quarta-feira, 3 de maio de 2023

4938) O Cavaleiro Não-Existente (3.5.2023)




Ítalo Calvino é capaz de juntar num mesmo texto a manipulação pós-moderna dos instrumentos narrativos e a capacidade de empregá-los para contar uma história à moda antiga. Nem todo mundo consegue. Um problema da escritura de vanguarda, a escritura que questiona explicitamente os instrumentos que usa, é que o resultado é quase insignificante. O texto fica sendo só experimentação e questionamento. O leitor acostumado a ler histórias pensa consigo: “Sim, entendi o questionamento. E daí?...”
 
Por outro lado, como dizia Bernard Shaw (se não me engano) sobre artes plásticas: “As pessoas que não gostam da Arte Moderna também não suportam mais a arte à moda antiga.”
 
Eu estou um pouco nessa zona crepuscular, porque há muitos autores de vanguarda que eu admiro, leio, comento, mas não tenho prazer em ler. O texto, mesmo apresentando-se como um romance, conto, etc., é só uma reflexão sobre o Texto. Um experimento necessário, é claro, mas se a literatura inteira fosse daquele jeito eu não leria muitos livros.
 
Calvino faz experiências com as técnicas narrativas, mas consegue contar histórias que são alternadamente divertidas, reflexivas, desconcertantes, humanas, absurdas, reveladoras... Ou seja, cumprem a mesma multiplicidade de funções que cumpriam as histórias escritas nos anos 1800 e 1900.
 
Um bom exemplo disto é a trilogia que estou lendo, Nossos Ancestrais, que inclui os livros O Visconde Partido ao Meio (1952), O Barão nas Árvores (1957) e O Cavaleiro Não-Existente (1959). Farei alguns comentários sobre este último.



 
Li O Cavaleiro Não-Existente numa tradução em inglês (“The Non-Existent Knight”, Picador, trad. Archibald Colquhon), onde percebi que os nomes próprios têm grafia diferente do original (Rambaldo torna-se Raimbaud, Gurdulù vira Gurduloo, etc.).
 
Em primeiro lugar, quando Calvino usa protagonistas do tipo visconde/barão/cavaleiro ele está pedindo emprestados não apenas personagens-símbolos dos velhos romances de cavalaria, mas também os nobres que são a encarnação daquela Europa refinada, aristocrática, guerreira, grandiloquente. E ele faz com esses personagens o mesmo que Cervantes fez com seu Dom Quixote. Uma desconstrução bem-humorada do cavalheirismo, dos códigos de nobreza, da valentia, das obsessões genealógicas. 
 
Depois, as confusões em que os personagens se metem parecem mais reais do que os ideais que defendem. Calvino tem (como Fellini, como Pasolini) a intuição correta e vivida de como as pessoas comuns se comportam em variadas situações. A batalha contra os mouros pode ser uma mera abstração, sem nenhuma autenticidade histórica, como num folheto de cordel ou num desenho animado. Mas os dramas individuais soam verdadeiros. Como já vi um leitor dizer uma vez: “O livro é bom porque quando o personagem tem um problema a gente se aperreia.” 
 
Nestas fábulas cavalarianas, Calvino pega um personagem meio absurdo e tece em torno dele e de suas ações um rosário de histórias menores e de personagens impagáveis. O “cavaleiro não-existente” é Sir Agilulfo, que não passa de uma armadura vazia mas que pensa, fala, age, discute, entra em combate, etc.   Vale como uma radicalização daquele personagem de Machado de Assis (“O Espelho”) que só se via no espelho quando vestia o uniforme militar. 
 
No livro, entretanto, Agilulfo chama-se “Agilulfo Emo Bertrandino dei Guildiverni e degli Altri di Corbentraz e Sura, cavaliere di Selimpia Citeriore e Fez”, ou seja, é um representante legítimo da meritocracia hereditária do mundo feudal e monárquico. “Tem que respeitar!...”
 
Agilulfo é antipatizado no exército de Carlos Magno. Os outros cavaleiros o aceitam porque ele exerce a indispensável e chata função de organizador de logística do exército, supervisionando comidas, dormidas, etc.  É um fanático da organização e da informação. Numa cena hilária, uma viúva bonitona consegue levá-lo para a alcova, pensando tratar-se de um homem como os outros. Agilulfo não quer despir a armadura e revelar-se inexistente, e no mais puro espírito nerd passa a noite ensinando longamente à beldade as técnicas corretas de como acender a lareira, como forrar a cama, etc., e nada acontece. 
 
A história tem momentos que lembram Dom Quixote, outros que lembram Monty Python e o Cálice Sagrado. Sem ser propriamente um romance humorístico, ele provoca sorrisos pela justaposição inesperada entre emoções e ambientes que não combinam entre si, ou entre valores morais e necessidades práticas, ou entre a fantasia afetiva do personagem e o que de fato está acontecendo ao seu redor.




Todos nós achamos hoje em dia que o povo medieval vivia numa espécie de delírio coletivo, acreditando em conceitos invisíveis e não-existentes, morrendo e matando por causa deles. Eles pensariam o mesmo de nós. E por isso a sátira de Calvino tem dois gumes.  
 
O autor brinca com instrumentos literários como a voz narrativa. Há um narrador invisível contando esta história das aventuras do inexistente Agilulfo, do jovem escudeiro Raimbaud, do brutal e desorientado Gurduloo, e outros. O capítulo 1 começa de forma tradicional: 
 
Por baixo dos parapeitos vermelhos das muralhas de Paris, o exército da França estava reunido. Carlos Magno preparava-se para passar em revista os seus paladinos. Eles já estavam à espera há mais de três horas... (trad. BT)
 
É uma típica história contada por um narrador onisciente. Ele descreve os fatos como um Deus que lá do alto vê não apenas os grandes acontecimentos, mas sabe das emoções mais íntimas de cada personagem, e até de coisas que eles próprios não sabem.
 
A narração prossegue assim, bem normal, até que o Capítulo 4 se inicia com uma longa reflexão sobre os conceitos de existir e não-existir, e a certa altura lemos:
 
Eu, que conto esta história, sou a Irmã Teodora, freira da ordem de Santa Columba. Escrevo de um convento, baseando-me em velhos papéis descobertos, ou relatos escutados em nosso parlatório, ou ainda em raros depoimentos de testemunhas. Nós, freiras, temos raras oportunidades de conversar com soldados; portanto, aquilo que eu não sei sou obrigada a imaginar, e digam-me, que outro recurso eu teria? Nem toda esta história está clara para mim. Tenho que implorar indulgência; nós, moças do campo, mesmo de sangue nobre, vivemos vidas reclusas, em castelos e conventos afastados; e a não ser por cerimônias religiosas, tríduos, novenas, jardinagem, plantio, cuidados com a vindima, punições pelo chicote, escravidão, incestos, incêndios, enforcamentos, invasões, saques, estupros e epidemias, somos pessoas com pouca experiência do mundo. (trad. BT)
 
Deste momento em diante, o livro ganha outra dimensão, porque em vez do onisciente Calvino quem está nos contando a história é a desabusada “Irmã Teodora”, que toma diante de nós liberdades narrativas estonteantes. 
 
Um dos mandamentos básicos da Arte da Narrativa é: faça o leitor (espectador, ouvinte, etc.) acreditar nos personagens, interessar-se por eles, preocupar-se com o que lhes acontece. Os livros que permanecem costumam ter essa capacidade. Isto está presente em obras como Em Busca do Tempo Perdido de Proust, O Nome da Rosa de Umberto Eco, Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa... E também em best-sellers formulaicos, como os livros de espionagem de Ian Fleming ou as novelas de amor de Barbara Cartland. As pessoas parecem reais. O que acontece com elas, mirabolante, banal, absurdo, nos interessa.
 
Isto não quer dizer que não haja grandes obras literárias sem estas características. A literatura, no entanto, é um diálogo, ou melhor, uma discussão coletiva entre autores e leitores, onde têm mais chance de marcar presença as obras que (de acordo com a antiga e quase inatingível fórmula) usam uma linguagem interessante para contar coisas interessantes que acontecem com criaturas interessantes.