sábado, 6 de julho de 2019

4482) O gênio João Gilberto, 1931-2019 (6.7.2019)





A notícia da morte de João Gilberto me pegou justamente num sábado em que eu preparava um artigo sobre estilo literário. Estilo, em termos gerais.

Estilo (ia eu pensando) é um conjunto de qualidades e defeitos tão peculiares que dão um perfil único e inimitável àquele artista. Um conjunto de habilidades e limitações: coisas que ele faz melhor que qualquer um, justapostas a coisas que qualquer um faz e ele é incapaz de fazer.

Quero ser mico de circo se João Gilberto fosse capaz de me ver tocando violão (assumidamente mal) durante 2 ou 3 horas e depois tocar do jeito que eu toco. Não poderia. Ele só sabia tocar – acho eu – do jeito de João Gilberto.

Em qualquer capital brasileira há grandes violonistas de barzinho capazes de tocar igual a João e, se me vissem, igual a mim em 15 minutos. Tocam igual a Baden Powell e a Mark Knopfler, se quiserem. E por isso nunca serão outra coisa senão grandes violonistas de barzinho.

João Gilberto desenvolveu sua estética, sua batida, sua harmonização, sua emissão vocal, num meio musical extremamente exigente e vigilante, o da vida noturna do Rio de Janeiro dos anos 1950. Era um Brasil onde o conceito milionário de sucesso era apenas um vapor muito tênue. Era uma selva de qualidades conflitantes, um Brasil capaz de acolher com hospitalidade as violentas guinadas artísticas da Bossa Nova.

A grandeza de João foi a de criar um idioma musical próprio, mistura de candura, rigor e complexidade, e com isso provocar respostas diferentes em cada um dos seus discípulos. Veja-se a diversidade da obra de admiradores seus como Tom Jobim e Chico Buarque, no lado mais caretão da MPB, e como Gilberto Gil e Caetano Veloso, no lado mais carnavalesco do tropicalismo.

Todos influenciados por João, todos diferentíssimos dele, a ponto de um jovem de hoje ter dificuldade de enxergar a influência de João em muitos deles, mas nenhum deles (podemos arriscar) ousaria o quanto ousou sem o exemplo radical de João Gilberto.

Nunca fui um grande fã de João, acho que por uma questão cronológica. Tivesse nascido uns cinco anos antes e talvez a Bossa Nova tivesse me arrebatado como arrebatou tantos outros; e como o próprio Tropicalismo me arrebatou mais tarde.

Só comecei a reconhecer o papel desbravador de João quando li o Balanço da Bossa de Augusto de Campos, onde ele reconstitui vários processos desconstrutores com que João e a Bossa desinflaram a música popular operística e tenorística da época, com seus dós-de-peito, seus sentimentos porejantes de dramaticidade. Era o bolerão de Nelson Gonçalves (que continuo admirando – vejam só como são as coisas), Vicente Celestino e companhia.

A Bossa Nova varreu essa nossa música melodramática e sentimental com uma estética enxuta, simples, que raspava todos os excessos até revelar a ossatura de harmonia, melodia, ritmo e canto. Mostrava como nada daquele recheio fazia falta, e que era possível haver emoção sem sentimentalismo, força sem empostação.

Alguém disse da arquitetura de Oscar Niemeyer que ela demonstrava o quanto o concreto é leve. As harmonizações e as divisões rítmicas de João Gilberto mostravam que era possível haver uma ultra-sofisticação por trás de estruturas aparentemente simples, nuas, despojadas.

Como a poesia de João Cabral de Melo Neto e seu poeta-engenheiro que sonhava com superfícies claras, limpas, um copo dágua, uma quadra de tênis. Um “edifício crescendo de suas formas simples”.

Uma estética que correu mundo. Num trecho da contracapa de Bringin’ it All Back Home, Bob Dylan dizia: “Muitos podem gostar de um suave cantor brasileiro, mas eu já desisti de tentar a perfeição”. O álbum é de 1965, quando a Bossa Nova já pipocava nos EUA após o histórico concerto do Carnegie Hall em 1962.

Gosto é gosto, e sinto muito mais prazer ouvindo os seguidores de João Gilberto do que ele próprio, porque neles (Tom, Chico, Gil, Caetano) me atrai a exuberância, a variedade de formas, a espontaneidade melódica (muito mais do que a complexidade harmônica), a potência poética.

Os únicos discos dele que já tive foram o “Chega de Saudade”, “O amor, o sorriso e a flor” (o da capa solarizada), aquele com Astrud e Stan Getz, aquele outro da capa colorida que tem “Farolito” e outro que não lembro o nome, já na fase dos óculos, terno preto e cabelos brancos. Para mim ele é uma lição de minimalismo comparável com Erik Satie na música erudita e com Paul Klee e Miró na pintura.

E também, como todos estes, uma obra percorrida por um forte veio infantil, como de meninos que nunca cresceram e que mesmo depois de barbados continuam a brincar como se tivessem cinco anos. Este veio alimentou fortemente a Bossa Nova, com suas letrinhas ginasianas que às vezes derrapavam no simplório. Isso nunca me incomodou muito – eu fui desde o início um fã da Jovem Guarda, e nunca liguei para o infantilismo de “O Pato” ou “Lobo Bobo” porque para mim eram versos no mesmo nível simpático e brincalhão de “A Festa do Bolinha” ou “O Calhambeque”.

A própria voz de João Gilberto nunca se despregou muito da infância, era aquela voz sem muita força, de quem ainda não cresceu cabelo no peito, de quem acostumou-se a falar baixinho porque mora numa casa onde todo mundo é estentórico e tonitruante.

A casa dele era a casa cheia de decibéis onde pontificavam Cauby Peixoto, Ângela Maria, Leny Eversong e outros prodígios capazes de sustentar uma nota no ar durante o tempo de se fumar um cigarro sem filtro. Eles ensinaram a João, talvez, o valor da fala pequenininha, como uma estrela miúda que alumeia o mar.

Havia em João esse viés infantil, herdado por compositores e cantores em busca de simplicidade das coisas realmente grandes: Sidney Miller, Nara Leão, o próprio Chico Buarque com seu rosário de canções adaptadas das musiquinhas de roda e contos de fadas.

Só vim a considerar João Gilberto um gênio quando li o Chega de Saudade de Ruy Castro, agora já nos anos 2000, e finalmente entendi um pouco desse personagem por trás do cantor que parecia desafinar e era mais afinado que todo mundo, que parecia atravessar o ritmo e na verdade estava com as rédeas do ritmo na mão o tempo todo.

Um gênio raramente morre feliz. Um gênio raramente tem uma vida à altura da beleza que deixou para os outros. Eu faço uma distinção (bem minha, bem pessoal) entre “gênio” e “grande artista”. Um gênio não é simplesmente alguém mais inteligente do que o resto. É um cara anormal, no sentido de que tem (olha aqui a definição de “estilo”, mais uma vez) uns certos talentos e umas certas limitações numa combinação que ninguém mais tem, e num grau de intensidade que poucas pessoas em volta dele conseguem tolerar.

Chico Buarque, Tom Jobim, Edu Lobo, Caetano e companhia, todos são artistas excepcionais, mas nenhum deles é um gênio. São sujeitos iguais a mim e a você. Com a diferença de que compõem, escrevem cantam, etc. melhor do que eu ou você.

Um gênio é um sujeito fora de esquadro, fora do cotidiano normal de outras pessoas. Um gênio é alguém que incomoda, que provoca constrangimentos, que não é fácil de manobrar. Pode ser capaz de ingenuidades terríveis, de crueldades desnecessárias, de extremos egoísmos e generosidades extremas (tão extremas que nos deixam desconfortáveis). E não o faz pensando nas manchetes dos jornais nem na conta bancária. Faz porque isso é parte de sua formatação deformada, que o torna intensamente brilhante para algumas coisas e um tosco total para outras.

Renoir, Cézanne, Portinari, não eram gênios, eram grandes artistas. Gênio era Van Gogh. Um gênio é sempre alguém que você pensaria duas vezes antes de aceitar como hóspede em sua residência. João Cabral, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond, não foram gênios (por esta minha nomenclatura), foram grandes poetas. Gênio era Arthur Rimbaud, era Edgar Allan Poe.

As maluquices de João Gilberto são conhecidas demais para repisar aqui. Fechado em si mesmo, sem ver ninguém e ao mesmo tempo dando telefonemas de cinco ou seis horas seguidas para pessoas que mal conhecia, ele seguia esse destino inapelável dos que não conseguiriam ser menos excêntricos – mesmo que quisessem, mesmo que achassem possível, mesmo que percebessem que as outras pessoas são diferentes deles.

Um gênio raramente tem uma vida pacata, uma morte tranqüila. Raramente é feliz, mesmo quando por um golpe de sorte é festejado em vida. Admiramos a obra que produzem, mas jamais invejaríamos a vida que gerou essa obra.

São os grandes solitários, os que brilham muito mas enxergam pouco. São números primos: aqueles que só se dividem por si mesmos, e pela Unidade.