segunda-feira, 26 de agosto de 2019

4497) Julio Cortázar, 105 anos (26.8.2019)





Vivo fosse, o autor de O Jogo da Amarelinha estaria completando 105 anos neste 26 de agosto. 

Nascido em Bruxelas de pais argentinos, e depois radicado na França, Cortázar foi um daqueles escritores argentinos com profunda influência européia. Não apenas literária; uma influência existencial, com um lado intelectualmente aristocrático que os distanciava do populismo plebeu dos peronistas, mas por outro lado com um lado lúdico, irreverente, que os indispunha com uma certa elite cultural portenha, cheia de pompa vazia e de feroz politicagem.

Sua obra literária, felizmente, continua a ser traduzida e reeditada no Brasil. 

Muitos textos novos têm aparecido, com destaque para os Papéis Inesperados (Rio: Civilização Brasileira, 2010, trad. Ari Roitman e Paulina Wacht), uma compilação feita por sua viúva Aurora Bernárdez e por Carles Álvarez Garriga, reunindo contos, artigos, fragmentos cronopianos e uma interessante miscelânea.



Obras críticas e biográficas também têm saído, como Cortázar – Notas Para Uma Biografia de Mario Goloboff (São Paulo: Editora DSOP, 2014, trad. José Rubens Siqueira).



Nesta veia, encontrei recentemente um volume pequeno e curioso, Cortázar, Profesor Universitario – Su paso por la Universidad de Cuyo en los inicios del peronismo, de Jaime Correas (Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2004). É o relato de uma fase pouco conhecida na vida do autor, quando durante um ano e meio (entre 1944 e 45) ele ensinou nessa universidade, na cidade de Mendoza, onde fez amizades que duraram pelo resto da vida, como o artista plástico Sérgio Sergi e a crítica literária Lida Aronne de Amestoy.



O autor informa que era leitor da obra de Julio e só depois de muito tempo descobriu que ele tinha sido professor na universidade onde ele próprio estudava agora, e que muitos dos professores que agora tinha eram ex-alunos do autor de Os Prêmios. A pesquisa se impôs, e ele faz uma curiosa confissão (trad. minha):

Com esse material em mãos, escrevi em 1996 um romance fracassado, que os piedosos editores puseram na estante dos definitivamente inéditos, e do qual resgatei apenas o final, dando-lhe a forma de um conto que ganhou um vago concurso.

Em 1995 apareceu o “Diário de Andrés Fava” [fragmento narrativo até então inédito, de Cortázar], em que Mendoza e os amigos de Cortázar estão presentes. Para quem estava investigando este tema, havia uma frase inquietante: “Se eu convivesse com escritores, anotaria toda ocorrência que me parecesse significativa – não a mera troca de espertezas – e faria um grande favor aos biógrafos de 1995”. O título daquele conto premiado que eu havia escrito era “Pobres Biógrafos”. Fiquei, desde então, com o sentimento de que esses indícios que estava recolhendo tinham algum sentido. Havia neles uma história, um homem que deixava as marcas dos seus passos para que alguém o seguisse.  (p. 14-15)

Jaime Correas comprova o fato bem sabido de que ler muito um autor é aprender a pensar como ele pensa. Cortázar cultivava um Realismo Mágico que não tinha muito a ver com o mágico mundo rural de um Astúrias ou um Juan Rulfo. Seu comércio com o elemento mágico dependia da percepção de simetrias, de paralelismos inesperados.

Ernesto González Bermejo (em Conversas com Cortázar, Jorge Zahar Editor, 2002, trad. Luís Carlos Cabral) mostra como o escritor tenta exprimir essa percepção:

Acredito que quando uma pessoa é porosa nesse plano, tudo o que chamamos “casualidades” ou “coincidências” se multiplica. Mais: acredito que você acaba atraindo essas casualidades. (p. 38)


Cortázar usa repetidamente o termo “constelações” para descrever essa percepção, que é individual e única. As estrelas de uma constelação no céu não tem necessariamente nenhuma relação entre si, mas vistas daqui da Terra parecem formar uma figura. Cortázar compara isso às intuições súbitas que o acometem e que muita vezes resultam em contos:

Eu tenho sido invadido por concatenações instantâneas, vertiginosas, entre coisas heterogêneas que entram no campo dos meus sentidos. E isso acontece sempre em momentos de distração. (p. 73)

Pense em Lautréamont. Quando ele amontoou, metaforicamente, uma máquina de costurar, um guarda-chuva e uma mesa de operação e sentiu que desse “encontro fortuito” surgia um sentimento de beleza inexplicável, não fez mais do que expressar uma abertura para uma coisa que, à primeira vista, não era possível justificar pela mera presença de componentes tão prosaicamente selecionados.

Mas se o sujeito é sensível a tais demonstrações parapsicológicas, se não as descarta como meras fantasias da distração, o acatamento desse clima receptivo facilita cada vez mais a sua repetição sob circunstâncias e com elementos diferentes. Produz-se algo assim como um ciclo em que essas bruscas coagulações, que a razão é incapaz de entender, passam a se repetir com frequência crescente. (p. 74)

O que existe de “mágico” na literatura de Cortázar bebe na mesma fonte intuitiva e pré-consciente do jogo aleatório das moedas do I-Ching oriental ou dos búzios africanos – a consciência de que em certos momentos uma mente aguda e um olhar alerta podem captar certas constantes do mundo, fazer relações instantâneas entre fatos, coisas e fluxos aparentemente não-relacionados.

Para isso é preciso limpar a mente, esquecer não só os preconceitos como os conceitos também, deixar-se alvejar pelos fatos, pelo contato da realidade em-bruto.


Numa carta de 1957 a seu grande amigo Eduardo Jonquières, Julio ironizava os “Lineus”, os classificadores, os taxonomistas, que colecionam conceitos e rótulos a tal ponto que não enxergam mais a realidade:

Em Paris acontece quase sempre a mesma coisa: a necessidade de classificar das pessoas é um triste resultado (entre outros menos tristes, por sorte) de nossa cultura ocidental. Em cada um de nós dorme um Lineu, com os bolsos cheios de etiquetas. Você já notou a inquietação das pessoas, num concerto, quando o pianista toca um bis sem anunciar do que se trata? Todo o prazer se perde devido à irritante busca mental do autor dessa peça. Será Scarlatti? Não, deve ser Vivaldi. E se fosse Bach?

(Cartas a los Jonquières, Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2010, p. 378-379, trad. minha).

Uma das curiosidades do livro de Jaime Correas citado acima são os apêndices com os programas e bibliografia sugeridos pelo Prof. Cortázar para seus cursos: “Literatura Francesa I Poesia Francesa no Século XIX – Baudelaire, Verlaine, Mallarmé”, “Literatura Francesa II – A poesia francesa de Rimbaud aos nossos dias”, “Literatura da Europa Setentrional – Poesia inglesa no início dos século XIX: John Keats”, “Poesia romântica no começo do século XIX”, “A novela romântica”.

Aqui, no YouTube, um documentário sobre a passagem de Cortázar por Mendoza e a Universidade de Cuyo: