domingo, 20 de julho de 2014

3556) Questões de tradução (20.7.2014)



Por que traduzir um livro já traduzido? Os leigos se dividem. Uns dizem que é porque a primeira edição tinha erros, e que a segunda deverá ser igual à primeira, menos esses erros. Outros, que a tradução existente é muito antiga e é preciso trazer aquela obra para “a linguagem moderna de hoje”.  

Tudo isso é possível, mas do ponto de vista meramente literário uma obra qualquer propõe um jogo recriativo com diferentes graus de dificuldade para cada idioma e cada tradutor. Como ficaria “Meu Tio, o Iauaretê” de Guimarães Rosa em russo, ou Exercícios de estilo de Queneau em mandarim?

Vou citar um exemplo simples, que um amigo me propôs recentemente. “I was devastated with the news of my grandmother’s death”Um tradutor pode dizer: “Eu fiquei devastado com a notícia da morte da minha avó.”  Outro diria: “Eu fiquei arrasado com a notícia da morte de minha avó.”  

Qual dos dois está mais certo?  Em termos literais, ambos estão igualmente certos, têm sentido equivalente, mas o verbo “arrasar” e o adjetivo “arrasado” se tornaram muito mais frequentes na nossa linguagem coloquial. “Fiquei arrasado”, portanto.

O verbo devastar não aparece muito em nossa linguagem afetiva, sobre assuntos pessoais. É quase um verbo técnico: “Um tornado devastou na tarde de ontem uma região de Illinois...”  Em português de agora, “fiquei devastado” tem intenção metafórica bem clara, mas não corresponde a um modo de falar familiar e espontâneo. Se a intenção do autor é dizer uma frase que não chame a atenção, melhor dizer “arrasado”. Nada impede que quarenta anos atrás devastar e arrasar fossem igualmente comuns, ou que voltem a sê-lo daqui a mais quarenta.

O tom das palavras muda, o seu peso, a dramaticidade da idéia que se quer passar. E os inventores de expressões (tanto na literatura quanto na fala das ruas) vão procurando formas mais inesperadas, mas plausíveis, de dizer a mesma coisa. 

"Eu virei um hindemburg quando minha avó morreu." 

"A quebra da minha firma ano passado foi um naufrágio titânico." 

"Rapaz, o resultado do jogo de ontem me obliterou." 

Expressões assim chamam a atenção na primeira vez que são usadas; com o tempo podem se tornar tão neutras quanto “fiquei arrasado”.

É possível que algum tradutor use devastado por outras razões.  A história pode estar se passando em 1920.  Talvez em inglês o sentido da palavra tenha se mantido mais ou menos uniforme; mas como “arrasado” ganhou hoje uma roupa de coloquialidade, se o romance se passa muito tempo atrás, dizer “fiquei devastado” pode ficar um pouco “de época”, evocar indiretamente uma maneira mais floreada de falar, ao invés de um coloquialismo datado de hoje.