quarta-feira, 12 de abril de 2023

4931) A Invenção de Morel (12.4.2023)




Um tema recorrente na ficção científica é o tema da fuga para outros planetas, antes ou durante um cataclismo qualquer. Como a Terra está em vias de destruição, preparam-se algumas “arcas de Noé” que decolarão rumo a um planeta habitável, onde a humanidade terá um novo recomeço. 
 
Um clássico do cinema nessa veia é O Fim do Mundo (“When Worlds Collide”, Rudolph Maté, 1951). A questão principal é: quem vai nessa Arca?  Quem serão os felizardos? No filme, o milionário que financia a construção da espaçonave exige o direito, bastante compreensível, de escolher os convidados. Briga-se muito, e a escolha acaba sendo feita por um sorteio de loteria, que dá origem a vários desdobramentos melodramáticos.
 
No recente e premiado conto de N. K. Jemisin, Emergency Skin (2019; no Brasil, na antologia Forward, Ed. Intrínseca, 2021), a Terra está em pleno colapso e os bilionários constroem uma frota de espaçonaves para a fuga. Depois que eles vão embora, os que ficaram para trás conseguem reverter a situação, uma vez que os causadores da situação migraram em massa. 
 
Numa catástrofe, salvam-se os que podem. 
 
Se um cientista inventar um dia uma máquina de imortalidade, ou de imortalização, quem serão os primeiros beneficiados? Provavelmente as pessoas a quem ele tem acesso, as pessoas que são importantes para ele. 
 
É mais ou menos o que acontece com o Morel imaginado por Adolfo Bioy Casares no seu clássico La Invención de Morel (1940). No Brasil, o livro saiu pela Expressão e Cultura como A Máquina Fantástica (1974, trad. Vera Neves Pedroso), republicada em 1986 pela Rocco como A Invenção de Morel


Fiz mais acima uma distinção entre imortalidade e imortalização, e esta é essencial na concepção da história. Morel (não farei aqui um resumo do enredo do romance) inventou uma espécie de cinema em 3D ou 4D, que registra e conserva, de forma perfeita, a presença e as ações de pessoas num ambiente. Uma espécie de cinema total, onde as imagens são tridimensionais, e têm uma materialidade concreta que falta, por exemplo, aos hologramas. 
 
E durante uma semana ele traz seus amigos para a ilha onde tem uma mansão (com jardim, piscina, etc.) e todos se divertem, bebem, riem, cantam, dançam, praticam esportes, namoram, desfrutam daquele lazer um pouco tenso e um pouco ruidoso dos ricos que, não precisando ganhar a vida, precisam, o tempo inteiro, inventar pretextos para preencher seus dias imensos, longuíssimos, dias e noites que não acabam mais. 
 
O que Morel descobre não é a imortalidade, que seria o prolongamento indefinido da vida daquelas pessoas. As pessoas morrerão, sim. (Como dizia Millôr Fernandes, “injustiça social mesmo era se uns morressem, e outros não”.)  



 
O que a invenção de Morel lhes proporciona é a imortalização parcial: elas continuarão repetindo para sempre aqueles dias, aquela vida de eterno prazer num eterno presente. Existirão como imagens, símbolos, arquétipos. Daqui a mil anos, se outra civilização descobrir aquela ilha, os amigos de Morel estarão ali, reproduzindo suas vidinhas. Serão talvez os únicos registros remanescentes de quem eram os seres humanos do século 20, que aparência tinham, como se vestiam, o que comiam e bebiam, sobre que assuntos conversavam. 
 
A Invenção de Morel é um dos grandes livros da ficção científica latino-americana. 
 
Digressão: Já vi discussões sobre a eterna e insuportável questão de “pertence ou não pertence ao gênero...” Em primeiro lugar, obra alguma pertence a um gênero; um gênero literário (cinematográfico, etc.) é uma classificação artificial feita para comodidade de quem classifica. E, sendo os tais “gêneros” a mixórdia desencontrada que são, difícil vai ser encontrar uma história que não possa ser classificado em vários "gêneros" diferentes. 



O livro de Bioy Casares mostra a criação de uma máquina capaz de captar e reproduzir trechos da realidade, de forma tridimensional (ou quadri-dimensional, pois se dá ao longo do tempo), e material. É cientificamente improvável? Talvez – tanto quanto máquinas do tempo ou espaçonaves mais velozes do que a luz. 
 
Como disse Jorge Luís Borges, no famoso prefácio que escreveu para este livro: 
 
“Adolfo Bioy Casares, nestas páginas, resolve com felicidade um problema talvez mais difícil. Desdobra uma odisséia de prodígios que não parecem admitir outra chave senão a alucinação ou o símbolo; e a decifra satisfatoriamente mediante um único postulado fantástico, mas não sobrenatural.” 
 
Fim da digressão.
 
O livro teve algumas adaptações cinematográficas, e vi dias atrás a versão que está no YouTube, uma adaptação francesa com legendas em inglês. É um filme para TV, de 1967, dirigido por Claude-Jean Bonnardot, que Bioy Casares afirma ter assistido (sem gostar muito) em Paris, na casa de amigos.



 
Em todo caso, a história (da qual estou revelando apenas uma das muitas faces) mantém a ironia presente no livro de Bioy Casares. Se alguém inventar uma máquina de imortalização, quem serão os beneficiados? Os mais inteligentes, os mais humanistas, os mais indispensáveis à humanidade? Não: provavelmente serão, como em Morel, pessoas ricas e com acesso “às mais avançadas das mais avançadas das tecnologias”. 
 
Serão preservadas para sempre: sua aparência física, suas roupas, o que comem, o que bebem, o que conversam... De certa forma, a invenção de Morel se assemelha à literatura de um Marcel Proust ou de um Henry James, que descreveram com minúcia (e cristalizaram para sempre) a vida cotidiana e os sentimentos banais ou intensos de gente rica. 



 (As imagens são do filme no YouTube.)