domingo, 30 de julho de 2023

4967) A velhice: uma pequena morte (30.7.2023)



 
Um dos livros marcantes da new wave da ficção científica norte-americana, durante os anos 1960-70, foi Dying Inside (1972) de Robert Silverberg. É a história de um telepata, David Selig, um cara que desde a infância é capaz de ler os pensamentos das pessoas. 

É um livro crepuscular e melancólico, e talvez por isto não tenha sido um sucesso de vendas (apesar da ótima tradução de Ivanir Calado) quando o incluí na minha efêmera Série Rama, que editei pela Editora 34, sob o título Uma Pequena Morte (1993).
 
Selig é um desajustado, um arredio. Um protagonista que de cara explode toda a expectativa do leitor de FC habituado a lidar com heróis cuja missão é salvar o Universo. (Ou, em casos mais modestos, salvar a Humanidade.) Ele não salva nem a si próprio. Seu relacionamento com outras pessoas é problemático, porque ele é capaz de sintonizar o pensamento delas e tem acesso a esse desvão proibido – “o que Fulano ou Sicrano realmente pensam e sentem ao meu respeito”. 
 
A infância de Selig não foi fácil, até ele descobrir por conta própria (porque ninguém entendia as suas perguntas titubeantes) que as outras pessoas não eram capazes de “escutar” o que ele escutava.  Nunca foi bom aluno, “colava” nas provas, estudava o menos possível, mas lia muito.  
 
Adulto, ganha a vida fazendo bicos, como por exemplo redigir dissertações e trabalhos para universitários preguiçosos. A indústria dos “trabalhos fake” não é coisa recente. Selig tem um certo jeito para escrever, e as informações estão à solta, por aí. As mentes humanas são uma Internet que ele acessa sem dificuldade.  




Dying Inside é considerado um clássico, e é visto por muitos críticos como uma metáfora da velhice – porque durante a narrativa tomamos conhecimento de que agora, por volta dos quarenta e tantos anos, Selig começa a perder seus poderes telepáticos. Antes, acessava os pensamentos de qualquer pessoa, mesmo um transeunte anônimo na rua, com a facilidade de quem sintoniza uma estação de rádio. Agora, não, Há momentos (cada vez mais frequentes) em que ele tenta, tenta, e não consegue captar. 
 
Silverberg é um prodígio na FC. Não é exagero dizer que ele é o autor mais versátil de sua geração. Do ponto de vista estilístico, é um sujeito camaleônico, capaz de saltar da aventura mais desenfreada para a FC-cabeça mais erudita. Tão prolífico quanto Isaac Asimov, tão narrativamente eficaz quanto Robert Heinlein, tão inovador quanto Harlan Ellison. 
 
Ele tem um excelente ensaio autobiográfico, “Sounding Brass, Tinkling Cymbal”, incluído em Hell’s Cartographers (ed. Brian Aldiss & Harry Harrison, Harper & Row, 1975). Silverberg nasceu com o dom da escrita fluente, elegante (muitíssimo mais que a escrita igualmente fluente de Asimov). Produzindo FC, fantasia, livros didáticos e outros tipos de escrita-por-encomenda, ele confessa que aos 30 anos já estava rico, e pensando em se aposentar.
 
Eu escrevia com espantosa rapidez, vendendo quinze histórias em junho de 1956, vinte no mês seguinte, catorze (incluindo uma serialização em três partes) no outro mês. (trad. BT)
 
Quando contava apenas 21 anos, ele já tinha mais de um milhão de palavras publicadas (entre contos e romances). Aos 30 anos, já era um homem rico, e comprou a mansão onde tinha morado o prefeito de Nova York, Fiorello La Guardia. 
 
Ele conta, então, que por volta de 1968 acordou durante a madrugada, numa noite de inverno, vendo uma luminosidade esquisita pela porta do quarto. Pensou que um ladrão tinha entrado na casa. Não era ladrão, era um incêndio. A casa ficou destruída de cima a baixo – literalmente; ele diz que o fogo começou no meio de documentos guardados no sótão. 
 
Ao amanhecer, tudo chegara ao fim. O teto não existia mais, o sótão fora destruído, meu escritório no terceiro andar era uma ruína, e os andares inferiores da casa, embora não queimados, estavam inundados de água, que rapidamente congelava.
 
E ele se tornou um escritor igual aos outros.
 
Até 1967, eu escrevia meus textos, ambiciosamente, uma só vez, produzindo vinte ou trinta páginas de texto final todos os dias, e fazendo apenas pequenas correções a mão. Quando recomecei a trabalhar após o incêndio, tentei prosseguir assim, mas tudo avançava devagar, eu me via parando o tempo todo em busca de palavras, atrapalhando a narrativa; depois de meia lauda tinha que parar tudo e começar de novo, fazendo pausas para recuperar as forças. (...)  Eu tinha me tornado um simples mortal como os demais, e tinha que produzir dois ou três rascunhos de cada página, às vezes uma dezena, antes de poder datilografar a versão final. 
 
Como qualquer bom livro, Dying Inside pode ser uma metáfora da velhice e da perda de memória, e pode ser também uma ressonância autobiográfica do próprio autor. Pars sorte nossa, essa reduzida-de-marcha transformou Silverberg num autor literariamente mais refinado, mais maduro, mais pensado. Seus melhores livros foram escritos desta fase em diante. Os meus preferidos são The Masks of Time (1968), The Man in the Maze (1969), o próprio Dying Inside (1972), The Second Trip (1972), The Stochastic Man (1975), e algumas coletâneas saídas no Brasil: Rumo aos Mundos do Futuro (Edameris, 1967), Outros Tempos, Outros Mundos (Círculo do Livro, 1972).






Se tomarmos Uma Pequena Morte como uma reflexão sobre a vida do autor, e não simplesmente uma metáfora da velhice, é possível pensar que rapidez e quantidade podem ser qualidades positivas para quem escreve, mas não são as únicas. 

Após o trauma do incêndio, ele passou um período difícil. Seu amigo Frederik Pohl lembra, em The Way The Future Was (Del Rey, 1978, cap. 11, trad. BT):
 
Durante algum tempo chegou a parecer que a vida do casal Silverberg e a nossa estava intimamente ligada. Carol e eu sofremos uma morte na família, e depois um incêndio que danificou seriamente nossa casa, e quase a destruiu por completo; pouco depois, aconteceu o mesmo a eles. Bob me escreveu uma carta de reclamação, usando aquele tipo especial de ironia que disfarça um sofrimento real, dizendo que não estava gostando dessa história de recapitular as tragédias da minha vida, e pedindo-me o favor de avisá-lo o que viria em seguida, para que ele pudesse se preparar. 
 
Na juventude, é natural que a pessoa queira ganhar prêmios, bater recordes, alcançar limites. Há um certo excesso de energia que precisa ser queimada, precisa ser posta a bom uso. Passada esta fase, é preciso entender quais são as vantagens da fase seguinte, e mudar de estratégia. Aos 60 anos um escritor pode não ser tão prolífico quanto era aos 30, mas se souber reorganizar sua vida e otimizar seus recursos pode produzir menor quantidade com maior qualidade.  
 
No mais, é como dizia Ivanildo Vila Nova: “Cantador de viola, jogador de futebol e rapariga tem até os 40 anos para ficar rico, porque depois não tem mais chance.”  Quem escreve tem.  



(Robert Silverberg)