sexta-feira, 5 de julho de 2019

4481) Contracapa de Netflix (5.7.2019)





(ilustração: Hundertwasser)


& esse negócio de catedral se incendiar é bom porque aparece gente que a gente supunha morta para dar opinião   

& filósofo coisa nenhuma, esse cara está usando um crachá que achou no chão 

& estou cansado de viver como um cachorro, latindo para o que não entendo 

& nunca mais a humanidade vai ser tão rica quanto é hoje

& fazer uma foto é como guardar uma fatia de uma nuvem

& um dia a água do mundo vai acabar, e eu dizendo: agora beba gasolina

& tem hora que o medo que vem de dentro esbarra no medo que vem de fora

& a poesia cabe nas sextilhas como o mel cabe nas fôrmas de rapadura

& daqui a um milhão de anos ninguém mais contará o tempo em anos

& não existem pessoas más, existem pessoas menos

& desigualdade social mesmo é o exercício da delicadeza ter se tornado um privilégio de poucos

& tinham sido do mesmo pelotão de fuzilamento, e agora não se cumprimentavam mais ao se cruzar na rua

& ainda existem porões da ditadura, cheios de gente cuja ausência não foi percebida por ninguém

& toda vez que eu releio um livro fico com vergonha de pensar que tinha entendido da primeira vez

& a vida julga a gente com um relance, condena com um piparote, ou absolve com uma piscadela

& por trás de todo gentleman sofisticado há dois ou três esbirros pisoteando a etiqueta

& tanta discussão sem resultado, somente por causa de termos mal compreendidos

& um número vira outra coisa quando é visto pessoalmente

& hoje é dia de ficar em casa, esvaziando os cinzeiros da memória

& não elogie ninguém, não fale mal de ninguém; a gente nunca sabe o que vem por aí

& o perdão não é concedido para anular o erro que se cometeu, mas para evitar o próximo

& a Esquerda gosta tanto de humilhar quem é burro quando a Direita de humilhar quem é pobre

& eu queria ser sem emoções, mas só se fosse do jeito de uma árvore

& a alma da gente é um pião rodando, e o corpo é a ponteira de ferro que faz contato com o mundo

& a tristeza é uma gripe da alma

& nenhum mal dura para sempre; ele é substituído por um mal maior

& cyborg não faz check-up, faz back-up

& tem idéias que já vêm prontas, tem outras que é preciso adular muito pra que possam render alguma coisa

& toda editora deveria ter um selo só para livros de memórias de camareiras de hotel

& se os chineses vivem do outro lado da Terra, nada mais natural que tenham preferido pousar no outro lado da Lua

& se eu me tornasse milionário acabaria virando um misantropo que se dedica à filantropia

& nada como um sucesso atrás do outro, com um fracasso no meio

& a política é um reality-show onde uma porção de caras tentam enriquecer e a gente fica torcendo para que uns enriqueçam mais do que os outros

& passei a noite escolhendo as pepitas que vou jogar de volta ao rio

& a raiva alheia faz comigo o que faz o fogo ao basalto

& difícil achar um policial que saiba a diferença entre traficante e transeunte

& estamos todos prontos, de coturno, mosquetão e capacete, para defender o hímen da Mãe Pátria

& vendi minha alma ao Diabo e descobri depois que Deus ficou com 10%

& quem vê um rosto humano num pão mofado está a um passo de ver um significado para a existência humana

& quem me dera que a vida fosse como aquelas fazendas de trabalho escravo onde enquanto você estiver endividado não pode ir embora

& e surgiu um novo tipo de zumbi onde o corpo fica intacto e é a alma que apodrece

& a pirâmide social brasileira é do tipo que mantém sacrifícios humanos lá no topo

& tudo que acontece pela primeira vez será, mesmo assim, avaliado nos termos do que já aconteceu antes

& ser poeta, às vezes, é distribuir o que não tem e explicar o que não sabe

& tem gente cheia de auto-estima que está precisando fazer uma auto-estimativa

& a velhice é o lado B da vida; é lá que estão as surpresas discretas, as jóias sob a poeira do futuro