quarta-feira, 28 de abril de 2021

4698) A arte de usar a fórmula (28.4.2021)



 
O que é uma fórmula? É um conjunto de elementos que se devidamente usados produzem um resultado específico. 
 
A fórmula da água, H20, nos indica que se juntarmos dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio teremos uma molécula de água, e que essas moléculas, em quantidade suficiente, formarão o liquido que conhecemos tão bem.
 
A fórmula do romance detetivesco indica que deve haver um crime, que de início deverá haver um mistério acerca do crime (quem o cometeu, por quê o cometeu, como o cometeu), e que caberá a um personagem, o detetive, examinar os fatos e achar a solução.
 
Existem outras fórmulas literárias mais sofisticadas.
 
Por exemplo, os manuais de literatura falam da “sátira menipéia” (as denominações variam), cujas características principais seriam:
 
1) ausência de enobrecimento dos personagens;
2) mistura do sério e do cômico;
3) desprezo à verossimilhança, admitindo "as fantasmagorias mais desvairadas";
4) a representação frequente de "estados psíquicos aberrantes";
5) o uso intercalado de outros gêneros (cartas, novelas encapsuladas) no interior da história propriamente dita.



Capturei esta fórmula de um texto de José Guilherme Merquior sobre Machado de Assis e o seu Brás Cubas, onde Merquior aponta as semelhanças entre o livro de Machado e os traços desse gênero.
 
Um gênero literário não é mais do que um conjunto de obras que podem ser classificadas de acordo com uma fórmula. Os elementos citados na fórmula estão no livro? Então pronto.
 
Claro que sempre é preciso fazer um certo aconchambramento para que cada livro se encaixe bem direitinho na fórmula. Arranjar exemplos para uma teoria é sempre um “leito de Procusto”, aquele cara da mitologia grega que tinha um leito onde ele amarrava os prisioneiros: se o preso era muito comprido e sobravam os pés, ele cortava; se era baixinho e os pés não igualavam com o leito, ele o esticava com roldanas.
 
Os teóricos da expressão artística fazem isso há séculos, para demonstrar que o livro A é ficção científica, que o filme B tem ideologia popular, que o quadro C pertence à escola cubista, que a música D é rock autêntico...
 
Fórmula e obra são duas coisas diferentes. Alguém já disse que “o escritor medíocre obedece à fórmula, o escritor de talento desobedece à fórmula, e o gênio explode a fórmula e impõe uma fórmula nova”. Tipo isso.



(W. J. Solha)

Eu estava vendo nas redes sociais uma postagem de W. J. Solha, o escritor e artista plástico paulista "renascido" como paraibano. Solha dizia de sua estranheza ao ter um dos seus livros classificados como um “épico”, e outro se inscrevia na “literatura carnavalizadora” de Bakhtin. E Solha comenta, com bom humor: “Eu nunca tinha ouvido falar no russo nem nessa sua teoria”.

Existem dois tipos de criação artística. O primeiro deles é o que se pratica por aí em geral: absorver as obras alheias, e criar obras pessoais. O segundo é: absorver os preceitos teóricos e as fórmulas produzidas pelos teóricos, e criar a partir delas. Nenhum é melhor ou mais legítimo do que o outro – dependendo do resultado.
 
Eu posso, por exemplo, sem ter lido nenhuma “sátira menipéia”, pegar aquela fórmula usada lá em cima por Merquior e escrever um livro. Vai ficar parecido com as sátiras dos gregos e dos romanos? Capaz que fique. E no fim das contas não importa muito – o que importa mesmo é se a leitura da minha sátira menipéia produza um efeito estético no leitor. Independentemente de como seja chamada.
 
E mais. Eu posso pegar meu livro escrito sob a fórmula da “sátira menipéia” e dar-lhe outro rótulo igualmente artificial e igualmente plausível. Digamos que escrevi uma aventura interplanetária meio doidona, coisa que eu posso escrever com um pé nas costas. Direi aos críticos: “Meu romance é um exemplo do Absurdismo Interplanetário, na linha de Douglas Adams e de Robert Sheckley”. Aposto dobrado contra singelo como qualquer crítico engole essa. E faz muito bem.
 
Se nos livros do mestre Solha havia algo de épico ou de carnavalizador isso não se devia à aplicação de uma fórmula, mas à vagarosa sedimentação de efeitos, recursos, soluções estruturais, opções dramatúrgicas, etc., que ele foi absorvendo ao longo de anos e décadas de leituras.
 
Quando a gente lê muito, a gente percebe os grandes arcos que sustentam um gênero literário ou uma coletividade qualquer de idéias. Estão em cada obra individual. Mas estão invisíveis, porque em cada obra o que primeiro percebemos é o raro, o único, o individual. Mas depois de ler 100 romances policiais, 100 poemas épicos ou 100 comédias de vaudeville o verdadeiro escritor percebe a continuidade de certos traços, que percorrem transversalmente todas essas obras tão diferentes entre si. Esses traços são a fórmula-do-gênero, que ele encontrou sem procurar.
 
Um escritor pode passar para si mesmo esse dever-de-casa. Se tiver talento, pouco importa se ele leu 100 livros ou se leu somente a fórmula. Raymond Chandler nunca tinha publicado um livro até os 50 anos: era um executivo de empresa petrolífera, com educação clássica na Inglaterra. A pessoa menos indicada para escrever histórias policiais de pulp fiction. Precisava de dinheiro. As revistas pagavam bem. Leu quantidades industriais de pulp magazines, estudou a obra de Hammett, Gardner e outros... e explodiu a fórmula, criou uma fórmula nova.