciso rir, e quando o sol aparece

eu tenho um motivo para rir...  Bom dia, luz do sol!...

(“Good Day, Sunshine”, Lennon & McCartney)

 

Aí vem o rei sol, aí vem o rei sol

Todos estão rindo, todos estão felizes

(“Sun King”, Lennon & McCartney)

 

Em termos de simbolismo poético nunca se tem uma relação única entre imagem e sentido, ou mesmo uma solução sim-ou-não.  As soluções poéticas são múltiplas, e mesmo quando coincidem, pode ser por motivos diferentes.  Tanto cariocas quanto londrinos amam o sol e abominam a chuva – mas os dois vivem em cidades de clima totalmente oposto.  Em Londres, o normal é o dia nublado e chuvoso, e o dia de sol é uma festa da Natureza.  No Rio, o sol é um direito civil, um piso mínimo de liberdade e alegria a que todos têm direito, e um dia sem ele é como um dia passado na cadeia. 

 

Não há soluções poéticas óbvias, ou, pelo menos, sempre é possível fugir ao óbvio, desviar-se do clichê, recusar a enganadora facilidade do que já foi dito e repetido.  Razão, como sempre, tinha John Lennon, quando dizia:

 

Sento num jardim inglês, esperando o sol,

e se o sol não vier

eu me bronzearei na chuva inglesa.

(“I Am the Walrus”, Lennon & McCartney)

 

(Este artigo foi originalmente publicado da revista Língua Portuguesa, Editora Segmento (São Paulo), número especial, novembro 2010)