quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

4187) Os totalmente ricos (7.12.2016)




Segundo o Equality Trust, as 100 famílias mais ricas da Grã-Bretanha aumentaram sua fortuna em cerca de 57 bilhões de libras entre 2010 e 2016, um período em que a renda média do país sofreu uma queda. A Oxfam International afirma que o 1% mais rico da população mundial detém hoje mais riqueza do que os 99% restantes somados.

Pode não parecer, mas a riqueza absoluta é um tema recorrente na ficção científica. Não precisa envolver espaçonaves, alienígenas, robôs, pistolas desintegradoras. Estou falando da FC que especula o formato e a substância das sociedades futuras, partindo do nosso presente e exagerando alguns aspectos.

Riqueza é um deles. Para quem gosta de fazer FC sociológica, é interessante investigar, ficcionalmente, os limites do poder financeiro.

Alguém dirá que isso já é feito pelos romances mainstream tipo Sidney Sheldon ou Danielle Steel, a respeito de executivos milionários com suas esposas neuróticas entupidas de barbitúricos, suas amantes longilíneas e vorazes, suas tenebrosas transações em Wall Street, seu consumo conspícuo de bugigangas kitsch que custam os olhos da cara, suas férias em Aruba ou nas Bahamas.

A FC, no entanto, explora a ligação entre riqueza fabulosa + absoluta impunidade moral + alta tecnologia a serviço de quem pode investir pessoalmente nela algumas dezenazinhas, algumas centenazinhas de milhões.

Em “A Carícia” (“The Caress”, 1990) de Greg Egan (que incluí em Detetives do Sobrenatural, Casa da Palavra, 2014), um milionário recorre à engenharia genética para produzir seres híbridos e com eles reconstituir, usando criaturas vivas de carne e osso, uma pintura fantástica pela qual tem obsessão. Só isso. Ele quer ver o quadro “de verdade”; depois que vê, vai fazer alguma outra coisa.

Em “Death Do Us Part” (1997), Robert Silverberg descreve a vida de bilionários do futuro, capazes de prolongar indefinidamente a vida e a juventude. Ele começa o conto relatando a lua de mel dos protagonistas:

“Era o primeiro casamento dela, e o sétimo dele. Ela tinha 32 anos, e ele 363; aquela antiga relação entre a primavera e o outono da vida.  Passaram a lua-de-mel em Veneza, em Nairobi, na Cúpula do Prazer da Malásia, e depois num daqueles sofisticados ‘resorts’ L-5: uma reluzente esfera transparente com sol artificial num ciclo de 24 horas e cachoeiras que se despejavam como cascatas de diamantes.  E depois partiram para a bela casa aérea dele, suspensa em cabos retesados mil metros acima do Pacífico, para começarem ali a parte cotidiana de sua vida em comum”.

Em “Neve” (“Snow”, 1985), de John Crowley (que incluí em Contos Fantásticos de Amor e Sexo, Ímã Editorial, 2011), as pessoas ricas gravam suas vidas por completo através de uma “vespa”, um mini-drone com câmera que as acompanha por toda parte, para que nenhum dos preciosos momentos de suas vidas se perca para a posteridade.

No romance Holy Fire (1996) Bruce Sterling descreve minuciosamente como a ciência do futuro-próximo pode (a um custo financeiro imenso, claro) reconstruir uma pessoa idosa, rejuvenescendo-a – e o mundo se torna uma gerontocracia governada por indivíduos ricos, centenários, com aparência eternamente jovem.

O conto “The Totally Rich” do inglês John Brunner (em Worlds of Tomorrow, 1963; publicado em livro em Out of My Mind, New York, Ballantine, 1967) conta uma história parecida – a de uma mulher que tenta manter-se eternamente jovem e ao mesmo tempo quer ressuscitar o namorado que já morreu. Um eco do clássico Ela, a Feiticeira (“She”, 1887) de H. Rider Haggard.

Mais interessante do que a história em si, que é bem escrita mas sem grandes novidades, é a reflexão inicial de John Brunner sobre a vida dos superbilionários. (É a parte profética do conto, porque os “totalmente ricos” de hoje possuem fortunas que 50 anos atrás eram inconcebíveis mesmo para autores de FC.)

Diz ele:

“Eles são os totalmente ricos. Você nunca ouviu falar neles porque eles são as únicas pessoas no mundo ricas o bastante para poder comprar o que desejam: uma vida totalmente privada. (...) Quantos deles existem, eu não sei. Tentei calcular o total somando o PIB  de todos os países da Terra e dividindo pela quantia necessária para comprar o governo de uma potência industrial. Não preciso dizer que você não pode ter privacidade total se não for capaz de comprar pelo menos dois governos. Acho que deve haver uma centena dessas pessoas. Já conheci uma delas, e provavelmente outra. (...)

“Eles não estão no mapa. Entende isso? Literalmente, qualquer lugar onde eles escolham viver torna-se um espaço em branco nos atlas. Não estão nas listagens do Censo, nem no Quem é Quem, nem no Pares do Reino Britânico de Burke. Não aparecem nos registros de imposto de renda, e o correio não tem seu endereço. Pense em todos os lugares onde o seu nome aparece: registros escolares amarelecidos, arquivos de hospitais, notas fiscais de lojas, documentos assinados. Em nenhum desses lugares o nome deles está visível.

“Eles não são governantes absolutistas. Na verdade, não governam coisa alguma a não ser o que lhes diz respeito diretamente. Mas eles se assemelham àquele Califa de Bagdá que encomendou a um escultor “a fonte mais bela do mundo”. Quando ficou pronta (e era bela de verdade) ele perguntou ao escultor se havia algum artista capaz de superá-la em beleza. O escultor afirmou que não. O Califa disse: Paguem a ele o que foi combinado, e arranquem os seus olhos”

Estes (dizia John Brunner, já nos idos de 1963) são os Totalmente Ricos.