segunda-feira, 12 de setembro de 2022

4862) Marcelo do Vale, 1950-2022 (12.9.2022)




A segunda-feira me traz a notícia da perda de meu amigo e parceiro Marcelo do Vale, na França. Quando tínhamos entre dezoito e dezenove anos (Marcelo era mais novo que eu exatamente 22 dias) tocamos juntos na banda Os Sebomatos. Fazíamos “cover” dos Beatles em Campina Grande quando os Beatles ainda existiam. Foi um dos meus professores de acordes, harmonias e levadas – e é meu parceiro na obscuramente famosa “Balada do Andarilho Ramón”, uma melodia dele na qual botei essa letra, anos depois.
 
Eu já era fã dos Beatles quando surgiu na cidade a banda apelidada “os Beatles de Campina”. Estranhei o nome a princípio – que diabo é Sebomatos? – mas as meninas do Colégio Estadual (havia um ativo fã-clube, afinal os caras eram de carne e osso) explicaram que os integrantes eram SErgio, BOlívar, MArcelo e TOninho.
 
Ora, eu tinha estudado com Sérgio Pedrosa no curso primário, no Alfredo Dantas, e reconheci que além de ser baterista ele tinha a cara e a exata personalidade de Ringo Starr. E Marcelo eu conhecia de vista: morávamos a cem metros um do outro, no Alto Branco.  Fui assistir algum tempo depois uma sessão de A Hard Day’s Night no Cine Capitólio, quando – novidade das novidades! – antes do filme ele subiram no palco e tocaram três ou quatro músicas dos Beatles, para o inevitável delírio da platéia.
 
Nesse dia, parece que Toninho já havia deixado a banda, e quem preencheu sua vaga, tocando teclado, foi Gabimar Cavalcanti, “Gaby”, o mestre de nós todos. Gaby não ficou na banda, claro; era apenas um profissional dando uma colher-de-chá a três garotos. Depois dele, a guitarra-base ficou nas mãos de Acácio Barbosa, e depois de Acácio fui eu.
 
Falei que fazíamos “cover”. Os mais parecidos eram Sérgio/Ringo e Bolívar/Paul. Eu não parecia com John Lennon, mas usava óculos e era metido a poeta. Marcelo não parecia com George, mas tocava guitarra solo, e tinha barba. Ficava tudo em casa.
 

(Os Sebomatos no Campinense Clube, 1969. Faltou fotografar o baterista...)

 
Na verdade, Marcelo era o verdadeiro Paul MacCartney da banda.  Pensei muito nisso quando vi o documentário de Peter Jackson sobre os Beatles, porque Os Sebomatos eram movidos a um motor chamado Marcelo. Ele ligava para os clubes e as boates, escolhia a roupa da gente, ensinava os acordes, sugeria o repertório. As decisões de grana e de contrato eram tomadas por ele e Bolívar. Eu e Sérgio éramos dois elfos.
 
Muitas vezes, uma hora antes de um show começar, ficava Sérgio na porta dando autógrafo e atendendo as garotas, eu e Bolívar numa mesa lá dentro, tomando cerveja e discutindo literatura (éramos os intelectuais do grupo), e Marcelo sem camisa, em cima do palco, correndo de um lado para outro, emendando fios elétricos, posicionando os amplificadores (o “americano”, o “Phelpão”, etc.), pregando o repertório no chão com fita durex.
 
Toda banda tem um carregador de piano. Ponto final.
 
Fizemos, graça a nosso amigo Telmo, algumas fotos diante do antigo Castelo da Prata (hoje demolido), um casarão abandonado que tinha um clima meio inglês, que fazia a gente se sentir meio Rolling Stone ou The Who.



(Os Sebomatos, 1969: Sérgio em pé, Marcelo, BT e Bolívar)

 
Foi na época em que saiu a tradução brasileira da biografia dos Beatles, por Hunter Davies. Todo mundo comprou, leu, discutiu. O ponto de encontro era a famosa “casa de Son”, de Jakson e Marcos Agra, em frente à Rodoviária velha. Tocamos no Clube Médico Campestre, no Campinense, no Aliança Clube 31, no Clube do Trabalhador... Tocamos nas boates que proliferaram na época: o Xique-Xique, o Enche Pança, o Preto e Branco (a boate do Treze!)... Nunca tocamos no Whiskyzito, a de maior sucesso. Ficamos devendo.
 
Através de amigos pernambucanos, conseguimos fazer seis apresentações na TV Jornal do Commercio, Canal 2, do Recife, no programa “Dimensão Jovem”, comandado por Luís Jansen. Glória total, garotas gritando. E depois da TV, tocávamos nas boates recifenses: Toca do Pagé, Ferro Velho, Cala a Boca... Quando os astronautas da Apollo 11 desceram na Lua, a gente estava tocando numa dessas boates.
 
Em 1970 eu fui morar em Belo Horizonte, a banda se desfez, e Marcelo foi para a França. Estudou teatro, radicou-se em Nancy, casou, teve filhos...
 
Nos reencontramos uma vez por volta de 1980, quando ele veio ao Brasil. Eu morava na Bahia mas estava passando uns dias no Rio de Janeiro, o telefone tocou, e era Marcelo, a quem meus pais tinham repassado o meu contato.
 
– Fala, moral. É Marcelo. – (“Moral” era a forma de tratamento lá em nosso “condado”.) – Estou de passagem pelo Rio, com minha esposa. Volto pra França depois de amanhã.
 
– Oi moral! Que surpresa boa. Vamos nos ver então. Eu estou em Ipanema, no apartamento de Elba.
 
– Que Elba?
 
– Oxente, rapaz! Elba Ramalho, da FACMA, nossa amiga.
 
– Elba tá morando no Rio?
 
– Demente, Elba é a grande revelação da música brasileira. Acabou de sair o segundo disco dela, com uma música minha, e eu vim ver o lançamento.



De repente era como se os mágicos da Mystery Tour tivessem produzido um encantamento onde todo mundo fosse misteriosamente transformado – Elba em cantora de sucesso, eu num cara com uma música gravada, e ele morando na França.
 
Lembro de um amanhecer, nas nossas últimas semanas tocando juntos, depois de uma noite–dançante na boate Xique-Xique de Campina, perto da loja de Olacanti. A boate era um salão grande no primeiro andar. O palco ficava no fundo do salão, num mezzanino bem por cima da cozinha. No fim da noitada (era nossa piada habitual) a bateria cheirava a feijão, as guitarras a churrasco, os cabelos a macarronada.
 
A gente encerrou, guardou os instrumentos, tomou a saideira, sentamos os quatro no batente da calçada e ficamos vendo o dia clarear. Eu dizia: “Vamos desistir... A gente jamais vai tocar no Shea Stadium, sejamos realistas”. Sérgio falava: “Eu tenho essa mesma sensação, moral, é incrível como você capta os pensamentos da gente”. Bolívar: “Bem, eu vou fazer vestibular de Antropologia e depois resolvo”. E Marcelo: “Vocês são uns idiotas. Eu ainda vou morar num castelo na França”. 

E é isso, “Têcão”... cada um de nós vive na medida dos seus sonhos e das suas saudades.
 

(Marcelo, com suas irmãs Patricia e Bernadete)