segunda-feira, 9 de outubro de 2017

4276) As metáforas agrícolas (9.10.2017)




Em todo tipo de linguagem e comunicação, as formas tendem a degenerar com o tempo. É o efeito da entropia.

As metáforas, por exemplo, degeneram em clichê. Todo clichê da linguagem (literária, jornalística, cotidiana, etc.) já foi uma imagem original e surpreendente. O sucesso a viralizou; o excesso a diluiu.

Imaginem quando alguém disse pela primeira vez: “O incêndio foi grande, mas os bravos soldados do fogo conseguiram apagá-lo!”  Ninguém (suponho) tinha usado isso antes. O editor, impressionado, bateu com o lápis na folha datilografada e disse ao jornalista: “Ih, rapaz, que imagem bonita essa aqui!”  Pronto.

Poucos anos depois o mesmo editor estava amassando uma lauda, jogando na cesta, e dizendo a algum novato perplexo: “Se disser isso de novo eu lhe boto na rua, ora que saco. Se é pra dizer um clichê desses, diga bombeiros e acabou-se.”

O tempo todo utilizamos uma imagem concreta para descrever algum processo ou situação abstrata.  Dizemos, por exemplo: “A história de Os Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño, gira em torno de um grupo de poetas mexicanos de vanguarda”. 

A história, na verdade, não gira em torno de nada. Se é para vê-la em termos de um movimento físico, o mais que podemos dizer é que ela avança. Mas à medida que avança ela volta a mostrar, repetidamente, personagens e episódios já aparecidos antes. E assim existe uma semelhança com um movimento circular, ou em espiral ascendente (movimento helicoidal), algo que avança e retorna ao mesmo tempo.

Quando um historiador do século 22 ler nossas resenhas literárias ficará embasbacado diante do modo como as histórias, em nosso tempo, sempre “giravam em torno” de algo.

No momento em que uma expressão é usada pela primeira vez, pode produzir um pequeno choque de estranheza, que se reequilibra no momento em que o leitor reconheceu a validade da comparação. 

É o caso de expressões tipo “o Ibope está tomando o pulso da opinião pública”.  O leitor, um segundo depois, reconhece que “tomar o pulso” admite o significado extensivo de “verificar as reações, acompanhar o comportamento”. 

O uso da expressão se propaga e ela rapidamente se converte em lugar comum.  Daí em diante a usamos sem enxergar ao pé da letra a imagem que está sendo usada.

O Governo precisa arregaçar as mangas e resolver o problema do ensino básico?  Todos entendem o que estamos dizendo, mesmo que o Governo, como entidade abstrata e coletiva, não tenha mangas para arregaçar.  Arregaçar as mangas significa preparar-se para executar uma tarefa difícil, que demanda esforço. 

Do mesmo modo, se o interlocutor responde que já está na hora, porque há muito tempo as autoridades vêm botando panos quentes nesse problema, a analogia se processa automaticamente.  O que talvez não tenha acontecido quando ouvimos esta expressão pela primeira vez.  Talvez nos tenha custado um segundo de surpresa, e depois o entendimento, um “aaah...” dando sinal de que a comparação é válida.

Um dos usos mais arraigados na nossa fala cotidiana é o das metáforas agrícolas, que são nossa herança de um modo de vida com o qual temos familiaridade há milênios, mesmo que uma familiaridade indireta. 

Está na hora de colher os frutos desse investimento...

Estou em busca das minhas raízes culturais...

Este é um gênero literário cuja seiva já se esgotou há muito tempo...

Não quero entrar na seara alheia e discutir o que não entendo... 

Esse pessoal está semeando a discórdia para colher Poder...

O Parnasianismo foi quando o soneto floresceu mais intensamente em nossa poesia...

Usamos este tipo de linguagem no jornalismo, na política, na conversa informal.  Todos entendem o que estamos querendo dizer; ninguém imagina que estamos tratando de agricultura. 

A figura de linguagem deixou de ser figura em si, tornou-se invisível de encontro à paisagem abstrata do discurso.  É apenas o sentido abstrato que captamos.

Outra categoria rica de clichês é a da linguagem têxtil, pela semelhança (inclusive etimológica) com as características de um texto escrito.

A certa altura do romance, o autor corta o fio da narrativa para fazer uma longa digressão.

A história se desenrola no começo do século 19.

O livro de Fulano de Tal tem um estilo pouco brilhante, mas sua trama é uma das mais bem urdidas que vimos nos últimos tempos.

A telenovela deixou a desejar, porque a narrativa ficou com muitas pontas soltas.

A analogia do texto com fios (fios têxteis, claro) está por toda parte; e denuncia o fato de que texto, têxtil, tecido, todos estes termos têm uma origem comum e sugerem atividades parecidas.    

Comparar sangue e dinheiro é outra tendência tão frequente em nosso discurso que a decodificação é imediata.  Ambos são essenciais à vida, ambos precisam circular...  Dizemos que a economia de tal ou tal país está anêmica, ou que os países do Terceiro Mundo vêm sofrendo há séculos uma hemorragia financeira, ou então que bancos ameaçados de quebra precisam de uma transfusão de dinheiro público.  Diferentes comparações vão se superpondo, e isso nos deixa ainda mais predispostos a aceitar futuras variantes. 

Autores desajeitados ou desatentos costumam usar frases com figuras incompatíveis entre si.  “Precisamos apertar o cinto, porque estamos nadando contra a maré”.

Isto acontece muitas vezes quando o autor, levado pelo entusiasmo, utiliza dois clichês mais ou menos habituais, sem perceber que o segundo vem de uma origem diferente.

O crítico Fulano de Tal aborda o livro com destemor e o disseca sem dó nem piedade.

Existe aí algo que não combina, porque algo que pode ser abordado (um navio, por exemplo) não pode ser dissecado.

O Governo botou seu melhor time em campo disposto a ganhar a votação por nocaute

O exemplo clássico de metáfora confusa ou incompetente, incorporando três elementos que não se encaixam, é a frase atribuída a Henri Monnier (1799-1877):

“O carro do Estado navega sobre um vulcão”.