sexta-feira, 22 de novembro de 2019

4525) Minhas canções: "Temporal" (23.11.2019)




Minha segunda música gravada, novamente por Elba Ramalho, foi “Temporal”, em parceria com Fuba, e saiu no terceiro disco dela, Elba, de 1981. 

Essa música foi um dos resultados de uma comprida temporada que fizemos eu, Fuba e Tadeu Mathias (dois dos meus parceiros musicais mais antigos, ambos de Campina Grande) no saudoso Teatro Lira Paulistana, em São Paulo, durante alguns meses de 1980. 

O teatro ficava num porão em frente à Praça Benedito Calixto, e era um epicentro da vanguarda paulista no começo daquela década: Grupo Rumo, Itamar Assumpção, Premeditando o Breque (que depois virou “Premê”)...


(foto: Teatro Lira Paulistana, num show da Gang 90)

Nosso show modelo 3-em-1 se chamava “Lá Vem a Barca”, em homenagem ao “Mote do Navio”, canção de Pedro Osmar (nosso mestre, do grupo Jaguaribe Carne, de João Pessoa) cujo refrão diz: “Lá vem a Barca / trazendo o povo / pra liberdade / que se conquista...”.

Minhas composições, as de Fuba e as de Tadeu eram de perfil bem distinto, mas como tínhamos músicas em parceria fazíamos alguns números em conjunto. Era um show de meia-noite, ou seja, depois do “show” oficial do Lira às 21 horas tinha uma pausa e às 12 em ponto começava o nosso show, que sempre contava com 30 ou 40 abnegados nas arquibancadas de madeira.

Quem nos levou para lá foi o jornalista Inimá Simões, meu amigo de longa data, e fomos imediatamente encampados pela equipe do Lira: o Gordo (Wilson Souto Jr.), Chico Pardal, Fernando Alexandre, Plínio, Riba de Castro. Não éramos um grupo de vanguarda, mas eles se divertiam pra valer com nosso repertório, que cada noite era diferente. Isso foi ao longo do ano de 1980; em 1981 eu voltaria ao teatro para fazer alguns shows, sozinho.


(Lira Paulistana -- maquete, por Riba de Castro)

Nessa fase do “Lá Vem a Barca”, terminávamos o show por volta das 3 da manhã e íamos para algum bar, geralmente um tal “Café Melodia” que não lembro mais onde ficava, e tinha cerveja e violão até amanhecer. Nessa época, surgiu esta canção, “Temporal”.

Não lembro mais quem veio primeiro, se a letra ou a melodia. Lembro que quando comecei a fazer a letra comentei com Fuba: “Rapaz, eu queria fazer uma letra surrealista tipo as de Zé Ramalho, eu acho uma liberdade fantástica você poder fazer letras como Chão de Giz ou Frevo Mulher, onde a imagem vale pela imagem, não precisa explicar”.

Zé Ramalho estava no auge do seu primeiro estouro de sucesso, com Avôhai e A Peleja do Diabo com o Dono do Céu.

E eu tenho uma tendência para letras muito explicadas, muito racionais, muito apolíneas, onde tudo se encaixa e tudo se explica. Talvez pela influência da cantoria de viola, onde é muito forte essa obrigação de fazer sentido – o que faz de figuras como Zé Limeira exceções extraordinárias.

E as estrofes foram saindo:

Quem viu a terra gemer
nos dentes brancos do mar
e a laje fria da espuma
a sete palmos do olhar
pisou nas curvas do mapa
os raios do sol nascente
tocou na corda da harpa
de aço incandescente.
Ôôô-ôô... Ôôô-ôô...

E por aí vai. Elba Ramalho ouviu a música, gostou, gravou. Não sei se porque concordou conosco que estava na faixa surrealista de Zé, ou se porque o sucesso da minha “Caldeirão dos Mitos” no disco anterior me deu credibilidade.

A melodia de Fuba para “Temporal” é superior à do “Caldeirão...”, mais sinuosa, com mais novidades melódicas. A letra pode não fazer sentido, mas é um exercício meio André Breton, de produzir imagens que valham como imagens apenas, sem pretensão de simbolizar nada, de ser alegoria de coisa nenhuma. E de gerar novas interpretações, sempre.

Algumas dessas imagens eram fragmentos visuais que eu tinha na memória e que não sei de ganharam força por escrito. Por exemplo:

               Eu percorri todo o sonho
no meio da madrugada
e vi plantações de balas
sementes das espingardas...

Isso era uma imagem meio Salvador Dali que eu pensava de vez em quando: uma enorme lavoura, um campo arado para plantação onde as pessoas iam colocando, nas pequenas covas, em vez de sementes, cartuchos de balas; e algum tempo depois brotava ali, em vez de um milharal, uma verdadeira floresta de espingardas.


(BT no Lira, 1980 -- foto Iroã Simões)

Quase vinte anos depois, estou em casa, no Rio, toca o telefone e é Zé Ramalho. Explica que está querendo gravar um disco somente com compositores do Nordeste, e que escolheu “Temporal” para o repertório; tudo bem?

“Tudo bem,” respondo, “aliás, Zé, a gente fez essa música anos atrás pensando nas tuas letras e querendo fazer alguma coisa parecida!”. Ele achou graça e disse: “Deve ter sido, porque me identifico muito com ela.”  

Gravou e lá estamos nós no Nação Nordestina (2000), ao lado de nossos ídolos: João do Vale, Luiz Gonzaga, Petrúcio Amorim, Maciel Melo, Edgar Ferreira, Gil, Dominguinhos, Oliveira de Panelas e tantos outros.

A gravação original de Elba Ramalho:

A regravação de Zé Ramalho:


(BT no Lira, 1980 -- foto Iroã Simões)


TEMPORAL
(BT & Fuba)

Quem viu a terra gemer
nos dentes brancos do mar
e a laje fria da espuma
a sete palmos do olhar
pisou as curvas do mapa
e os raios do sol nascente
tocou as cordas da harpa
de aço incandescente.

Eu percorri todo o sonho
no meio da madrugada
e vi plantações de balas
sementes das espingardas;
eu mato, matas e mata
quem fala não mata não
quem cala consente a fala
e os gritos do capitão.

Quem viu os cachorros negros
latindo para o luar
e o voo vão dos morcegos
gritando mudos no ar
conhece a força guardada
na mola dos temporais
escurecendo as estrelas
nos ombros dos generais.

A mais cruel armadilha
encruzilhada dos fins
e os alicerces das ilhas
roídos pelos cupins
a fina dor da ferida
doendo até no facão
e o mapa da minha vida
na palma da minha mão.

Quem viu o braço da sombra
das folhas de uma palmeira
pousar em carícia longa
nos ombros da terra inteira,
ouviu na boca da noite
feroz silêncio mortal
e viu o bobo da corte
dançando no funeral.