segunda-feira, 30 de agosto de 2021

4739) As fake news do Castelo Alto (30.8.2021)

 

“Basta eu abrir um livro para me ver transportado para um mundo diferente”. Sim. Todo livro é um portal. Sempre que vejo as lombadas verticais numa estante, sinto aquela sensação do astronauta Bowman em 2001, uma Odisséia no Espaço. Após abandonar a nave-mãe, pilotando seu módulo, ele avista no vácuo o Monolito, e quando este se põe “de lado” percebe-se que sua parte mais estreita (sua “lombada”) é uma abertura, uma fresta vertical para outro universo.
 
Pegar um livro é teleportar-se? De certo modo, sim. Teleportar-se numa viagem puramente mental, em que o corpo fica aqui, guardando o lugar de volta, e a alma se projeta lá longe.
 
Um recurso que a literatura fantástica já usou de variadas maneiras. Basta lembrarmos Em Algum Lugar no Passado (“Somewhere in Time”, Jeannot Szwarc, 1980). Christopher Reeve precisa voltar ao ano de 1912 para encontrar uma mulher por cuja foto se apaixonou. Ele se cerca de mobília, roupas e objetos do passado e, envolto nessa “aura”, retorna mental e fisicamente para 1912.
 
Objetos característicos de uma época parecem ter um vínculo cósmico com ela. E um descuido faz com que o pobre rapaz, já em pleno namoro em 1912, pegue distraidamente numa moeda de 1980 que por acaso ficou em seu bolso... e a moeda o traz de volta ao presente, à vida real.
 
Em 1961 Philip K. Dick começou a escrever O Homem do Castelo Alto no meio da uma crise emocional muito forte. Os romances que mandava para as editoras estavam sendo devolvidos, e sua então-esposa Anne estava fazendo um bom dinheiro com artesanato de jóias. Dick aderiu a essa atividade, mas ela o fazia sentir-se, ainda mais, um escritor fracassado.



 No capítulo 5 de sua biografia de Dick (Divine Invasions, 1989) Lawrence Sutin conta esse período, em que o artesanato de jóias e a prática do I-Ching, dois elementos do cotidiano tenso e neurótico de Dick em 1961, convergiram para a criação de um romance.
 
Dick produziu um objeto de que se agradou muito, um pequeno triângulo de metal, que deu de presente a seu vizinho Jerry Kresy. Esse objeto foi parar no livro O Homem do Castelo Alto.  É com ele que o sr. Tagomi consegue se transportar para o mundo paralelo onde os japoneses foram bombardeados em Hiroshima e Nagasaki, e o Japão perdeu a guerra.
 
Dick postula, já que se trata de um romance fantástico, uma carga prodigiosa de “wu” em alguns desses objetos. E na série de TV The Man in the High Castle de Frank Spotnitz (Amazon Prime, 2015-2019) vemos os antiquários Robert Childan e Ed McCarthy vendendo uma peça falsa a um casal japonês chique. Eles temem ser desmascarados, mas a mulher, ao segurar o medalhão que teria pertencido a um índio norte-americano, afirma sentir uma poderosa emanação de “wu”, de emoção humana impregnada naquela peça. Ella está captando, na verdade, a carga emocional injetada ali por Frank Frink, o artista-artesão problemático que a criou.
 
Na biografia de PKD, Sutin afirma que o escritor colheu num livro sobre jardinagem os termos chineses “wu” (a sabedoria, o Tao) e “wabi”  (inteligência, habilidade técnica).
 
O Homem do Castelo Alto fala na contiguidade entre esses dois universos em que a II Guerra Mundial teve desfechos opostos. E no mundo onde a ação transcorre circula um livro subversivo, The Grasshopper Lies Heavy, escrito por um misterioso Hawthorne Abendsen com o auxílio do I-Ching.
 
É o mesmo sistema que Dick estava usando para escrever seu livro. Diz ele, citado por Sutin:
 
Na verdade eu tinha decidido parar de escrever, e estava ajudando minha mulher no seu artesanato em jóias. E não estava feliz. Ela deixava para mim toda a parte mais chata do trabalho, e eu resolvi fingir que estava escrevendo um livro. E dizia: “Olha aqui, eu estou escrevendo um livro muito importante”. E para tornar a encenação mais convincente, comecei de fato a datilografar. E não tinha anotações. Não tinha nada em mente, exceto que durante muitos anos pensei em escrever algo sobre a Alemanha e o Japão derrotando os EUA. E sem anotação alguma, eu simplesmente sentei e comecei a escrever, somente para me afastar do artesanato em jóias. E é por isso que as joias desempenham um papel tão importante no romance. Sem anotações, eu não tinha nenhuma idéia preconcebida sobre como desenvolver o enredo, e usei o I-Ching para ir contando a história. (trad. BT)
 
Frank Spotnitz, com a equipe que adaptou o livro de Dick, tomou uma decisão arriscada mas que surtiu um bom efeito. Na série, em vez de livro, The Grasshopper Lies Heavy é uma série de filmes contrabandeados do mundo paralelo, mostrando a realidade oposta, e Abendsen é o cara que em seu “castelo alto” (seu refúgio, furiosamente buscado por nazistas e japoneses) reúne esses filmes que provam a existência de uma realidade paralela.
 
Nosso conhecimento do planeta e da humanidade é quase todo mediado por imagens, sons e textos. Somente quando viajamos podemos ter certeza absoluta, física, da existência da cidade A ou do país B.  
 
Não foi o próprio P. K. Dick que, num gracejo famoso, colocou isto em dúvida? Dizia ele: “Talvez o Japão não exista, mas quando compramos uma passagem aérea para lá ‘eles’ se atarefam e em poucas horas montam um cenário com aeroporto, hotel, etc., para nos convencer de que foi no Japão que desembarcamos”.
 
Os filmes contrabandeados por Abendsen mostram àquelas pessoas a existência “impossível” de um mundo diferente do mundo delas. Elas se recusam a aceitar. Dizem que tudo aquilo é falsificação – e o próprio Abendsen, a certa altura, admite ter produzido algumas falsificações grosseiras (filmando manchetes de jornal com letras recortadas, etc.) para contestar a vitória do Eixo. “Mas de repente os filmes de verdade começaram a aparecer”, diz ele.
 
Numa inversão cruel, quando ele é preso pelos nazistas na temporada 3 começa a produzir novas falsificações – numa tentativa de tirar a credibilidade dos filmes já conhecidos clandestinamente.
 
Essa proliferação de documentários em 16mm de um mundo vizinho é um pouco como a invasão do nosso mundo pelo mundo fantasmagórico de Tlon, no conto de Borges (“Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, 1940). Um processo que abala por dentro a nossa cofiança na existência de um mundo, uma confiança que é posta em xeque quando vemos provas visuais da existência de um mundo diferente.
 
Por que “provas”? Porque filmes desse tipo são as únicas provas que a maioria de nós tem da existência de grande parte do mundo. Há grupos de terraplanistas hoje em dia afirmando que a Austrália não existe, e que todas as “provas” de sua existência são uma complicada conspiração feita às pressas, como na “boutade” de P. K. Dick.
 
Além de ser uma boa história sobre realidades alternativas, a série expande um tema típico de Philip K. Dick: “o que é o real?”. Se nosso conhecimento da maior parte das coisas nos vem através de livros e filmes, como sabermos se eles dizem a verdade ou não? E acaba desaguando, depois de uma volta completo, na questão da materialidade. As pessoas constroem um portal para se transportarem fisicamente aos outros mundos, onde possam pegar, cheirar, ver, provar que aquilo também é real.