sexta-feira, 4 de outubro de 2019

4509) A Hollywood de Tarantino (4.10.2019)




O conceito de dublê (“stuntman”) está no cerne do filme Era Uma Vez em Hollywood (2019) de Quentin Tarantino. Seus protagonistas são um par de atores jovens mas já meio decadentes, ou melhor, um é ator, e o outro é dublê do primeiro. É o cara que substitui o outro nas filmagens de risco, para evitar que ele se machuque.

E todo o argumento do filme acaba propondo uma reprodução do conceito: uma família, numa situação de perigo, serve de dublê para outra. Leva as porradas que eram destinadas à outra, mas evita que a outra seja massacrada.

Algum comentarista por aí comparou a “química” da dupla Brad Pitt / Leonardo DiCaprio com a da dupla Robert Redford / Paul Newman, o que faz sentido. Todos eles são atores que conseguem equilibrar a masculinidade ostensiva com um senso de humor auto-irônico que a relativiza. O jogo de cena dentro de cada dupla ganha leveza porque um não está querendo o tempo inteiro provar que é mais masculinóide do que o outro. (Me refiro aos atores, não aos personagens – em filmes de “heróis”, por exemplo, essa competição vira uma doença.)

As pequenas tensões e as trapalhadas da dupla carregam mais de dois terços deste filme que é o menos violento que vi de Tarantino. É um Tarantino com água-de-coco, comparado às doses caubói dos demais filmes.

Nele estão presentes algumas marcas registradas do diretor, como o “Mexican stand-off” (pessoas apontando armas umas para as outras, a ponto de disparar); as longas sequências de suspense espremidas gota a gota (Cliff investigando o rancho onde a “Família Manson” está alojada); a irrupção súbita de um fato real numa história fictícia ou de um ator famoso numa ponta momentânea. Mas tudo isso num grau de volume a menos.

É um Tarantino soft, o que não chega a ser uma má coisa, porque o diretor pecou muitas vezes pelo exagero e pela auto-indulgência. Once Upon a Time in Hollywood não é um dos seus melhores filmes, mas é um dos mais assistíveis por uma platéia aleatória.

Nele, o diretor avança numa direção inesperada em sua obra, começada com Bastardos Inglórios (2009): a da História Alternativa, em que um fato histórico de grande repercussão ocorre de maneira diferente à da vida real, produzindo uma guinada brusca.

Embora este seja um dos subgêneros clássicos da Ficção Científica, não é esta a ótica empregada por Tarantino, cujas simpatias são todas na direção de outros gêneros: o filme policial, o filme de guerra, o filme de faroeste.

A FC usa esses pontos de inflexão para explorar “o que poderia ter acontecido dali em diante”. As divergências com a História costumam aparecer desde o começo, como premissas, situações dadas.

Em Tarantino, é o contrário: o massacre dos nazistas e o salvamento da família Tate são usados no fim do filme, como clímaxes emocionalmente satisfatórios, catárticos. Uma vingança infantil contra uma realidade que sabemos não ser aquela.

Alguns críticos andaram reclamando que o retrato da Família Manson feito por Tarantino é um retrato diluído, que não revela seus lado mais tenebroso e psicopata. (Mas tudo é diluído neste filme; tudo está um pouco “diet”.)  Não importa. Aquela turba morônica de mocinhas lindas e maltrapilhas é um retrato arrepiante do lado podre do hippismo, o seu lado parasítico, mais parecido com as cracolândias de hoje do que com as comunidades herbívoras e igualitárias que o movimento idealizou.

Depois de mais de meia hora acompanhando os quiproquós rigorosamente feijão-com-arroz da dupla Pitt/DiCaprio, ter um vislumbre (na ida ao rancho) do que é o cotidiano da Família Manson produz um arrepio meio terrorífico, como se tivesse começado ali uma invasão das Crianças do Milharal de Stephen King, ou daqueles caipiras homicidas da primeira temporada de True Detective.

São dois mundos em choque: o mundo fashion das estrelas de cinema como Polanski e Sharon Tate e a marginália delirante e drogadicta simbolizada por Charles Manson e seus zumbis. As duas Hollywoods estão em rota de colisão, e sabemos qual foi o resultado na vida real.

E mais uma vez (agora ficcionalmente) os dublês dão sangue e suor para salvar os artistas de verdade, que são frágeis e indefesos. O Dublê propriamente dito é Cliff Booth, o personagem de Brad Pitt: veterano de guerra, violento, suspeito de assassinar a esposa, e tem como companheira Brandy, uma pitbull de guarda. É ele quem encara a gang de assassinos amadores, com a ajuda de seu amigo e patrão, Rick Dalton.

O uso que Tarantino faz do Dublê neste filme evoca um arquétipo que está presente no cinema e na cultura norte-americana nas últimas décadas, com força cada vez maior. Eu o chamo O Soldado Traído. É o cara que foi treinado para matar, recebeu uma arma e um uniforme, e depois foi jogado aos lobos com a finalidade de defender a Democracia, a Liberdade, o Sonho Americano, etc. e tal.

Em algum momento ao longo do percurso, esse Soldado se sentiu traído por aqueles que o mandaram para matar e ser morto. Ele pode ser o cara que voltou da guerra como um Veterano destroçado física e emocionalmente. Pode ser o cara que descobriu que a Democracia que supunha estar defendendo é um engodo, e ele estava apenas lutando pelos interesses de megacorporações predatórias ou de governos corruptos.

É um arquétipo que se vê por toda parte: no cinema, nas graphic novels, nos videogames.

Esse Soldado se vê como uma vítima, e frequentemente se volta contra a sociedade que jurou defender, porque vê essa sociedade como uma força maligna, que o usou quando precisava dele, e depois o jogou no lixo. Ele despreza essas pessoas que têm horror ao sangue, que são incapazes de uma violência, mas que precisam que a violência seja praticada – e a encomendam a gente como ele, convencendo-o de que "é um serviço sujo, mas alguém tem que fazê-lo".

O dublê de Tarantino é isso: um sujeito na dele, pronto para a briga, que nutre um certo desprezo irônico pelas pessoas por quem se sacrifica, mas que não tem escolha, porque foi treinado apenas para ser um pitbull, e é só isso que sabe fazer.