Que mistério tem Coutinho? O documentarista, falecido há
cerca de dez anos, deixou uma obra que tem sido variadamente analisada ao longo
destas últimas décadas. Há quem goste muito (a maioria), há quem não goste, há
quem não se interesse.
Num ponto, contudo, creio que todo mundo concorda:
Coutinho tinha o dom de ouvir. Tinha a capacidade de colocar diante da câmera
uma pessoa de verdade (não um ator, não um político, não um intelectual, não
alguém acostumado a falar em público), e extrair dela depoimentos sinceros,
espontâneos, verdadeiros (ou sinceramente mentirosos).
(Falei isto porque lembrei que em O Fim e o Princípio um dos entrevistados conta como foi ao Inferno
e conseguiu voltar.)
Reza a lenda que em geral Coutinho não conversava com
seus “personagens” antes da entrevista. A pesquisa era feita antes, e todos os
contatos com os entrevistados ficavam a cargo de sua equipe, de seus
assistentes. Quando estava tudo pronto para rodar, ele aparecia, cumprimentava,
e começava a fazer perguntas.
Não sei até que ponto isso era uma técnica recorrente,
mas já ouvi gente comentando que este método ajuda a entrevista a ter mais peso.
Uma longa conversa prévia é algo bom, mas, de certa forma, atenua a tensão de
quem está sendo entrevistado. Coutinho aparecia com um certo impacto, mas
deixava o entrevistado à vontade com seu jeito de falar – um tanto brusco mas
espontâneo. Um tom de-pessoa-para-pessoa, que geralmente dava mais verdade
àquele diálogo.
Vi estes dias, pela primeira vez (verei outras), As Canções (2011), um filme de hora e meia
que mostra pessoas cantando e conversando.
A idéia de Coutinho foi muito simples: seus pesquisadores
ficavam parados, no Largo da Carioca, no centro do Rio, com uma placa: “Qual é
a canção da sua vida?”. As pessoas chegavam perto, cantavam, deixavam as
informações. Do enorme banco de dados foram escolhidas vinte pessoas.
As regras eram simples: um palco escuro, uma cadeira e a
equipe de filmagem. A pessoa teria que cantar uma música apenas, “à capela”
(sem instrumentação), e depois explicar por que aquela canção era tão
importante para ela.
E assim se sucedem músicas variadas, do repertório de Roberto
Carlos, Jorge Ben, Noel Rosa, Tom Jobim & Chico Buarque, Silvinho, Nelson
Gonçalves, Wanderléa...
Séculos atrás, a música era uma experiência rara:
concertos em teatros, palácios, igrejas; ou então cantorias populares para
gente de pés descalços, nas praças, nas feiras, nas ruas.
Hoje, é este oceano de som onipresente onde nadamos.
Rádio, televisão, os aparelhos-de-som em cada casa, a eterna “muzak” dos
elevadores e das esperas-telefônicas, e agora a Internet e os celulares. Nunca
a música foi tão massacrante quanto nos últimos 120 anos.
Nossa vida tem trilha sonora. O repertório é determinado em
parte por escolhas nossas e em parte pelo Acaso – pelo que a rua, a cidade e os
eletrônicos nos oferecem para escutar. (Nos obrigam a escutar.)
Coutinho pergunta: “Qual é a música da sua vida?” Ele
sabe que este é um conceito familiar à maioria dos brasileiros. Gostamos de
eleger músicas especiais associadas a momentos especiais da vida. Casais que se
amam gostam de escutar mil vezes, de mãos dadas, “a nossa canção”.
A canção fala por eles, diz por eles o que não
conseguiriam dizer sozinhos. Como no mote tradicional da Cantoria de Viola: “Poeta, diga o que eu sinto; / que eu sinto,
porém não canto”.
As pessoas escolhidas por Coutinho cantam bem? Sim e não.
“Não” porque volta e meia estão desafinando, desentoando, semitonando, falhando
uma nota mais aguda ou mais grave, “mentindo” uma frase musical mais complexa.
Pudera. São vozes não treinadas, não trabalhadas. Certamente renderiam melhor,
com o que já têm, se submetidas à rotina de treinos de um cantor profissional.
(“Profissional”, neste caso, é quem treina com afinco, não quem recebe
pagamento.)
E cantam “bem”, sim. Demonstram o que a crítica chama “a
musicalidade nata do povo brasileiro”, a consciência das notas a serem cantadas
(mesmo que na hora a garganta escorregue).
Mesmo quando perdem algumas notas, essas pessoas geralmente demonstram
sensibilidade para a frase musical, sabem levá-la até o fim, têm a percepção
instintiva do seu desenho rítmico e melódico.
Acho que na música, como na literatura, a frase importa
mais do que a nota ou a palavra, no sentido de que é a unidade expressiva
básica. Mesmo quando há um erro de nota ou de palavra, se a frase é forte ela
se impõe, e é o que importa.
As pessoas tão simpáticas e às vezes pitorescas de As Canções são não-cantores cantando num
ambiente estranho, sem acompanhamento musical. De vez em quando alguém dá uma
desentoada braba e a música derrapa para outro tom, o que dificilmente
aconteceria se tivessem um violão acompanhando.
Não é uma performance musical – a intenção é que seja um
depoimento, mas essas pessoas demonstram o prazer singelo de cantar para uma
equipe de filmagem e saberem que provavelmente serão vistas numa tela de
cinema.
E choram. Aquela canção sempre remexe alguma coisa. A
certa altura começam a segurar um choro, naquela catarse mansa de quem domina a
prática de puxar as emoções para fora e dar-lhes um polimento de vez em quando.
Bons documentários têm estes momentos de deixar fluir, deixar acontecer em paz,
deixar o entrevistado ir se soltando e trazendo assuntos por conta própria.
Coutinho (a crítica fala isto de vez em quando) tem algo do
espírito de psicanalista: aquele presença pressionante e silenciosa. E o entrevistado se sente à vontade para
responder-lhe à altura quando ele faz suas intervenções bruscas, coloquiais.
“Gente conversando” e não “jornalista perguntando”.