terça-feira, 6 de agosto de 2019

4491) Canudos e o Coração das Trevas (6.8.2019)






A obra de Euclides da Cunha, o homenageado deste ano da Flip (em Paraty), ainda está longe de ser uma conta que não deixa resto.

Ninguém fecha uma discussão sobre ele nem sobre sua obra, o que é uma coisa boa. Toda cordilheira de argumentos a seu favor, depois de devidamente empilhada, se conclui com um ominoso “Mas...”. Idem idem quanto aos argumentos contra.

Estilisticamente, sociologicamente, politicamente, etc.

Unanimidade ninguém tem, é verdade, mas luminares como Machado de Assis ou Guimarães Rosa podem se considerar em posições confortáveis no Olimpo. Despertam questionamentos e polêmicas, mas longe de inspirar posições extremas como as que Euclides inspira. Até mesmo “malditos” como Dalton Trevisan ou Campos de Carvalho desfrutam de uma certa uniformidade de julgamentos.

Verdade que pouca gente hoje se atreve a rompantes como este de Mário de Andrade, em O Turista Aprendiz (em “Caicó, 21 de janeiro de 1929”), onde desanca o então presidente da República, e o pobre Euclides entra de Pilatos no Credo:

A reverendíssima Exa. do dr. Washington Luís passa pelo Nordeste em discurso, não tirando luva da mão, sem experimentar o tapa-mão de couro do vaqueiro, bem hospedado, comendo, e muito, as comidas morenas de por aqui. E antes ou depois da viagem, que nem todos os brasileiros (até o nordestino!), continua lendo as literatices heroicas de Euclides da Cunha.

Pois eu garanto que Os Sertões são um livro falso. A desgraça climática do Nordeste não se descreve. Carece ver o que ela é. É medonha. O livro de Euclides da Cunha é uma boniteza genial porém uma falsificação hedionda. Repugnante.

Mário, turista acidental e aluno aplicado, estava passando pelo mesmo choque de realidade que tantos brasileiros experimentaram quando saíram da Corte ou da Metrópole e foram tostar a testa no sol do sertão. Paulo Francis que o diga.


Apesar da linguagem agressiva que emprega, Mário não parece estar fazendo uma crítica moral ao escritor, mas empurrando-o para a região do mero beletrismo ocioso, que ele, Mário, tanto combateu (inclusive em si mesmo). Porque ele prossegue num tom que conhecemos muito bem no Brasil: o de “chega de escrever romances de denúncia e de protesto, é preciso fazer alguma coisa”:

Mas parece que nós brasileiros preferimos nos orgulhar duma literatura linda a largar da literatura duma vez pra encetarmos o nosso trabalho de homens. Euclides da Cunha transformou em brilho de frase sonora e imagens chiques o que é cegueira insuportável deste solão; transformou em heroísmo o que é miséria pura, em epopeia... Não se trata de heroísmo não. Se trata de miséria, de miséria mesquinha, insuportável, medonha. Deus me livre de negar resistência a este nordestino resistente. Mas chamar isso de heroísmo é desconhecer um simples fenômeno de adaptação. Os mais fortes vão-se embora.



Nelson Werneck Sodré (História da Literatura Brasileira, cap. 14) via a falsidade de Euclides justamente no extremo oposto: nas tinturas de ciência que ele se esmerou em aplicar. Ao exibir a erudição penosamente pesquisada, diz NWS, ele era falso; a verdade emergia quando ele falava do drama humano.

E é curioso notar que a inverdade da forma corresponde quase sempre a uma inverdade de conteúdo, e por isso mesmo ocorre com muito mais frequência na parte dedicada ao estudo da terra e do homem, em que acolhe os conceitos e os preconceitos da ciência externa, a única de que se pode valer. O falso da sua botânica, da sua antropologia, da sua sociologia, encontra paralelo, em cada caso, no falso da sua linguagem. Quando surgem os acontecimentos, os episódios, as peripécias, o estilo se torna menos tortuoso, e a parte da campanha propriamente é muito mais acessível do que a introdução. 


Euclides procurou, em grande medida, se impor com o aval do cientificismo. Isto não apenas estava inculcado no espírito do seu tempo, como era nas letras brasileiras uma novidade positiva. Neste sentido, ajudou a marcar não apenas o seu território, mas o de autores de menor sucesso em vida, como Augusto dos Anjos.

O que garantiu a sobrevivência de Os Sertões, no entanto, foi o embate entre esse iluminismo laboratorial da prosa e a ferocidade bruta dos fatos. E Euclides (ele assim o afirma) parte sempre dos fatos. É isto que faz do seu livro a história de uma conversão, de alguém que mergulha numa experiência dantesca e sai dali transformado para sempre e, em grande medida, transformado num antagonista do que fôra.

Os Sertões é (entre outras coisas) a narrativa de como uma visão-do-mundo trinca, se estilhaça, e desmorona ao contato do mundo. Para ficar no tom cientificista, é a história de um “conceptual breakthrough”, o termo de Peter Nicholls para aquelas histórias de ficção científica em que um indivíduo percebe de repente que vivia num mundo ilusório, e que o “mundo de verdade” é algo maior e mais terrível (como Neo em Matrix, como Ragle Gumm em O Tempo Desconjuntado). 

Wilson Martins (História da Inteligência Brasileira, vol. V) sugere um parentesco, ainda a ser estudado, entre Euclides e Victor Hugo, comparação que não deixa de evocar o epíteto de “Hércules-Quasímodo” com que ele descreve o sertanejo. Os dois autores são “épicos, dramáticos e trágicos”, e ambos têm uma fascinação pelo lumpen, pelo ser humano reduzido à miséria mais extrema (como os truões do Pátio dos Milagres, em Nossa Senhora de Paris), o mendigo andrajoso que mesmo dentro do abismo se agiganta e dá trabalho. 


Um paralelo que não vejo ser muito explorado por aí (mas devo estar comendo mosca) é o do livro de Euclides com O Coração das Trevas de Joseph Conrad. São obras praticamente contemporâneas: Heart of Darkness saiu primeiro na revista Blackwood’s Magazine em 1899 e em forma de livro em 1902 – o mesmo ano de Os Sertões.

Em ambas se narra uma jornada lenta e aterradora rumo a uma sucessão de violências inimagináveis, praticadas em nome da cultura e da civilização. O “centro” da tragédia do livro de Conrad é Mr. Kurtz, um gerente comercial que comanda grupos de nativos na África e negocia com marfim: “um emissário da piedade, da ciência e do progresso”. Na transposição de Francis F. Coppola para o cinema, Apocalipse Now, ele se transforma no Coronel Kurtz, oficial norte-americano na guerra do Vietnam – o que faz o filme de Coppola chegar ainda mais perto do livro de Euclides.


Algumas das passagens mais chocantes de Os Sertões mostram que depois de um certo ponto soldados e jagunços não se distinguiam mais uns dos outros, todos esfaimados, maltrapilhos, mergulhados na demência da chacina permanente. Tal como as volantes que perseguiam os cangaceiros, era quase impossível distinguir os caçadores da caça.          


Esse clima alucinatório de guerra é evocado na famosa sequência, perto do final de Apocalypse Now, em que o barco norte-americano avança silenciosamente pelo rio noturno, por entre margens repletas de fogueiras, cruzes, caveiras, corpos empalados. É a chegada ao núcleo da barbárie de que aquela civilização se alimenta a pretexto de extingui-la, e lembra a descrição de Euclides do caminho que leva ao arraial, após o massacre da Terceira Expedição:

Os jagunços reuniram os cadáveres que jaziam esparsos em vários pontos. Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. Por cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos de fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas... (...) Um pormenor doloroso completou esta encenação cruel: a uma banda avultava, empalado, erguido num galho seco, de angico, o corpo do coronel Tamarindo. (...) 

Quando, três meses mais tarde, novos expedicionários seguiram para Canudos, depararam ainda o mesmo cenário: renques de caveiras branqueando nas orlas do caminho, rodeadas de velhos trapos, esgarçados nos ramos dos arbustos, e, de uma banda – mudo protagonista de um drama formidável – o espectro do velho comandante... (“Expedição Moreira César, VI”) 

O Coração das Trevas e Os Sertões são como aqueles pontos correspondentes no do-in ou na acupuntura, muito distanciados no corpo, mas basta tocar um deles para que o outro responda de imediato. São duas extremidades de alguma coisa mais profunda.