sábado, 5 de julho de 2008

0440) Fahrenheit 451 (17.8.2004)



(CD de Dona Militana)

Imagine, leitor, um mundo em que ler livros é um crime, possuir livros também. Nesse mundo, os bombeiros foram remanejados de profissão: dedicam-se agora a queimar os livros achados pela polícia na casa de “traficantes”. 

Com esta ameaça, os amantes dos livros não têm outra saída senão cair na clandestinidade. Refugiam-se nos bosque, guardam com cuidado todo os livros que conseguem obter. Como não têm condições de imprimir novos exemplares, e pensam em como guardar esses livros para o futuro, a única saída é decorá-los. Cada pessoa dedica sua vida à memorização de um livro, para guardá-lo na ponta da língua e transmiti-lo às gerações futuras.

Este é o argumento de um livro de ficção científica de Ray Bradbury, Fahrenheit 451, de 1953, filmado em 1966 por François Truffaut. Ambas as obras servem para nos lembrar que, por mais que tenhamos amor pelo objeto chamado “livro”, o livro é um mero suporte para um “texto”, e que é o texto, ele sim, que constitui a obra literária. 

O final do filme mostra a neve a cair no bosque onde os homens-livros caminham devagar de um lado para o outro, recitando em voz baixa os textos de Dickens, Tolstoi ou Jane Austen; é uma bela metáfora da imortalidade da alma (o texto) mesmo após a destruição do corpo (o livro).

Uma história assim toca muito de perto a nós, nordestinos, que estamos testemunhando durante nosso período de vida a destruição de toda uma cultura (a nossa) pelo impacto de tecnologias modernas. 

O Nordeste tem um “corpus” de literatura oral que deixa de boca aberta os pesquisadores que vêm de fora; e esta cultura está desaparecendo, não exatamente porque o governo a persegue com bombeiros-incendiários, mas porque tudo parece conspirar para tornar obsoleto este tipo de transmissão de obras em prosa e verso.

Altimar Pimentel, pesquisador de UFPb, tem reunido em livro numerosas histórias contadas por gente do povo, entre os quais Luzia Teresa, uma paraibana que morreu em 1983, aos 74 anos. 

Dois volumes de histórias-de-Trancoso contadas por ela já foram lançadas sob a coordenação de Altimar, que durante anos de pesquisa recolheu mais de 200 narrativas guardadas na memória daquela velhinha de mãos magras e gestos expressivos. 

No Rio Grande do Norte, a Fundação Hélio Galvão lançou há pouco tempo um álbum de Dona Militana, uma mulher que mora na periferia de Natal, e que sabe de memória dezenas de “romances cantados”, histórias em verso com origem na literatura de cordel ou na poesia ibérica. O álbum tem três CDs onde estão registrados 54 desses romances, que ela canta com voz pausada e afinadíssima, acompanhada por instrumentistas como Gereba (violão) ou Antonio Nóbrega (rabeca); e traz um encarte com a letra e a partitura de cada uma das 54 faixas. 

Não é só a palavra falada que pode garantir a imortalidade dos livros, como em Bradbury/Truffaut. Também pode ocorrer o inverso, quando percebemos o tesouro imenso que estamos a ponto de perder.




0439) Eu, o Sertanejo (15.8.2004)





(detalhe de foto de Gustavo Moura)



Um problema aqui no “Sul” é explicar o Nordeste a quem dele só conhece a caricatura. Muita gente pensa que eu nasci numa paisagem de cactos, criei-me num casebre de barro rodeado de caveiras de boi, e vim morar no Rio afugentado pela seca. 

Não adianta repetir que fui um garoto urbano, criado numa cidade importante (a Campina em que cresci era o décimo-terceiro município brasileiro; hoje não deve ser o centésimo), e que minha infância girou em torno de cinema, rádio, gibi e futebol. 

Uma vez, dando uma entrevista a uma moça simpática que nascera em Ipanema e desconhecia até mesmo o Grajaú, tive que exagerar um pouco e explicar-lhe que viera a conhecer o sertão através dos filmes de Glauber Rocha. 

“Mas você não é do interior da Paraíba?”, insistia ela. “Sim, mas não sou sertanejo. Minha cidade é uma cidade fria, fica numa serra, no inverno é frio pra caramba, tem uma névoa que parece Londres...” E ela ria, incrédula.

Talvez por isto mesmo eu guarde lembranças tão intensas das minhas poucas experiências de passar férias em fazenda. 

Levar ao curral o caneco de alumínio com açúcar, para enchê-lo de leite espumante. 

Tirar o leite do peito da vaca (sim, já tirei). 

Montar a cavalo – eu teria uns cinco anos, e o cavalo me pareceu maior que o de Tróia. 

Alvejar passarinhos com balieira – nunca acertei. 

Tomar banho de rio e de açude, colher algodão, andar em carro de boi... 

Fiz tudo isto, nos arredores de Coxixola-PB (onde minha mãe nasceu) ou de Angelim-PE (onde meu avô materno tinha umas terras). São recordações vívidas, que não foram substituídas por experiências na idade adulta. Penso às vezes no quanto são importantes as experiências a que submetemos nossos filhos, na nossa responsabilidade ao escolher as coisas que recordarão na velhice.

E quando penso em velhice começo a imaginar que quando eu chegar lá, um dia, terei virado sertanejo. 

Quando eu estiver com 75 anos, estarei cercado de jovens para quem esse universo que vi de passagem será algo tão remoto quanto o Egito que ergueu as pirâmides. Jovens que nunca terão caçado passarinho ou tomado banho de rio. Que terão sido criados largando o videogame para brincar no playground. Que saberão o que é um robô mas nunca terão visto uma queima-de-judas. Que aprenderão o inglês com desassombro e presteza, mas ficarão de língua travada diante da fala de um agricultor ou de um vaqueiro.

Quando meu filho mais novo tinha quatro anos levei-o ao Zoológico, imaginando sua fascinação quando visse o tigre ou a girafa. Pois ele não queria sair de junto da cerca da vaca, apontando: “A vaca, pai! A vaca!” 

Sim; já percebi que aos 75 anos de idade serei sertanejo, contarei aos netos o que é tibungar em barreiro, subir em pé de goiaba, queimar-se em leite de aveloz, pisar sem querer em marimbondo, raspar o queimado no caldeirão da canjica, correr atrás de tanajura... 

Já me considerei um dos primeiros urbanóides cibernéticos; o Futuro me transformará num dos últimos sertanejos.








0438) O Manuscrito Voynich (14.8.2004)



(Manuscrito Voynich)

O mundo das bibliotecas fervilha de mistérios, de segredos, de manuscritos obscuros, de obras esquecidas, de revelações estonteantes guardadas para daqui a décadas ou séculos quando descobrirmos um velho alfarrábio esquecido e formos capazes de decifrar seu conteúdo. Não estou exagerando, leitor. A carta de Pero Vaz de Caminha, talvez nosso mais importante documento histórico, ficou ignorada durante séculos até ser achada em 1793 na Torre do Tombo. Julio Verne escreveu em 1863 um romance, “Paris no Século 20”, que só foi descoberto em 1989 pelo seu bisneto, num cofre esquecido. Há grandes descobertas esperando para acontecer.

Uma das que eu aguardo com mais ansiedade é a decifração do Manuscrito Voynich, que já foi chamado, com justiça, “o livro mais misterioso do mundo”. Tomei conhecimento dele através dos escritos de Colin Wilson, que lhe dedica um capítulo de sua Encyclopedia of Unsolved Mysteries (1988), mas quando fui atrás descobri que existe uma enorme comunidade internacional (incluindo historiadores, bibliófilos, criptógrafos e lingüistas) mobilizada em torno deste livro enigmático. Um bom saite para quem quiser ter uma idéia é o de René Zandbergen (http://www.voynich.nu/).

Vamos aos fatos. Trata-se de um livrinho de 15 por 22 centímetros, com pouco mais de 100 páginas, em pergaminho. Está escrito num alfabeto que não foi decifrado até hoje (é este o grande desafio), e fartamente ilustrado, como desenhos em quase todas as páginas. Os desenhos mostram plantas desconhecidas, órbitas astronômicas, figuras humanas, e desenhos que lembram cortes anatômicos. Parece ser uma espécie de manual ou almanaque com conhecimentos básicos de ciências naturais. Quem quiser poupar tempo e ver imagens digitalizadas das páginas do livro, pode ir para: http://beinecke.library.yale.edu/brbldl/, e digitar “Voynich”.

O manuscrito parece ter sido escrito entre 1450 e 1500; houve quem o atribuísse ao cientista Roger Bacon. Há documentos indicando que por volta de 1666 ele foi enviado ao jesuíta Athanasius Kirchner (o famoso inventor da “lanterna mágica”), com um pedido de decifração. Passou por várias mãos até que em 1912 foi adquirido pelo antiquário Wilfrid M. Voynich, que o levou para os EUA e iniciou uma campanha para estudá-lo, ficando o livro a partir daí conhecido como “Manuscrito Voynich”. Atualmente, ele está na Biblioteca Beinecke de Livros Raros, na Universidade de Yale (EUA).

Teorias recentes sugerem que o livro não passa de uma fraude bem elaborada, com um idioma tão inventado quanto as ilustrações. Dezenas de criptógrafos dedicaram-se durante décadas a elaborar teorias e propostas de decifração, até hoje sem resultado. Se você é bom em códigos, leitor, arrisque sua sorte. O sujeito que decifrar este livro vai entrar para a História, ao lado de Champollion, que decifrou os hieróglifos egípcios. Está aí uma coisa que eu não gostaria de morrer sem saber a resposta!

0437) O hipocondríaco (13.8.2004)




(cartum de Doug Savage)

Dizem que um louco é um sujeito que perdeu tudo, exceto a razão. Pelo mesmo raciocínio, um hipocondríaco é um sujeito cuja única parte saudável é o corpo. Não se iludam com aquela testa eternamente franzida, com aquele olhar de bicho acuado, aquelas costas curvas de quem carrega o mundo as ombros. Está sadio, tão sadio quanto eu e você, e é para assegurar-se disto que se envenena de remédios de manhã à noite.

Há muitos tipos. Uns são hipocondríacos por insegurança, baixa auto-estima: pensam que são mais frágeis do que as outras pessoas, que são cheios de defeitos fisiológicos ou genéticos, e que é preciso tomar medidas diárias para atenuar esse déficit. Outros são o contrário: acham-se superiores, acham que são exemplares únicos e preciosos da espécie humana, e que por isto mesmo necessitam de cuidados especiais e contínuos. Assim, cuidam do corpo como um colecionador de automóveis antigos trata do seu raríssimo exemplar de Oldsmobile 1954 (ou coisa parecida – não entendo nada de carro velho).

O hipocondríaco toma remédio por aquilo que George W. Bush e seus estrategistas chamam de “defesa preemptiva”: atacar antes, em vez de esperar o ataque do adversário. Sua mentalidade é a mesma da ditaduras militares. Temendo a própria incapacidade de enfrentar uma eleição, elas dissolvem os partidos políticos. Para se certificar de que o regime não tem opositores, faz os membros da Polícia Secreta fundarem partidos clandestinos, que atraem e doutrinam os jovens, e finalmente os prendem. (Não estou exagerando – leiam 1984). O corpo do hipocondríaco é uma ditadura farmacêutica, saturada de substâncias químicas cuja finalidade é exorcizar a ameaça de uma palavra ouvida na televisão.

William Burroughs dizia que um viciado em drogas não é mais um ser, é a metade de um ser, que só existe quando a droga está presente. O hipocondríaco geralmente minimiza a importância da droga em sua vida: não a idolatra (como muitos usuários da maconha ou da cocaína) nem recorre a ela com horror (como muita gente que fuma cigarro: “Ai, que saco, preciso parar de fumar essa porcaria!”). Sua idéia fixa não é o remédio, é a doença. Basta ler num jornal sobre um tipo raro de câncer ósseo descoberto na Malásia, que só atinge a terceira costela do lado direito, para ser justamente essa costela que começa a formigar, a latejar e a dar sinais de vida.

O hipocondríaco lê bula de remédio, manual de primeiros socorros, livro de Patologia, catálogo de laboratório farmacêutico. Tudo que lê ele interpreta como um sinal do Céu que lhe caiu sob os olhos no momento exato para salvar sua vida: estava sofrendo de um mal perigosíssimo, e jamais saberia, se não tivesse tido a sorte de ler este aviso. Sartre criou um personagem chamado O Autodidata, que lia todos os livros da biblioteca por ordem alfabética. O Hipocondríaco ideal é o que gostaria de tomar todos os remédios, para curar-se de todas as doenças.



0436) Uma utopia paulista de 1909 (12.8.2004)



(Erik Desmazieres: "Ville Imaginaire")


Ontem referi minha descoberta do livro São Paulo no Anno 2000 de Godofredo E. Barnsley (1909), romance utópico escrito pelo filho de um ex-soldado Confederado que veio morar no Brasil após a derrota do Sul na Guerra Civil americana. O livro é uma prefiguração do que nossa maior cidade poderia vir a ser no futuro, se corretamente administrada. A literatura utópica não foi muito praticado em nosso país, o que só faz aumentar a importância história de livros como este e como Sua Excia. a Presidente da República no ano 2.500 de Adalzira Bittencourt (1929), O reino de Kiato de Rodolpho Teophilo (1922) e outros. Estas obras são analisadas em detalhe no livro fundamental de Roberto de Sousa Causo Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil – 1875 a 1950 (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003). O livro de Barnsley, contudo, é uma obra rara, difícil de obter até nas bibliotecas universitárias dos EUA; o exemplar que li é da Biblioteca Nacional, no Rio.

São Paulo no Anno 2000 é claramente o livro de um indivíduo culto e que tem idéias muito firmes sobre o que precisaria ser feito para que o mundo fosse um lugar decente de se viver. Indivíduos com este perfil são os grandes autores de romances utópicos como os que provavelmente serviram de inspiração e modelo a Barnsley: Looking Backward: 2000-1887 de Edward Bellamy (1888) e News from Nowhere (1890) de William Morris. Nestes dois livros, como no de Barnsley, os protagonistas adormecem no presente e acordam no futuro. Diz o narrador de São Paulo no Anno 2000, descrevendo como adormeceu numa praça no centro da cidade: “A candura, a benignidade, o socego daquelles sitios produziu em mim um suave torpor e, fechando-me os olhos ao mundo das realidades, apresentou-me um outro mundo inteiramente imaginario, povoado de visões maravilhosas. Pouco a pouco, insensivelmente, o scenario, as arvores, as cousas, foram-se transfigurando, como nas fitas cynematographycas.” O próprio narrador se compara a Rip van Winkle, o personagem de Washington Irving que também dorme durante um século.

Alguém perguntará: que importância pode ter um livro de quase cem anos atrás, e que não é, como eu próprio afirmei ontem, de grande valor literário? A resposta é simples. Arte literária não é tudo na vida dos livros. Livros valem também por serem documentos involuntários de uma época. Escritos para os homens do seu tempo, muitas vezes só são corretamente avaliados por leitores de muitos anos depois. Às vezes pretendem ser obras de arte e não o conseguem, mas ainda assim não deixam de ter valor histórico, sociológico, antropológico. Eles nos dizem como as pessoas dessa época pensavam, como avaliavam a sociedade em que viviam, quais os seus parâmetros, quais as suas aspirações. Intenções à parte, muitas vezes eles, atirando no que vêem, acertam, cem anos depois, no que não sabiam que tinham visto.

0435) “São Paulo no Ano 2000” (11.8.2004)


(Ilustração: Erik Desmazieres)

Há cerca de 15 anos, boa parte do meu tempo livre era passado na Biblioteca Nacional, aqui no Rio, vasculhando os fichários à procura de livros obscuros de ficção científica, e de novelas fantásticas escritas por autores brasileiros. Um resultado disto foi o Catálogo editado em 1992 pela própria Biblioteca, onde registrei mais de 130 dessas obras (número que de lá para cá aumentou muito). Outro resultado foi a antologia Páginas de Sombra – contos fantásticos brasileiros, que publiquei em 2003.

Uma das minhas descobertas mais interessantes foi São Paulo no anno 2000, ou Regeneração Universal – Chronica da Sociedade Brasileira futura (São Paulo: Typ. Brazi de Rothschild, 1909), romance utópico descrevendo a metrópole paulista nesse remotíssimo futuro. Durante anos pensei em escrever um pequeno ensaio a seu respeito, mas sempre me deparei com a absoluta falta de informações sobre o autor, de quem eu sabia apenas que se chamava Godofredo E. Barnsley. Mesmo depois da Internet, de nada me adiantou passar pente-fino no Google; surgiam centenas de Barnsleys, mas não este.

O problema foi resolvido com a visita recente ao Rio da “brazilianist” M. Elizabeth Ginway, professora da Universidade da Flórida e autora de Brazilian Science Fiction: Cultural Myths and Nationhood in the Land of the Future (Lewisburg: Bucknell University Press, 2004). Ela conseguiu localizar um neto do autor, que mora nos EUA. Através dele ficamos sabendo que Godofredo Emerson Barnsley era filho de um ex-soldado Confederado que, como muitos outros sulistas, migrou para o Brasil após a derrota na Guerra da Secessão. Godofredo nasceu em Quartis (SP) em 1874, e faleceu em São Paulo em 1935. Na juventude, chegou a morar por alguns anos nos EUA, mas voltou ao Brasil, e estabeleceu-se como dentista em Campinas (SP), tendo sido considerado um dos melhores dentistas paulistanos. Foi também professor da Faculdade de Odontologia na USP.

Seu livro é uma curiosa experiência em literatura utópica. O Narrador adormece numa praça no centro de São Paulo, e quando acorda vê-se numa metrópole desconhecida. Só depois descobre que havia dormido durante 100 anos. Começa a conhecer a cidade, guiado por um ancião chamado Orecnis Ocitirc, um “crítico sincero” do mundo em que vive. Em vez dos 320 mil habitantes de que o Narrador se recorda, São Paulo tem agora um milhão e meio. O livro enumera – usando as costumeiras e entediantes descrições de toda narrativa utópica – as conquistas no campo da educação, saúde, transportes, etc. São Paulo no Anno 2000 (ao qual retornarei amanhã) é um “romance prescritivo”, sem altos vôos literários, voltado para o objetivo maior dos livros desse tipo: criticar o mundo do presente, apontando soluções que deveriam ser adotadas no futuro. Gênero largamente cultivado na Europa e nos EUA, teve poucos exemplos no Brasil, o que torna ainda mais importante a sua existência, independentemente de sua qualidade artística.