sábado, 3 de outubro de 2015

3936) De sapato não sobra (4.10.2015)




(O Bandido da Luz Vermelha)


Não foram poucos os sertanistas, nos antigos tempos das “entradas e bandeiras”, que se largaram descalços para desbravar os cerrados, as florestas e os sertões. 

Botas eram artigo de luxo, e sapatos eram para ser usados na cidade, em ocasiões sociais. 

Sérgio Buarque cita documentos dizendo que eles “a pé e descalços marchavam por terras, montes e vales, trezentas e quatrocentas léguas, como se passeassem nas ruas de Madri”.  Sapato era para os fracos.

“Quem [es]tiver de sapato não sobra!” é o berro reiterativo do anão no Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla (1968). 

Ele quer dizer que quando soar a trombeta do Apocalipse, ou o apito liberando o Arrastão, vai para o paredão quem usar esses sapatos protetores dos pezinhos de quem nunca pegou no pesado. O Armagedon será seletivo. Figurino vai ter peso na lei da sobrevivência.

O Brasil cresceu descalço. Os caminhantes traziam as botas às costas, pendentes de uma vara, e só as calçavam ao entrar na cidade, depois de lavar os pés. Daí a existência de tantos pontos de entrada com nome de “Lavapés” ou semelhante. 

Esse hábito condicionou até (segundo Sérgio Buarque, Caminhos e Fronteiras, 1957) a fabricação de estribos de metal, que eram feitos de molde a encaixar os dedos dos pés do cavaleiro ou cavaleira.

Em Isaías Caminha (1909) Lima Barreto conta as manifestações que incendiaram o Rio de Janeiro durante a Revolta da Vacina em 1904. Para efeito ficcional, ele a transformou no romance na Revolta do Calçado: 

“Nascera a questão dos sapatos obrigatórios de um projeto do Conselho Municipal, que foi aprovado e sancionado, determinando que todos os transeuntes da cidade, todos que saíssem à rua seriam obrigados a vir calçados. Nós passávamos então por uma dessas crises de elegância, que, de quando em quando, nos visita.” (Cap. X). 

Mais adiante (cap. XII) um jornalista comenta: 

“As coisas estão feias! Estive na Gamboa e na Saúde... Os estivadores dizem que não se calçam nem a ponta de espada. Não falam noutra coisa. Vi um carroceiro dizer para outro que lhe ia na frente guiando pachorrentamente: Olá hé! Estás bom para andares calçado que nem um doutor!”.

Lembro do velho cinema poeira do bairro popular de Zé Pinheiro, o Cine Arte. Nos anos 1960 o Cineclube de Campina Grande (leia-se Luís Custódio) tentou implantar ali uma sessão de Cinema de Arte, pois o cinema só passava filmes de Maciste e Golias. 

Exibimos O Picolino, musical com Fred Astaire. Na entrada do cinema lia-se numa placa enorme: “Proibido Entrar Descalço”.  Quando temos dúvida sobre a classe social a que pertence um brasileiro, ainda é costume baixar os olhos para os seus pés.