quarta-feira, 9 de setembro de 2015

3915) Na descida do morro (10.9.2015)




(foto: Robson Fernandjes)


“Eu estava numa favela do Rio, era como se fosse o Morro do Alemão. Tinham me levado para lá por algum motivo e o carro tinha ido embora. Era um terreno baldio cheio de mato e havia um cadáver ali pertinho. Havia um grupo de bandidos, mas o clima não era hostil, eles sabiam quem eu era e que tinha ido lá fazer algo com autorização; na verdade nem estavam me dando muita atenção. Eu dizia que queria voltar para a cidade. Eles me levavam para uma casa onde havia um casal idoso e outras pessoas, e me diziam para esperar ali. O tempo passava. Mesmo sem me sentir diretamente ameaçado eu queria cair fora dali o quanto antes. Pedia que fossem comigo até a entrada da favela, mas eles diziam não ter tempo: “Não tem problema. Vai lá, aqui é tranquilo”, mas eu dizia: “Eu preferiria caminhar aqui dentro com algum de vocês, e não sozinho”. Havia uma tensão permanente. Eu temia um tiroteio, porque as paredes de tijolo eram muito finas.

“Depois eu vinha andando noutro ponto da favela, uma espécie de feira nordestina cheia de barracas. Eu vinha por entre as barracas, que vendiam pratos-feitos, tapioca feita na hora, etc. A certa altura eu avistava uma saída para fora da favela, mas as barracas eram tão juntas que eu não conseguia passar entre elas. As barracas eram mantidas por pessoas aleijadas, cada uma com um defeito físico diferente. Por fim eu conseguia me esgueirar entre duas barracas, quase derrubando as panelas e utensílios das pessoas, e me aproximava de uma grande porta; só então eu percebia que aquilo, a tal da feira, não era ao ar livre, era uma espécie de grande salão dentro de um prédio, com centenas de metros quadrados, e as barracas estavam todas dentro dele.

“A porta da rua estava fechada, era uma porta imensa de madeira escura tipo mogno, cheia de entalhes, porta de casa antiga. Eu ficava aliviado em ver que depois de muitas horas eu ia conseguir sair dali. Eu via que ela estava destrancada, e me bastava girar a maçaneta e sair. Eu o fazia, cruzava a porta e a fechava atrás de mim, mas percebia então que aquela porta dava para uma rua enladeirada que ia subindo à minha frente. A rua era uma ladeira estreita que desembocava exatamente naquela porta, e nela havia uma fila enorme de carros, camburões e caminhões da polícia e do exército, estacionados, cheios de soldados armados, à espera. Em alguns carros os soldados dormiam de boca aberta, roncando, como quem está ali há um tempão, somente aguardando um sinal; e no rádio de todos os carros tocava bem alto a mesma música, uma música instrumental meio metaleira, pesada, ameaçadora. Eu começava a subir a ladeira, passando ao longo dos carros.”



3914) Roland Barthes (9.9.2015)




Talvez os centenários de Lourival Batista e de Rosil Cavalcanti tenham me distraído, porque só agora fiquei sabendo que estamos comemorando também os cem anos de nascimento de Roland Barthes (1915-1980), um dos nomes mais importantes nos estudos da teoria literária e da linguagem. Barthes foi aquele típico intelectual parisiense no que essa estirpe tem de melhor, exibindo erudição, refinamento, cosmopolitismo, atenção à vida prática, elegância na exposição das idéias e uma capacidade assustadora de ver as coisas pelo lado de fora. Ler os textos dele era como estar num desenho animado de Escher ou de Steinberg, onde pensamos: “Ah, sim isto é o mundo, e aquilo lá adiante é um quadro” e de repente percebemos que em volta do “mundo” existe uma moldura mostrando que ele é um quadro também. E de recuo em recuo vamos nos afastando dos “quadros”, à procura de um ponto de vista inacessivelmente externo e objetivo, sem conseguir. O mundo é uma sucessão de quadros em-abismo, diminuindo diante dos nossos olhos e ao mesmo tempo alargando-se às nossas costas. Não é que o mundo não exista; ele existe, mas é feito dessas caixas de linguagem infinitamente guardadas umas dentro das outras.

Leitores de Barthes hão de me crucificar por simplorizações deste tipo, mas paciência. Sempre que tentei penetrar no labirinto da semiótica dei com a cara em portas para as quais nunca tive a senha. As únicas portas estilisticamente abertas e convidativas eram as do italiano Umberto Eco e do francês Barthes, que viraram minhas referências de leigo sempre que procuro refletir a respeito dos reflexos das reflexões alheias sobre os espelhos da literatura e da linguagem. Barthes deve ter sido um professor fascinante para seus alunos do Collège de France e outras instituições. Sempre o imaginei tendo algo de meu mestre Jomard Muniz de Britto e de explicadores mesmerizantes como Paulo Emílio Salles Gomes ou José Miguel Wisnik.

A Bibliothèque Nationale de France abriu uma grande exposição em sua homenagem (ver aqui: http://tinyurl.com/nm2msgx). Um lembrete para que a gente retorne a sua obra, sempre inventiva. Dele, li apenas três livros: Mitologias (1957), sua primeira coletânea de artigos sobre literatura, moda, arte, educação e outros temas, sempre numa linguagem acessível, e de grande impacto na época; A Câmara Clara (1981), reflexões sobre a fotografia analisada por um sistema de signos muito pessoal, e sempre com alguma coisa nova para dizer; e Fragmentos do Discurso Amoroso (1977), anotações sobre o que acontece na mente de uma pessoa apaixonada, e talvez o único livro inteligente já escrito sobre este tema.