sexta-feira, 22 de agosto de 2014

3584) Escravos nas paredes (22.8.2014)



Durante um fim de semana, um grupo de pessoas se reúne numa casa de campo para se divertir, socializar, prevaricar, lavar roupa suja; uma delas é necessariamente assassinada.  É a célula narrativa básica do que se chama “country-house murders”, um subgênero do romance policial que Agatha Christie muito contribuiu para aperfeiçoar.  Outro subgênero é o dos “locked-room murders”, os crimes em quartos trancados por dentro, onde um assassino não poderia entrar, ou de onde não poderia sair, sem ser visto. O crime de quarto fechado é um caso mais específico dos “crimes impossíveis ou “desaparecimentos impossíveis”, um rótulo mais abrangente.  Seu executor mais brilhante e seu hábil legislador é John Dickson Carr.

O romance de Marcelo Ferroni, Das paredes, meu amor, os escravos nos contemplam (Cia. das Letras, 2014) reúne essas duas fórmulas britânico-americanas e o resultado é curiosamente brasileiro. A família rica e decadente, dona da fazenda onde a história acontece ao longo de uma noite de tempestade, tem cadeira cativa em nossa literatura, em nosso cinema, está presente por toda parte deste país, de sul a norte. É uma família de memória nebulosa e história construída a golpes de certidões e de relatos. A banalidade dos seus diálogos, dos seus assuntos, é cruelmente verossímil.  Todos são seguros de si, da inteireza do seu mundo, todos são rápidos como um reptiliano no instante de reagir ao aguilhão alheio.

Quase todo o livro transcorre em um pouco mais de vinte e quatro horas. Durante essa jornada insone noite adentro, cadáveres são descobertos, vidas são sacrificadas, mistérios são propostos e solvidos, máscaras caem, teorias são confrontadas. É a impiedosa noite acesa dos culpados.  O mistério policial é colocado e resolvido com clareza, mas mais importante do que o truque do quarto fechado é o modo gradual como o mistério vai se aclarando, por não haver um herói detetive centralizador.  Cada um explica um detalhe e um ou outro sugere uma teoria geral para tudo.

O objetivo da certa literatura policial parece ser provar que qualquer um de nós pode se tornar um criminoso. Este romance sugere também que qualquer um pode ser um pouco detetive. Os médicos, os mecânicos de oficina, os advogados realmente competentes, todos pensam como Sherlock Holmes, e todos tentam ter o olhar de lince dele. Olho de lince é também o que não falta mesmo ao mais largadão dos reptilianos, quando, numa noite de ventos uivantes, numa fazenda construída pela mão de escravos, se juntam em torno de uma mesa para questionar um documento, pulverizar um álibi, tisnar uma reputação, cometer o Crime Impossível e se safar.  De certo modo.