domingo, 31 de janeiro de 2016

4038) Henry Miller (31.1.2016)





O autor de Trópico de Câncer entrou na minha vida, não como alta literatura, mas como alta sacanagem. Entrou mediante aquelas últimas carteiras da classe, onde o professor se tornava um débil holograma ao fundo da sala e a gente traficava as proibições da vez: revista dinamarquesa de nudismo terapêutico; baralho de caricaturas, cada qual mais escrachada; catecismos de Carlos Zéfiro... Um dia, alguém tinha trazido um exemplar de Sexus, já bem manuseado, que ele nos estendeu confiante e esclareceu logo: “Capítulo 16”.



O arrebatamento verbal de Miller é tamanho, contudo, que eu logo percebi qual era a dele. A sacanagem sorridente e desencanada era pouco perto de suas reflexões sobre vida, saúde, moralidade, arte, dinheiro, sucesso.  Miller não era um grande sátiro, era um grande moralista (no sentido de ter uma visão bem particular sobre valores e ser fidelíssimo a ela) que gostava de trepação.



Todo mundo sabe que Lawrence Durrell, do Quarteto de Alexandria, foi grande amigo e incentivador de Miller. Depois vi George Orwell (Inside the Whale) dizer que Miller era uma voz sadia num momento sombrio da Europa. Alguém que desistia de tomar as rédeas do mundo, como a literatura engajada. Alguém que aceitava a catástrofe, mas como era em câmera lenta dava tempo para aproveitar algum lado bom.



Quem também o elogia é J. G. Ballard: “Miller foi o primeiro escritor proletário a criar uma literatura pornográfica baseada na linguagem e no comportamento sexual da classe trabalhadora. (...)  [Ele é] um Proust da classe operária, noção que forneceu a base de toda a sua carreira.” Ballard chama Miller de proletário do ponto de vista de uma Inglaterra de classes bem nítidas. Miller era rapaz urbano, ex-funcionário dos Correios (como depois Bukowski, tão revoltado quanto ele). Não é um intelectual refinado, é um cara de vistas largas, enorme apetite de experiências, de idéias, enorme fluência para se exprimir. Talvez tenha publicado em excesso, mas, se o problema é esse, melhor assim.


Uma vez vi Ariano Suassuna elogiar Lawrence Durrell, e comentei que ele raramente elogiava autores ingleses. Ele observou que citava justamente Durrell, “o mais mediterrâneo e ensolarado dos ingleses”, e tinha razão. Tempos depois, perguntei se ele gostava de Henry Miller. Ele disse que leu Miller por influência de seu amigo e mestre Hermilo Borba Filho (que inclusive escreveu um livro sobre Miller), mas que acabou gostando mais dos contos eróticos de Anaïs Nin, que conheceu no mesmo “pacote”. Miller não é um autor fácil, mas ninguém pode negar que a medula de sua visão do mundo era basicamente saudável, ensolarada, cheia de vida.





sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

4037) Piadas científicas (30.1.2016)



A professora adverte um aluno: “Joãozinho, a sua redação ‘Meu cachorro’ está igual à do seu irmão mais velho.” O pirralho: “Claro, professora, o cachorro é o mesmo.”  (A lógica subjacente à piada é a mesma lógica dos economistas que aplicam uma fórmula e depois dizem que “o país é o mesmo”.)

Lucy, numa tirinha de “Peanuts”: “Só em problemas de matemática você pode comprar 60 melões e ninguém perguntar o que diabo há de errado com você.” (Provavelmente para Lucy a mentalidade humana, social, é mais vívida do que a mentalidade abstrata e operativa. Para ela tudo tem que ter significado humano. Se lesse livros policiais não leria S. S. Van Dine, leria Raymond Chandler.)

Dois irmãos preguiçosos estão deitados em redes, na sala da fazenda. Um deles pergunta: “Será que está chovendo?”. O outro diz: “Assobia chamando o cachorro, e vê se ele está molhado.” (A física subatômica faz isso. Na impossibilidade de presenciar certos eventos físicos, eles provocam os eventos, inserem neles um tipo de partícula que já conhecem, e depois examinam o que aconteceu com ela.)

Dois capiaus estão ao entardecer, mastigando talo de grama à beira de uma lagoa, quando um enorme dragão verde-azulado surge no ar e voa rumo sudoeste. Os dois ficam em silêncio, cada um pega outro talo de grama. Outro dragão surge, amarelo-alaranjado, cuspindo fogo, e voa como uma flecha rumo ao sudoeste. Um capiau diz: “Parece que o nim deles é pralá.” (O cientista pode estar interessado apenas na reiteração de tais ou tais fenômenos, mesmo que não tenha uma explicação sensata para eles.)

Essas piadas lembradas meio aleatoriamente são de fato científicas? Não foram pensadas assim, é claro. Toda piada é um pulo do gato, uma queda de asa, uma virada de mesa, uma dobrada de esquina a trezentos por hora, com segurança total. Ela é pensada em função da puxada-de-tapete final, a chamada punch line, que não tem necessariamente que provocar gargalhadas. Às vezes basta um “Ha!” de surpresa, mas dum tiro só, acusando o golpe. Piadas assim são exemplos de raciocínios abstratos dentro de uma situação fácil de entender, com uma lógica que parece absoluta até a virada final.

Um cara abriu uma barbearia no centro da cidade e botou; “A melhor barbearia do país.”  Um mês depois outro sujeito abriu outra, na mesma calçada, e anunciou: “A melhor barbearia do mundo”.  Com mais algumas semanas, um terceiro, metros adiante, inaugurou a sua, proclamando: “A melhor barbearia da rua”. (Na verdade, filosoficamente acho que ele criou um impasse, um loop moebius que volta sempre ao ponto de partida. Mas teatralmente quem ganhou o round foi ele.)




quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

4036) "O original de Laura" (29.1.2016)



Antes de morrer num hospital, em 1977, Vladimir Nabokov vinha trabalhando num romance, que acabou ficando incompleto. Ele afirmara já ter a história pronta na cabeça, mas seu método era meticuloso, punctilioso. Costumava escrever à mão, em pequenas fichas ou cartões, pautados, com lápis de grafite. Aqui e ali, ele borra linhas inteiras com o lápis, ou apaga com borracha palavras específicas, e sobre a mancha ele desenha outra, com letra miúda, clara, decifrabilíssima. Escreve lá no seu impecável inglês, mas como manuscreve com frequência as letras soltas, mesmo quando cursivas, isso dá a um texto-de-próprio-punho seu uma aparência meio cirílica.

Digo isso porque o que ficou do romance O original de Laura foram mais de 100 desses cartões, com fragmentos de várias cenas, diálogos, monólogo interior de um personagem, etc. Uma coisa ainda rarefeita demais para poder ser chamada de romance, mas como é de um conhecido enigmista, os demais enigmistas arregaçaram as mangas. Nabokov tinha pedido que queimassem os cartões, se o livro ficasse inacabado. A viúva não os queimou enquanto foi viva. O filho único e herdeiro, Dmitri Nabokov, publicou. Perguntaram-lhe com que autorização, e ele disse: “Sonhei com meu pai. Ele me disse que tudo bem.” 

A edição brasileira (Objetiva/Alfaguara, 2009, trad. José Rubens Siqueira) traz na página par, à esquerda, a reprodução de cada um dos cartões, e na página ímpar à direita a tradução do que está escrito nele.  Com fidelidade às peculiaridades de grafia, espaços em branco, disposição espacial das frases, etc.

Raymond Chandler cortava folhas tipo A4 horizontalmente, o que lhe dava dois retângulos de papel que, na máquina de escrever, viravam sua unidade básica. Cada segmento desses tinha sua própria unidade, mesmo que parte de uma cena maior (de ação, de diálogo, de narração, etc.).  Mas Chandler era uma metralhadora na máquina, ao passo que Nabokov parece ser aquele cara que anda com umas fichas e um toco de lápis com borracha no bolso do paletó. Os tempos mortos da vida já são muitos. Bora trabalhar.

Ah, sim, o livro é bom? Bem, tem muitos detalhes bem trabalhados, as frases surpreendentes, os adjetivos mordazes. Isso tudo pode estar presente numa obra mesmo que não haja história nenhuma, ou somente uma nesga dela, como é o caso. Mas não deviam ter queimado?  Não. Queimar é uma pena excessiva. Se o livro for ruim, publicar já é punição suficiente. O livro tem uma interessante subtrama, meio Colin Wilson, dos exercícios de um sujeito para criar uma imagem mental de si mesmo, imagem tão real que ele possa, obliterando-a na mente, obliterar-se no mundo.



quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

4035) "O Soneto de Arvers" (28.1.2016)




Meu pai tinha esse livro, uma compilação de Mello Nóbrega, quando eu estava na minha fase áurea de memorização de sonetos, entre os dez e os quinze anos. Não só sabia a diferença entre decassílabo e alexandrino como podia criar exemplos passáveis de cada um. Nas primeiras vezes em que folheei a obra ela me fascinou porque os sonetos eram todos diferentes e todos iguais. Um dia parei para ler a sério e percebi que o soneto era um só, escrito pelo poeta francês Félix Arvers, e o que havia ali eram algumas boas dezenas de traduções portuguesas e brasileiras. Além de uma lista de paráfrases, paródias, possíveis citações, etc.  São no total 130, ao que parece.

O soneto de Arvers é merecidamente famoso como soneto de salão: “Tenho na alma um segredo, e um mistério na vida...”  O poeta conta sua paixão por uma mulher, à revelia dela, e diz que um dia ela própria, a inspiradora desses versos, irá lê-los num livro, e pensará consigo: “Quem será essa mulher?”, e não compreenderá. É um bom soneto, que entre nós poderia ser de um Bilac ou de um Guimarães Passos.

Uma visão radical da tradução literária pode nos sussurrar que um soneto em francês não é mais do que um conjunto de instruções, levemente esboçadas, para alguém escrever um soneto semelhante em português. Foi o que fizeram nossos tradutores de Félix Arvers. Uns mexiam na estrutura das rimas, outros a desobedeciam por inteiro, outros eram mais realistas que o rei. Trechos longos eram revirados de dentro pra fora para fazer tempos verbais coincidirem. Mas os elementos estavam todos ali. Havia uma coisa elástica, inquebrável, complexa, era uma idéia que vinha expressa de cem maneiras diferentes e parecidas. E essencialmente iguais, em termos do tipo de impacto a que um soneto se propõe. O soneto é como o conto para Cortázar: tem que vencer por nocaute. Ainda mais porque o soneto tem tamanho fixo, previsível, todo mundo sabe quando vai terminar.

Na mesma época eu tinha lido sobre a Pedra de Roseta, na História do Mundo Para as Crianças de Monteiro Lobato. O livro sobre o soneto de Félix Arvers era uma pedra-de-roseta poética. Quando eu não sabia uma palavra do original francês, era só procurar seus correspondentes topológicos nas traduções, e eu tinha em mãos um dicionário poético. E quando eu abria o livro, minha leitura não estancava na folha aberta à minha frente, ela penetrava como um laser (que não existia ainda) nas páginas amontoadas embaixo e via a estrutura da historieta de Arvers coleando, bruxuleando, saltando de página em página e se recompondo, inteira ou cheia de ruídos, em cada nova versão.




terça-feira, 26 de janeiro de 2016

4034) Os namorados de Mamãe (27.1.2016)



Quando é domingo de sol eu sempre tenho uma certa esperança de que ao se abrir a porta do quarto dela seja Alvinho, que sempre acorda de bom humor e geralmente me chama para jogar bola na praia durante uma hora, meia hora, enquanto Mamãe se levanta e faz todo aquele ritual dela, de tomar um café vagaroso sem registrar a presença de ninguém, folheando o jornal, lendo como se aquilo lhe custasse o maior esforço, dizendo: “Hã. Hum.” Alvinho é gente fina, mas até agora só veio nos sábados à noite.

Quando não é ele, é Dr. Rui. Esse é mais idoso, mais devagarzão, sempre levanta com Mamãe, preparam tudo juntos, trocando instruções, receitas, o tempo da torrada, o modo de tampar a frigideira para deixar o ovo bem estrelado, coisa e tal. Parecem um casal casado. Ele sempre me cumprimenta, lembra do meu nome, pergunta como estou indo nos estudos, eu sempre digo a mesma coisa, nem lembro o que.

Nos últimos meses tem aparecido um tal de Antonino, que eu não gosto muito. Eu estudo à tarde e nem vejo mamãe sair pro trabalho, mas às vezes levanto e ele está na sala, todo instalado, ouvindo música, mexendo nas revistas, comendo, bebendo, como se estivesse na casa dele. E quando conversamos os três, em geral durante o almoço, ele fica dizendo umas coisas sem a menor graça e batendo com o cotovelo em mim, como se dissesse: “Bora, rapaz, dá uma risada, afinal nós somos ou não somos dois malandrões? Ra ra ra.”

Pra ser desse jeito eu prefiro que seja como Seu Elias, que é tímido que dá pena, fica meio longe de mim com uma expressão de culpa, nunca me deu um bom dia, nunca me olhou nos olhos, e os únicos contatos que a gente mantém são quando estamos na mesa e um estende a mão e o outro se apressa e coloca ao alcance aquilo que está sendo procurado: o açúcar, a bolacha, o leite; e esses pequenos gestos quase secretos acabam sendo uma espécie de fumar-o-cachimbo-da-paz.

Mamãe se faz de doida mas presta atenção em tudo. 

Teve o caso de Dorival, que passou semanas vindo e deixou para sempre de vir depois que Mamãe o flagrou tentando me fazer botar um cigarro na boca. 

Teve o problema com aquele malucão que cismou que eu tinha tirado um dinheiro da carteira dele, Mamãe teve que fazer um verdadeiro histórico do que eles tinham gasto durante a noite, táxi, conta num bar, no outro, cigarro, dogão na calçada, táxi de novo, ele acabou me pedindo desculpas, mas nunca mais apareceu. 

Ou aquele louro de óculos, nem lembro o nome, que falou uma vez: “E esse moleque, precisa ficar aqui, vigiando a gente? Vai lá pra fora, vai, seu merdinha.”  Mamãe soltou da boca o canudinho do refrigerante e disse: “Pra fora vai você.  Filho da puta.”





segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

4033) O editor de FC (26.1.2016)




Faleceu dias atrás nos EUA, o editor e crítico David G. Hartwell, aos 74 anos, aparentemente de uma queda acidental em sua casa. Hartwell foi um desses editores que começam bastante jovens, têm a sorte de ser contemporâneos de alguns autores brilhantes, e têm discernimento para encaminhá-los ao seu público. Ele era fundador e editor de The New York Review of Science Fiction, uma das melhores publicações de críticas não-acadêmica, com cobertura variada da FC, fantasia e horror.

Hartwell era mais inclinado à FC grandiosa, cósmica, FC pesada. Isso não o impedia de ser um grande fã de Philip K. Dick. É dele uma das frases que acho mais emblemáticas sobre o que é a obra de PKD. Perguntaram-lhe: “Quero ler Dick, qual o melhor livro para começar?” Ele disse: “Qualquer um. Em cada livro de Dick, mesmo os mais irregulares, todos os grandes temas dele estão presentes, de uma forma ou de outra. Qualquer um é uma boa porta de entrada.” E é exatamente isso.

Alguém devia escrever uma história da FC clássica através dos seus editores. Primeiro, Gernsback assentando as fundações do edifício. Em seguida, Campbell criando uma Golden Age em volta de si mesmo durante duas décadas. Depois a queda dos pulp magazines, a ascensão do formato digest: Horace Gold ( Galaxy), Boucher & McComas (Magazine of Fantasy and SF). A FC começou a ganhar malícia, ganhar um certo humor e um simpático cinismo urbano que começava a suplantar o simpático idealismo rural.

Vemos por um lado, nos anos seguintes, o espírito fã-histórico de Donald Wollheim como editor, e as aventuras anticonvencionais de Judith Merrill, que na sua seleção de melhor FC do ano incluía contos absurdistas, esquetes de autores famosos, poemas, trechos de romance. Nem tudo era FC, mas tudo ali dialogava. Dizem que uma editora muito importante foi Cele Goldsmith, que editou Amazing Stories, Fantastic, lançou muita gente boa.

Frederik Pohl, que editou Galaxy também, foi agente, mexeu a FC por todos os lados. Suas memórias são ótimas, o modo sem-nonsense como ele passa através das coisas. Outro grande editor foi Terry Carr, com as melhores antologias dos anos 1980.  No lado mais conservador, da FC tradicional, havia Lester & Judith del Rey criando sua própria empresa. No lado mais aberto a literatices, Gardner Dozois à frente da Asimov Magazine, e os sucessivos editores do Magazine of SF and Fantasy: Edward Ferman, Kristine Kathryn Rusch, Gordon van Gelder... Sem falar em Michael Moorcock fazendo um terremoto sozinho com New Worlds, na Inglaterra. Vivam os editores, os escolhedores de boas histórias para o nosso deleite e instrução.





sábado, 23 de janeiro de 2016

4032) Eu me lembro 8 (24.1.2016)



Eu me lembro que nos velhos álbuns de figurinhas como Céu e Terra cada envelope trazia 4 figurinhas, ou duas figurinhas duplas, ou uma figurinha quádrupla. 

Eu me lembro que nos cinemas as cadeiras eram de madeira e a gente se levantava, erguia o assento e depois o jogava pra baixo com força, fazendo “pááá!” quando o filme demorava a começar ou quando a fita quebrava. 

Eu me lembro dos museus de cera itinerantes que visitavam Campina e sua exposição de púbis masculinos e femininos com exemplos de todas as doenças venéreas imagináveis.

Eu me lembro de como era deserta e lamacenta a área entre o Açude Velho, a Maternidade e a feira, e de como um dia, indo com alguém ao encontro de minha mãe, enterrei a perna até o joelho num lamaçal preto e perdi um chinelo ou alpercata. 

Eu me lembro dos espelhinhos redondos de bolso e dos pentes Flamengo, e de como eu só me penteava com o lado mais cerrado do pente (hoje faço o contrário). 

Eu me lembro da correria dos meninos da rua para caçar tanajuras e fritá-las com óleo, e do nojo que eu sentia só em me imaginar comendo aquilo.

Eu me lembro que nos picolés vendidos nos carrinhos da rua o de “rainha” era o único com sedimento acumulado na ponta (no caso, a castanha moída). 

Eu me lembro que na lata do óleo vegetal “Don-Don” aparecia uma mulher com chapéu de mestre-cuca junto a uma lata idêntica, em tamanho proporcional, e assim por diante, numa construção-em-abismo. 

Eu me lembro que antigamente a gente podia ver duas ou mais sessões seguidas do mesmo filme pagando somente um ingresso, bastava ficar dentro do cinema.

Eu me lembro do Açude Novo por trás do atual Teatro Municipal, domingo de sol, e dezenas de guris, o tempo inteiro, subindo numa espécie de amuradazinha e depois tibungando dentro dágua. 

Eu me lembro do cheiro do linimento que minha avó Inez esfregava nas pernas antes de dormir, e que voltei a sentir quando entrava no vestiário do Treze, no estádio Presidente Vargas. 

Eu me lembro do restaurante Pérola, em frente ao colégio Alfredo Dantas, e de como eu olhava da calçada os guardanapos de pano branco enfiados nos copos e achava aquilo o máximo da elegância.

Eu me lembro de quando a gente pisava numa urtiga e tinha que na mesma hora mijar em cima para diminuir a coceira e a dor. 

Eu me lembro do Grand Canyon, o enorme buraco cavado pelas enxurradas que desciam do Alto Branco, a vinte metros de nossa casa. 

Eu me lembro de quando um amigo de meu pai esqueceu um par de óculos escuros lá em casa, e uma hora depois minha mãe me mandou na bodega, eu botei os óculos, todo vaidoso, e quando passei na esquina um guri falou: “Minha vó tem um oclo igual a esse.” 





sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

4031) O poder do real (22.1.2016)



Conta-se que mais de meio século atrás, houve em Campina Grande uma demonstração do Simca Tufão, o famoso carro capaz de andar equilibrado em duas rodas. 

Foi na Praça da Bandeira. O carro veio andando, e a certa altura tinha uma plataforma que se elevava em diagonal, os pneus do lado direito do carro subiram por ela, o carro se ergueu, a plataforma acabou, o carro prosseguiu dando voltas, triunfante, bem controlado, aí quando passou bem na frente de um véi, o véi falou: “Eita mentira da porra!”.

Estava acontecendo ali, diante dos seus olhos (que praza à terra não ter precisado deles por muitos anos) e mesmo assim ele achou que podia haver algo errado, alguma interferência, algum ruído informacional, alguma invasão do subjetivo! 

Mas, como assim – em plena rua, à luz do sol? “Sei lá,” responderia o velho, “a gente vê cada coisa nos palcos, nem digo nos cinemas, que ali é mentira mesmo, mas nos teatros, truques de vaudeville, portas falsas, jogos de iluminação, espelhos...”

Hoje, século 21, estamos aprendendo a duvidar da autenticidade das imagens virtuais que olhamos, em nossas telinhas e telonas, porque tudo pode ser imitado, tudo pode ser fabricado. Mas já naquele tempo o Véi da Praça duvidava da realidade consensual, duvidava da carne-e-osso, do feijão-com-arroz. Ele suspeitava de um hiato ontológico.

A Crise de Representação do Real não é o fato das fotos parecerem tão reais quanto os objetos, é que os objetos já parecem tão irreais quanto as fotos. 

Como transmitir um senso de realidade às coisas – na literatura, por exemplo? Talvez  ampliando nossa visão, deixando de ver só o que está na “foto” e vendo também o quadrado da foto, a mão que a segura ou a página que a exibe, e esse entorno seja a pedra de toque de sua realidade ou não. Fico com este parágrafo de Don DeLillo (The Names, 1982), em que um personagem recorda a curiosidade detalhista de seu pai a respeito dele quando era menino e morava à distância:

“Ele e o seu catecismo do mínimo, do acidental. Agora sei o que ele queria. Queria um retrato detalhado onde colocar minha minúscula, solitária figura. A única segurança está nos detalhes. Aqui temos uma ou duas certezas, os pequenos fatos do tempo e do clima que conectam pessoas à distância. Ele me perguntava como era a iluminação na minha sala de aula, quanto tempo tínhamos de recreio, quais os alunos a quem cabia fechar as portas deslizando os painéis corrediços. Eram perguntas formais, que ele me despejava em blocos compactos. Eu tinha que lhe fornecer nomes, números, cores, tudo que eu fosse capaz de registrar sobre as coisas em si. Isso o ajudava a me ver de uma maneira mais real”.





quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

4030) Os ritmos da prosa (22.1.2016)



(Bandeira e Augusto F. Schmidt)

Manuel Bandeira é a figura central de qualquer estudo sobre o ritmo e a métrica na poesia brasileira. De formação rígida no metro tradicional, foi ele quem demarcou com maior sutileza e variedade a nossa transição para o verso livre. Todos os outros poetas, neste aspecto, são pós-Bandeira. 

Numa crônica reunida em Os Reis Vagabundos (1966) ele comenta um texto de Augusto Frederico Schmidt sobre a obra de outro poeta (modestamente omite que o poeta é ele próprio), e diz que vê a si mesmo como um catador de poesia na prosa alheia, um “desgangarizador” (expressão de Couto Barros, diz ele, para quem encontra pepitas de poesia na ganga bruta da prosa alheia). 

E avisa: “A poesia é como um rádium – o milésimo de miligrama constitui uma riqueza que não se deve deixar perder.”

Agulhado por uma imagem que o comoveu, Bandeira pega dois trechos de Schmidt, remonta-os, faz pequenas alterações a bem da sintaxe, e transcreve o poema que encontrou:

PALAVRA A UM POETA. 
A luz da tua poesia é triste mas pura. 
A solidão é o grande sinal do teu destino. 
O pitoresco, as cores vivas, o mistério e calor dos outros seres te interessam realmente 
mas tu estás apartado de tudo isso, porque vives na companhia dos teus desaparecidos. 
Dos que brincaram e cantaram um dia à luz das fogueiras de São João. 
E hoje estão para sempre dormindo profundamente. 
Da poesia feita como quem ama e quem morre 
caminhaste para uma poesia de quem vive e recebe a tristeza 
naturalmente 
- como o céu escuro recebe a companhia das primeiras estrelas.


É um exercício interessante comparar essa descoberta dele com uma descoberta inversa, feita por um amigo, de um “poema” dele próprio num texto em prosa. Está no livro Opus 10 e intitula-se “Poema Encontrado Por Thiago de Mello no Itinerário de Pasárgada”. 

No Itinerário, a certa altura Bandeira fala das duas semanas que passou, em 1926, no Saco de Mangaratiba (RJ), e da longa viagem noturna de canoa, para pegar o trem de volta ao Rio de Janeiro. Essa viagem extenuante rendeu-lhe um longo poema composto mentalmente, num “subdelírio de extrema fadiga”, e do qual (como do “Xanadu” de Coleridge) se salvaram apenas as poucas linhas que intitulou “Oração no Saco de Mangaratiba” (em Libertinagem).

E se salvou também este trecho de prosa, em sua memória do acontecimento, que Thiago de Mello reorganizou assim, em linhas quebradas: 

Vênus luzia sobre nós tão grande 
tão intensa, tão bela, que chegava 
a parecer escandalosa, e dava 
vontade de morrer.  

Dessa noite de lúcido cansaço ficou-lhe também o título que deu a um dos seus livros mais conhecidos: Estrela da Manhã, de 1936.




quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

4029) A lista de Bowie (21.1.2016)



(David Bowie lendo sobre Buster Keaton)

Já disseram (e desmentiram) tudo que eu poderia dizer sobre David Bowie, então não me restou nada a contribuir senão comentar alguns títulos (os que li, ou que tenho para consulta) da lista dos seus 75 livros formadores, reproduzida numa das minhas páginas favoritas, Brain Pickings, de Maria Popova (aqui: http://tinyurl.com/gluf5rj).

A inglesidade de Bowie, sua essência de rapaz londrino, fica mais nítida na minha percepção quando o vejo citando livros como O Outsider (1956) de Colin Wilson, uma das bíblias dos “angry young men” daquela década, e o obscuro romance de Keith Waterhouse, Billy Liar (1959), do qual foi extraído um dos meus dez filmes favoritos, dirigido por John Schlesinger. Uma inglesidade que me parece reforçada por sua valorização de George Orwell (1984, Inside the Whale and Other Essays).

Mas foi o choque com a cultura pop norte-americana que transformou David em Bowie, e este caso de amor de mais de meio século me parece bem refletido quando ele enumera On the road (1957) de Jack Kerouac, A Sangue Frio (1965) de Truman Capote, Lolita (1955) de Nabokov, o póstumo e semi-obscuro A Confederacy of Dunces (1980) de John Kennedy Toole e os ensaios sobre o espírito do rock reunidos por Greil Marcus em Mystery Train (1975). São diferentes faces da América fascinante e transgressiva, a América que se acha representante de todas as Américas, a América ensolarada do rock e a noturna do jazz.

Os interesses de Bowie pela psicologia se refletem na sua escolha de O Eu Dividido de R. D. Laing (que li numa antiga edição da Ed. Vozes) e de The Origins of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind (1976) de Julian Jaynes, livro que me foi indicado em outra obra de Colin Wilson. Jaynes estuda o caráter “dividido”, quase esquizoide, da consciência humana, capaz de se ver por dentro e por fora ao mesmo tempo, como se cada um de nós fosse dois, constantemente se vigiando, se interferindo, se ajudando, se sabotando.

Procurei FC e fantástico na lista de Bowie; além de 1984 encontrei obras também inglesíssimas como Nights at the Circus (1984) de Angela Carter e Laranja Mecânica (1962) de Anthony Burgess. E obras cruciais sobre a criação artística: as entrevistas literárias de The Paris Review (ed. Malcolm Cowley), os ensaios de John Cage reunidos em Silence: Lectures and Writing (1961) e o extraordinário The Songlines (1986) de Bruce Chatwin, a descrição de uma Austrália mapeada pela poesia dos aborígines, um continente onde existe uma canção (ou pelo menos uma sextilha) para cada árvore, cada rio, cada monte, cada pedra no caminho.




terça-feira, 19 de janeiro de 2016

4028) "O Despertar da Força" (20.1.2016)



Sempre que testemunho os exageros de devoção de tantos amigos meus pela série Star Wars, repito mentalmente um mantra meio quilométrico no qual lembro a mim mesmo que eles viram o primeiro filme da série na mesma idade virginal com que eu vi Planeta Proibido e A Máquina do Tempo, e que foram os filmes de Lucas que cumpriram para eles a função revelatória, a função estrada-de-Damasco ou estalo-de-Vieira, de lhes arrebatar a imaginação. Vi o início da saga de Luke Skywalker com 27 anos, dos quais dez de cineclubismo e crítica em jornal. Era um pouco mais calejado do que um garoto de dez, e sei a diferença. Na minha frente ninguém fala mal de Fred Wilcox ou de George Pal.

O arrebatamento existiu, por vias transversas. Quando vi Guerra nas Estrelas (esse era o nome; depois arranjaram-lhe um apodo para dar simetria ao índice da série.) eu morava em Salvador e mexia com cinema dia e noite, mas me acreditava o único leitor de FC do Brasil. Só um ou outro amigo com quem dava para comentar um livro ou pedir dicas de filme. E num espaço de tempo muito curto vi o filme de Lucas e o Contatos Imediatos de Spielberg.

Esses dois caras estão há mais de 30 anos cantando um mourão-voltado de sucessos, um bate aqui, o outro responde acolá. Acho Spielberg mais à vontade dirigindo, seus filmes são mais soltos. Os de Lucas, mesmo os bons, nunca mais tiveram aquela soltura de American Graffitti. Mas Star Wars era igual ao cinema mental que fazíamos lendo livrinhos de bolso e pulp magazines antigos. Era futurâmica, era argonauta, era amazing. E era uma aventura pop; não tinha nenhum compromisso com o realismo, desde que fosse possível produzir um efeito melodramático.

O roteiro deste filme novo segue a planta-baixa de várias sequências que deram certo nos anteriores. Há repetição e há inversão de padrões, tanto nas triangulações de personagens quando nas estratégias de destruição do poder inimigo. O filme reconstitui personagens e situações em quantidade bastante para dedilhar o espectador da prima ao bordão. É bonito como alguns personagens envelhecem, e como continuam a ser nada mais do que eles mesmos.

Para corrigir os equivocados filmes anteriores, optou-se pela volta à primeira trilogia, e nesse sentido a preocupação-em- ficar-parecido talvez tenha manietado a imaginação do roteiro. Não há muita trama, há dois MacGuffins (o mapa, o sabre) que parecem o saco-plástico-com-um-milhão-de-reais de tantas telenovelas. Não importa; o que importa é que “the game is afoot”. Louve-se o novo elenco, e louve-se a ousadia dramatúrgica de ceder ao mais básico dos realismos, que é reconhecer que a morte existe.



segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

4027) "Star Wars 7" (19.1.2016)



Que beleza seria o mundo se todo mundo visse no mesmo filme um mesmo filme, hem?  Mas ninguém se banha duas vezes (nem ao mesmo tempo) no mesmo filme. Fui ver Star Wars 7 sem ter lido praticamente nada a respeito. Uma façanha, considerando-se a enxurrada de idéias nas redes sociais. Escapei, e fui ver. Acho que J. J. Abrams e seus roteiristas se banharam longamente nos roteiros anteriores. Desconte-se a obrigação explícita de restaurar o sabor original do produto.

Depois de um clímax militar bem conclusivo, o filme se arremata com um personagem estendendo uma arma para outro, como quem diz: “Vai lutar feito um homem ou vai se deixar melancolizar nessa falésia, feito um poeta romântico?” Todo primeiro segmento de uma trilogia é uma potencial ofensa ao leitor/espectador distraído, que pensava estar pagando por um livro/filme inteiro, daqueles com começo, meio e fim. Lembro do estado de choque no rosto de muitas pessoas ao se acenderem as luzes após A Irmandade do Anel, o primeiro filme da trilogia de Peter Jackson.

Assim como a Odisséia nada mais é do que um cara querendo voltar para casa depois do trabalho, O Despertar da Força é a história de uma encomenda que alguém pede a outra pessoa que entregue a uma terceira. Quem continua sendo um enigma é a tal da Força, cada vez mais uma mistura de telepatia com telequinésia. Ou como “a Voz” das feiticeiras de Duna, mas sem o efeito sonoro correspondente. A voz hipnoticamente obedecida, que proporciona ao filme algumas fugas-do-calabouço na base do liberalismo, como nos velhos seriados. Como dizia Peter Nicholls, são as fugas tipo “com-um-puxão-Jack-rompeu-as-cordas-e-viu-se-livre”. A fuga do personagem acontece por decisão diretorial e dramatúrgica; o ator/atriz obedece até com certo constrangimento.

Abismos, esgrima, perseguições, explosões, prisões, fugas, disfarce, desmascaramento... A saga de Lucas se desenvolve em ziguezague. Não a comparo a Star Trek (que conheço menos). Um show de TV fica anos produzindo e se lapidando. O cinema se guia por outro relógio. Neste filme de Abrams, o diálogo ou é utilitário (para informar ao público algo necessário à trama) ou é o diálogo “snappy”, chinfroso, rápido-no-gatilho, em que nos momentos de maior perigo ou de maior romance um cara (e agora uma mulher) sempre se sai com uma frasezinha mordaz ou blasê.  Cacoete hollywoodiano; marca dágua. Os melhores diálogos do filme são aqueles trechos curtos e surreais, meio Moebius, em que ele diz: “Eu estou com uma carga de antiworms levando a Ranga-Oradesh, mas passei a quadração de elúsia e cheguei aqui em pleno Extrudus. Me arranja quinze abalonakis!”. Ou coisa parecida.





sábado, 16 de janeiro de 2016

4026) O Alien é a gente (17.1.2016)




Desde os dezoito anos eu vejo menções à famosa frase do quadrinista Walt Kelly, o autor da série Pogo: “We met the enemy, and he is us”. “Encontramos o inimigo e ele é nós”. Ou, numa tradução mais coloquial, mais próxima do registro da HQ original: “Saquei quem é o inimigo. É a gente”.

Fui dar uma olhada na história dessa frase e fiquei sabendo que ela surgiu como paródia a outra frase famosa, pronunciada a sério. Em 1913, o Comandante Perry, da marinha norte-americana, assim anunciou aos seus superiores a vitória naval na batalha do Lago Erie: “We have met the enemy, and they are ours” Ou: “Encontramos o inimigo, e eles agora são nossos (=estão em nosso poder).”

A frase de Kelly tem a ver com a criação de alienígenas na ficção científica, porque de cada um deles pode-se dizer: “Ele é a gente”.  Não importa se são lagartiformes ou esféricos, se são mamíferos ou insetóides. Sua aparência pode ser demoníaca como ocorre com os Overlords de Arthur C. Clarke em O Fim da Infância, colossal como o Bihil de O Grande Ser de Peter Randa, quase imaterial como A Nuvem Negra de Fred Hoyle. Pode ser repugnante, incompreensível. No momento em que existe entre eles e nós qualquer interação, qualquer troca de mensagens (mesmo hostis), o Outro nos tocou, nós o tocamos, e sua alteridade se rompeu em parte, porque descobrimos nele alguma coisa de nós mesmos.

Em Alien Encounters (1981) de Mark Rose, ele cita o comentário de Patrick Parrinder, de que “não é possível imaginar algo totalmente alienígena, mas apenas conceber algo que nos seja estranho por efeito de contraste ou de analogia com algo já conhecido.” Isto faz, diz Mark Rose, com que possamos imaginar porcos voadores ou mentes que caminham ou mesmo estrelas inteligentes, mas não somos capazes de imaginar algo que não mantenha relação alguma com o que já conhecemos. Por isso (diz Parrinder) os alienígenas na FC possuem sempre uma dimensão metafórica. Por mais que sejam produtos da imaginação, e por mais desbragada que esta seja, há sempre algo nosso nesse elemento que sintetiza a Estranheza.

Na trilogia Comando Sul, de Jeff Vandermeer (Ed. Intrínseca), esse problema é colocado de uma maneira enigmática, tarkovskyana (a obra evoca tanto Stalker quanto Solaris). Os personagens (e o leitor) se deparam com fenômenos que só podem ser explicados como a interferência de uma inteligência estranha, e cabe a eles concatenar uma série de fatos disparatados nesses fenômenos, durante os quais os humanos da narrativa passam a questionar a sua própria existência, porque depois do Contato as leis físicas do mundo parecem ter deixado de vigorar universalmente.



sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

4025) A palavra assustado (16.1.2016)



“Assustado” era um termo usado nos anos 1950-60 para designar um baile de moças e rapazes em casa de família.  O nome se deve ao fato de que, no início, o costume era fazer a festa de surpresa. Combinava-se tudo antes à revelia da pessoa cuja casa havia sido escolhida para a “invasão”. Cabia às moças levar os salgadinhos, e aos rapazes os refrigerantes e outras bebidas. 

Na hora marcada, o grupo chegava de repente na casa, e em poucos minutos a radiola estava tocando, todos bebiam e dançavam. Como reagiam os donos da casa? Olha, pelo que me lembro, nunca fiquei sabendo de alguma reação hostil. Eram outros tempos – talvez.

Depois, o termo estendeu-se para qualquer festa dançante numa residência, mesmo previamente combinada com os donos da casa.  Era um típo de festa moderninha, urbana. José Laurentino, em Meus Versos Feitos na Roça, diz: 

A prima me olhou sorrindo 
e disse pobre coitado 
já sei que você meu primo 
ainda está atrazado 
é do mato é arigó 
eu não gosto de forró 
nós vamos a um assustado.

Em sua pesquisa A Música Popular no Romance Brasileiro, José Ramos Tinhorão registra várias vezes este termo, como ao transcrever (vol. 1, pag. 131-132) uma cena de Memórias de um Sargento de Milícias de Manoel Antonio de Almeida: 

“Resultado: acaba sendo preso pelo Vidigal como vadio durante uma súcia – como se chamavam na época as pequenas farras improvisadas, estilo assustado...”

Em outro momento, Tinhorão comenta um romance de Clóvis Amorim, de 1934: 

“Era o que já se podia comprovar no capítulo ‘Fuzarca’ desse romance O alambique, ao descrever o escritor uma festa de assustado na casa do personagem Laurentino.” (vol. 2, pag. 208). 

Mais adiante, comentando A marcha de Afonso Schmidt (1941), deixa clara a diferença entre um « assustado » e uma festa de verdade:  "Ao dizer que D. Sinhara chamava o baile em preparação de assustado, o romancista ressalva que ela “dizia assustado por modéstia” (vol. 2, pag. 374).

É um termo datado, palavra cuja existência depende de um contexto de hábitos, depende de certos costumes sociais. Desaparecendo os costumes, seja por que motivo for, desaparece a palavra. 

Nessa intersecção entre dança, bebida e música, outros termos, no que me diz respeito, estão rumando para o desaparecimento, como certos eventos dos clubes sociais: a “manhã de sol” (um conjunto musical tocando à beira da piscina), o “jantar dançante”, a “tertúlia” (o baile do sábado, ou do domingo à noite, não lembro mais; a noite nobre da semana). Como não frequento mais esses clubes, no entanto, talvez esses termos continuem de vento em popa e quem esteja rumo ao ocaso seja eu mesmo.





4024) Os marcianos de Wells (15.1.2016)



(ilustração: Henrique Alvim Corrêa)

Quando H. G. Wells publicou A Guerra dos Mundos (1898), sua invasão alienígena surgiu bem no miolo do espírito do tempo. A Grã-Bretanha, no auge do colonialismo, podia se ver como invasora e como invadida, como a literatura de guerra da época cansou de explorar. Havia uma plausibilidade enorme naquela população pacata do interior que primeiro se aglomera e se abanca para assistir a mais um prodígio merecedor de conversas de “pub”, e logo em seguida dispara espavorida ao ver que aquilo é uma invasão maligna, de criaturas que vieram para matar.

Verossímil porque percutia as teclas de medos mais profundos, medos coletivos e ancestrais. Howard Koch, o homem que roteirizou para Orson Welles a famosa adaptação radiofônica de 1938, se maravilhava ao ver os ouvintes aceitando que dentro de meros 45 minutos avistavam-se em Marte as explosões do disparo das naves, a chegada destas à Terra, o ataque dos marcianos, o extermínio de batalhões inteiros e a queda das principais cidades. Em apenas 45 minutos, e tanta gente acreditou!

É a lição da literatura, do cinema, do próprio rádio: se uma narrativa for sólida e flexível, e se houver continuidade topológica em sua estrutura de causas e efeitos, ela pode ser comprimida ou esticada até limites muito amplos. Só perde a força quanto a compressão força a retirada de elementos essenciais, ou quando a expansão começa a diluir seu movimento interior.

Os marcianos são fisicamente monstruosos, e dominam uma alta tecnologia. São dois clichês do gênero, e Wells os explicou em poucas páginas, como já fizera com a teoria do Tempo como 4a. dimensão em A Máquina do Tempo (1895). Mais do que os clichês, contudo, vale observar os pequenos detalhes que o seu narrador percebe e comenta. A certa altura, trancado num porão que os marcianos examinam à procura de humanos, o narrador diz: “Passou-se uma era inteira de intolerável suspense, e então eu os ouvi mexendo no trinco. Os marcianos entendiam portas!”.

E no entanto esses mesmos marcianos desconhecem a roda. Locomovem-se via estruturas metálicas insetóides, baseadas em sistemas de alavancas e de discos de um material elástico que, como os nossos músculos, se contrai à passagem de corrente elétrica. Esse jogo de aproximações e afastamentos se estende pelo livro inteiro. Inclui a revelação indireta de que os marcianos se alimentam do nosso sangue, e à cena inesquecível na reta final, quando o narrador, percorrendo a Londres devastada e deserta, avista uma máquina marciana imóvel à distância, aproxima-se, e vê os urubus devorando tiras de carne de algo que está lá dentro. Uma imagem que diz tudo sobre nosso parentesco.




quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

4023) A cultura oral (14.1.2016)



(Mia Couto)

Comentando a tradição oral de Moçambique, diz Mia Couto: “As pessoas podem discutir a coisa mais sagrada e mais séria do mundo, economia por exemplo, mas o fazem contando isso com histórias, com pequenos casos, com provérbios, com aquilo que são os conceitos da oralidade. (...) A oralidade não é a ausência do saber da escrita, a oralidade é um outro saber, uma outra maneira de olhar o mundo”.

A cultura oral tem um formato próprio, um espírito próprio. Ela é, por exemplo, uma cultura do concreto, baseada menos em generalizações abstratas e mais em casos, exemplos, anedotas, episódios, lendas, fábulas, provérbios, parábolas. Situações humanas cuja superposição vai cristalizando na mente dos ouvintes uma mensagem embutida. Aquilo que Lévi Strauss em “O Pensamento Selvagem” descrevia como “uma ciência do concreto”. Quando temos aquelas fábulas que se concluem com uma “moral da história”, aquela fórmula sintética que “explica” a história, não acho exagero dizer que a história em si (“A cigarra e a formiga”, “A raposa e as uvas”, etc.) pertence ao espírito da cultura oral, e a “moral da história” à cultura escrita, com o seu tom sintético e generalizante.

Por outro lado, a cultura oral é fluida; não existe “o original” de nada. Tudo é cópia, é versão. (Estamos regressando a esse estágio agora, com a reprodutibilidade instantânea do mundo digital. O mais difícil no mundo virtual é estabelecer a autoria original de algo, ou traçar a precedência de cada versão entre milhares que aparecem.) Cada versão é diferente das outras, cada uma é igualmente crível. É um mundo onde não é possível confrontar duas versões e bater um martelo a respeito da autenticidade de uma e da falsidade da outra. Na cultura oral é como na natureza: duas mangueiras são diferentes mas são ambas mangueiras, uma não é uma mangueira falsa e a outra uma mangueira de verdade. Na cultura oral, o conceito de autoria individual é muito tênue. Ela é apenas a fagulha inicial de alguma coisa cuja autoria é coletiva, social.

A cultura oral exige a presença física. Não há gravadores nem microfones: ela se dissemina a partir da fala, do corpo presente, de boca em boca. É uma atividade presencial. Um verso, uma anedota, uma parábola, tudo isso é criado individualmente, por uma pessoa qualquer, mas depois disso começa a propagação coletiva no espaço e a preservação coletiva no tempo. O verso, a anedota, se incorporam à memória de todos. A presença física do indivíduo, necessária no momento inicial da propagação, se dilui, fica para trás. A comunidade é o que hoje chamaríamos de HD, de “nuvem”, onde tudo fica armazenado e teoricamente disponível.





terça-feira, 12 de janeiro de 2016

4022) Poemas para o Quixote (13.1.2016)



Talvez sejam Dom Quixote e Sancho a dupla de personagens mais famosos da literatura, mais famosos até do que Sherlock Holmes e o dr. Watson, que a eles se assemelham. Desde 1605 e 1615, anos em que foram publicadas as duas partes do romance de Cervantes, viraram referências, símbolos, parâmetros. Em comemoração a esta última data, Carlos Newton Júnior compilou a antologia Poemas para Dom Quixote & Sancho (Recife, Editora UFPE, 2015), onde reúne poemas ou fragmentos de poemas de autores brasileiros e portugueses, do século 19 até nossos dias. Em alguns casos, são apenas menções passageiras numa obra que trata de outro assunto; em outros, a dupla de Cervantes é o foco principal do poema.

Além de vários poetas obscuros (para mim, pelo menos), a antologia traz versos de Machado de Assis, José Saramago, Ivan Junqueira, Cruz e Souza, Augusto Frederico Schmidt, vindo até autores mais recentes como Fausto Wolff, Alexei Bueno e Orides Fontela. De um modo geral, os poemas glosam os temas propostos por Cervantes; não cheguei a ver uma releitura, uma tentativa de dar uma nova versão dos personagens, a não ser no longo poema dramático “O amor de Dulcinéia” (1928) de Menotti del Picchia, que propõe um Sancho sonhador e um Quixote pragmático. Como regra geral, os autores aceitam a formulação de Cervantes e usam os personagens com a reiteração constante dos perfis que já conhecemos.

“De nós dois,” diz Carlos Drummond, “quem o louco verdadeiro? / O que, acordado, sonha doidamente? / O que, mesmo vendado, / vê o real e segue o sonho / de um doido pelas bruxas embruxado?”. A oposição maior entre os dois personagens é a polaridade sonho/não-sonho, glosada por quase todos os poetas. Ferreira Gullar diz: “Chamar-me de louco, ousas! / Loucos são todos, em suma: / uns, loucos por várias cousas, / outros por cousa nenhuma!”.  São, por assim dizer, poemas líricos sobre um tema épico, onde a grandiosidade do real e do sonho transparece em versos como os de Teixeira de Pascoaes: “A vida só é bela na montanha / só é bela no mar ou no deserto...”

Trechos de humor estão presentes, como quando Del Picchia descreve o cavaleiro montado em Rocinante como “um espeto em cima de um estrepe”, ou quando Drummond o faz exclamar: “Amigo Sancho, vai-te à merda!”.  Mas, por patéticos que sejam, os personagens são uma concentração inédita de vida, de sofrimento verdadeiro, de alegrias, de uma agitação fugaz não muito distante da nossa.  E o português João Manuel Simões adverte: “Considera, Sancho irmão / que é pouco, para viver, / todo o tempo que há no mundo. / Contudo, para morrer / (amarga constatação) / basta apenas um segundo.”




segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

4021) Como fugir pelo mato (12.1.2016)



(ilustração: Silas Manhood)

A principal vantagem de fugir pelo mato é não poder mais ser visto depois de uma certa distância. A fuga é mais lenta, mas não importa. Carreira desabalada é para quem foge na rua, na estrada, em campo aberto. No mato, deve-se avançar sem paradas, sem hesitações, andando, desviando-se de obstáculos, ganhando terreno a passos largos, e mantendo esse ritmo durante horas, sem parar.

Procurar espaços onde o avanço pode até ser mais lento, mas em compensação você não possa ser visto. Se for avistado em campo aberto, mesmo correndo você já perdeu a sua maior vantagem. Pise com cuidado. Um caco de vidro, uma pedra pontiaguda, podem ser a diferença entre a vida e a morte, para quem está com um tênis ou sapato leve. Mude de rumo com frequência, mas sem perder de vista a direção de onde veio. Fugir voltando não vai adiantar nada.

Atenção ao latido dos cachorros. Procure afastar-se. Se começarem a ficar mais próximos você vai ter que procurar uma árvore. Oriente-se pela posição do sol, ou da lua e das estrelas, se houver. Não precisa saber nome de constelação ou coisa parecida. Basta estabelecer um ponto de referência e mantê-lo sob controle. De vez em quando pare por meio minuto para escutar Aproveite para respirar melhor. Só olhe para trás nesses momentos.

Lembre-se de que você pode escolher para onde vai, e seus perseguidores é que têm a obrigação de descobrir para onde você foi.  Ao encontrar uma cerca, melhor do que pular e seguir em frente é pular e seguir ao longo dela. O mesmo quanto a um rio. Se achar uma estrada ou caminho-de-roçado, por onde passam os burros e as motos, vá por ele, mas parando e escutando sempre: passa gente ali.

Nunca imagine que já se livrou dos seus perseguidores. Também não fique pensando que eles estão a um minuto de alcançá-lo. Pense assim: “Eles estão vindo na direção certa, mas têm que avançar mais devagar do que eu. Enquanto eu continuar avançando, tenho chances.” Se avistar uma rodovia, vá na direção dela, mas mantenha distância: seus perseguidores podem estar vindo por carro. Acompanhe-a de longe até avistar um posto de gasolina, ou outro tipo de parada onde você pode pegar carona clandestina num caminhão ou outro veículo, sem ser visto, e ir para bem longe.

Fugir pelo mato é uma arte cultivada há milênios, que já salvou a vida de milhões de pessoas. A inexistência de tratados didáticos a respeito mostra o quanto a nossa sociedade está preparada para as regras, não para as exceções, e nos momentos cruciais em que tudo é uma questão de vida ou morte ficamos dependendo dessa memória ancestral gravada em nosso DNA. Fica aqui esta modesta contribuição. Nunca se sabe.




sábado, 9 de janeiro de 2016

4020) A Língua Portuguesa (10.1.2016)



Existe uma oposição, que acho equivocada, entre linguagem coloquial e norma culta. Oposição que no Brasil (talvez em outros lugares também) ganhou um viés de marca de classe. Ser de classe superior é ser capaz de usar uma linguagem culta, gramaticalmente impecável, para demonstrar estudo. Gramática, ortografia, pronúncia e vocabulário são crachás necessários na subida da pirâmide social. É bom, é ruim, é certo, é errado? Não sei, o debate está em aberto, sempre acho melhor saber das coisas do que ignorar. Não se organiza essas coisas por decreto, e o fato é que aqui funciona assim.

Vem daí esse sintoma linguístico das pessoas usarem palavras de fora da linguagem comum quando querem alegar superioridade social e moral sobre os outros. Quando um político precisa afirmar em público que é um homem honesto, estas palavras (tão humanas, tão honestas!) não lhe bastam. Dizer isso qualquer pé-rapado pode! Ele precisa dizer que é um “cidadão de reputação ilibada”, e com esse vocabulário acredita estar colocando em xeque pelo menos dois terços dos que o criticam. Falar assim é como dizer: “Eu estou de terno e gravata. E você? Jeans e havaianas? Rá-rá-rá.”

A história da língua brasileira é a história de uma progressiva desternoegravatização da fala, do abandono de uma língua engessada, protocolar, em favor de uma língua mais flexível, solta, aberta para novidades, capaz de reproduzir o sentimento e a personalidade do falante em cada momento. Me espanta saber que ainda hoje existe quem ache errado usar pronome oblíquo em começo de frase. E impressiona constatar que cem anos atrás Lima Barreto já escrevia como escrevemos hoje, e que as academias literárias de hoje estão repletas de seguidores de Coelho Neto - no que Coelho Neto, grande escritor, tinha de pior: a pompa ornamental da prosa.

Isto não quer dizer que todo mundo deva falar como os personagens de Adoniran Barbosa ou de Patativa do Assaré, mas que uma língua madura e saudável é capaz de acolher essas variantes sem que seu núcleo desmorone. E o núcleo da língua não é o juridiquês insuportável do editorialismo político e classista de nossa imprensa. O núcleo é Camões e é Machado, é o Padre Vieira e o cachaceiro Gregório de Matos, é Oswald de Andrade e seu aparente antípoda Fernando Pessoa. E são também (olha o pulo de susto!) os letristas da música popular, que muitas vezes dominam a gramática e o vernáculo melhor do que muitos medalhões. Melhor do que muitos beletristas que se dão ares mas não sobreviveriam na palavra impressa sem a proteção invisível da força-tarefa de revisores que caminha atrás deles, limpando os erros que deixam cair pelo caminho.







sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

4019) A Vida e os Tempos de Minotauro Bob (9.1.2016)



(ilustração: Alberto Russo)

Cap. 1 – De como Minotauro Bob explodiu na cena roqueira nordestina à frente de uma banda pegada-no-laço, sem ensaio, sem passagem de som, um mero agrupamento de quatro rapazes destreinados aos quais ele passou uma única instrução: “O tom de tudo é Sol Maior, e a levada é assim, ó”. 

Cap. 2 – De como a repercussão dos primeiros shows foi tamanha que convites para gigs começaram a pipocar nos dois celulares do hirsuto vocalista, e quando ele atendia um dizia para ligar pro empresário dele e dava o número do outro celular, o qual atendia com voz modificada. 

Cap. 3 – De como numa noite de verão o trânsito dos quarteirões em volta do Bar de Zeco, em Serra Redonda, foi bloqueado pela multidão que compareceu ao show de Minotauro Bob e a Banda Asterion, intitulado “O Som é Esse e a Porta é Por Ali”. 

Cap. 4 – De como isto foi apenas o começo de um torvelinho insone de rock ensurdecedor, microfonias, suor, acotovelamento, cerveja morna, pegação, camarins repletos de groupies disfarçadas de repórteres e de repórteres que viravam groupies, e comemorações pós-show mais ruidosas do que os shows propriamente ditos.

Cap. 5 – De como Minotauro Bob inaugurou o costume de, bebida a última cerveja do camarim, pular e cair sentado dentro da caixa de isopor cheia de gelo.

Cap. 5 – De como Minotauro Bob foi pêgo comendo bode guisado numa birosca-com-sinuca no bairro do Tombador e espinafrado por dois cabeludos para quem rock era religião e bode era comida de forrozeiro, e sem parar de mastigar ele pegou os dois e deu uma surra num usando o outro de chibata.

Cap. 6 – De como Minotauro Bob se apaixonou por Suze Leruá, astróloga, tatuadora, com lojinha na rua Índios Cariris, e os dois se envolveram num fetiche sexual zumbidor, pintando sereias por cima de caveiras da SS, transformando a cara de Bowie num cybercamaleão e por aí vai.

Cap. 7 – De como a banda foi contratada por engano para tocar num reveillon num resort tropical na Costa do Sauípe, e com 15 minutos de show os bacanas locais, uiscados até o talo, invadiram o palco de garrafas em punho para interromper uma suposta felação recíproca entre dois roadies bêbados.

Cap. 8 – De como o hospital e a prisão devem ter mexido no software de Minotauro Bob, porque na cadeia ele aprendeu a tocar violão, converteu-se à Psicanálise Quântica, escreveu um livro infantil (tudo isso em dois meses), casou com Suze no dia em que foi libertado, mudou o nome da banda para Rasante de Teco-Teco, emplacou uma música numa novela, ficou rico e está rico até hoje, o que mostra que o mundo pode ser mesmo sartreanamente absurdo, mas que Deus de vez em quando aparece para assinar o ponto.






4018) O poder do sonho (8.1.2016)



O físico John N. Bahcall disse certa vez: “As descobertas mais importantes trazem respostas para perguntas que ainda não tínhamos condições de formular, e dizem respeito a objetos que não tínhamos como imaginar até então”. Parece irônico, mas na Ciência a gente muitas vezes encontra a resposta antes de ter uma pergunta para ela. Quando Einstein propôs sua Teoria Especial da Relatividade, em 1905, faltava-lhe uma formulação matemática adequada (consta que ele não era um grande matemático; suas descobertas eram mais intuitivas do que formais). Então seu ex-professor Hermann Minkowski mostrou que esse arrazoado matemático já existia, independentemente das descobertas no campo da Física. Era, de certo modo, um raciocínio já pronto e clarificado, só que não tinha aplicação prática. Era uma resposta em busca de uma pergunta – que foi fornecida pela Física.

O trabalho criador do cientista (porque um cientista faz outros trabalhos que não são criadores) parece muito com o do artista; ele avança meio cegamente, guiado pela imaginação, associação de idéias, intuição, palpite, obsessão maníaca, o que for. Vai descobrindo coisas que não sabe o que são.  Uma das melhores descrições desse impulso criador coletivo é de Nietzsche em A Gaia Ciência (1882; trad. Paulo César de Souza):

“Então vocês acham que as ciências teriam surgido e progredido, se os feiticeiros, alquimistas, astrólogos e bruxas não as tivessem precedido, como aqueles que tinham antes de criar, com suas promessas e miragens, sede, fome e gosto por potências escondidas e proibidas? Não veem que foi preciso prometer infinitamente mais do que era possível realizar, para que algo se realizasse no âmbito do conhecimento? – Talvez, da mesma forma como nos aparecem hoje os prelúdios e exercícios prévios da ciência, que não foram praticados e percebidos como tais, também a religião inteira se apresente como exercício e prelúdio para alguma época distante: ela poderá ter sido o meio singular de alguns indivíduos poderem fruir toda a autossuficiência de um deus e toda sua força de autorredenção. Sim – é lícito perguntar --, teria o ser humano aprendido, sem a escola e pré-história da religião, a sentir fome e sede de si e encontrar saciedade e plenitude em si? Foi preciso que Prometeu imaginasse antes haver roubado a luz e pagasse por isso – para finalmente descobrir que havia criado a luz, ao ansiar por ela, e que não apenas o ser humano, mas também a divindade fora obra de suas mãos e argila em suas mãos? Tudo apenas imagens do formador de imagens?  -- assim como a ilusão, o furto, o Cáucaso, o abutre e toda a trágica Prometeia dos homens do conhecimento?”