sábado, 31 de julho de 2010

2308) Drummond: “Também já fui brasileiro” (31.7.2010)



(Mário de Andrade, por Lasar Segall, 1927)

Depois do grito-do-ipiranga literário que foi o Modernismo de 1922 este poema de Drummond (em Alguma Poesia, que comemora 80 anos de publicação) talvez seja o sinal de um refluxo cauteloso do entusiasmo inicial do movimento, ou quem sabe (deixo isto aos historiadores das idéias) não passe de uma meia-trava oriunda do próprio espírito desconfiado do poeta, cujos arroubos coletivos só o levavam até a esquina. Chegando lá, Drummond deixava o cordão dos entusiasmados seguir seu caminho e voltava para casa vagaroso, de mãos pensas. Quando ele diz que também já foi brasileiro e moreno, isto parece uma despedida precocemente nostálgica de tudo que o Modernismo rasgava às escâncaras: nossa mestiçagem, nossa ginga. Nesse livro, que em muitos aspectos é uma das grandes afirmações do nosso Modernismo, mesmo publicado 8 anos após seu brado inicial, este poema já cria uma problematização dos trunfos que o Modernismo espalhava na mesa.

Um detalhe interessante é o modo como o poeta diz: “Eu também já fui brasileiro / moreno como vocês”. Vocês quem, cara pálida? Os paulistas da Semana de 22, entre eles Mário de Andrade, a quem o livro é dedicado com um laconismo que diz tudo (“A Mário de Andrade, meu amigo”)? “Ponteei viola, guiei forde” parece alusão conjunta a Mário e Oswald; é curioso notar que “forde” é um aportuguesamento de ocasião que não pegou como pegou, por exemplo, “bonde”. A violinha do capiau e o automóvel do dândi eram sintomas do Modernismo; contradizendo-se, o reforçavam. Ambos negavam o inimigo comum, o Parnasianismo de Bilac, que Drummond destrói na segunda estrofe, chamando as estrelas (com uma ironia que lembra alguma “boutades” de Jorge Luís Borges) de “substantivos celestes”.

O poeta afiança que já teve ritmo, “fazia isso, dizia aquilo”, e que “meus amigos me queriam, / meus inimigos me odiavam”. Como é de praxe em toda frente de batalha literária. Em toda a carreira de Drummond, contudo, fases de empolgação e loquacidade por um ideal qualquer são seguidas por fases em que o poeta se recolhe, se melancoliza, queixa-se da dificuldade em dizer as coisas. Em sua poesia, há sempre uma análise de hoje sopesando as dívidas deixadas pelo entusiasmo de ontem. Mesmo nesse momento inicial, um mero menino de 28 anos, o poeta já treina para sisudo, já confessa que perdeu o rebolado: “Hoje não deslizo mais não, / não sou irônico mais não, / não tenho ritmo mais não”. Deslizamento, ironia e ritmo estão presentes justamente nesta negação tripla que nos lembra São Pedro na noite da prisão de Cristo. Apóstolo modernista em crise, Drummond bota sua própria fé na balança e se angustia ao ver como esta mal estremece. Não importa: este momento de dúvida tão bem registrado acaba por dar credibilidade aos outros (muitos) momentos de afirmação modernista no restante do livro. Mas é sintomático que o poeta o tenha colocado logo nas páginas iniciais. Para fazer constar na ata.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

2307) O Ulisses russo (30.7.2010)



Falei aqui, dias atrás, sobre a lista do crítico Joshua Cohen sobre os livros equivalentes ao Ulisses de James Joyce em diferentes países. 

Muitos leitores torcem o nariz para Joyce. Pegaram um romance para ler, e quando abriram a primeira página depararam-se com uma cerca de arame farpado. A cerca era a prosa de Joyce. Cada linha de cada página parece feita de um arame indobrável, e espigada de espinhos dolorosos. Dez palavras desconhecidas por linha, e de nada vale socorrer-se do dicionário, o qual as desconhece também. 

O leitor arremessa o livro contra a parede, danificando a parede. Julga-se ludibriado. Ulisses (junto com o livro posterior, Finnegans Wake) é um dos becos-sem-saída mais notáveis da literatura. Produto de uma época em que a linguagem do romance alcançou liberdades iguais às da poesia. 

Esta, por sinal, é a qualidade mais elogiada no livro que Cohen considera “o Ulisses russo” – Petersburgo, de Andrei Biely, publicado em 1913. Cohen assim o resume: 

“O romance de Biely é uma bomba-relógio contando a história de uma bomba-relógio. Um jovem revolucionário, Nikolai Apollonovich, recebe a ordem de assassinar seu próprio pai, Apollon Apollonovich (um importante funcionário do Czar) colocando uma bomba em seu escritório. Começa aí uma corrida contra o relógio que dura 24 horas, enquanto Biely, um mestre do Simbolismo russo, nos faz ouvir a voz de São Petersburgo, desde a algaravia dos camponeses até o blá-blá-blá dos intelectuais”. 

O livro de Biely é anterior ao de Joyce, que só começou a ser publicado (serializado na Little Review) em 1918. Mais do que causa ou influência, predomina aí o espírito experimentalista do tempo. Um dos grandes movimentos nesse sentido ocorreu justamente na Rússia, com a poesia de Khliébnikov, Maiakóvski e outros. 

O fato de ambos os romances descreverem 24 horas na vida de um indivíduo e de uma cidade é típico da literatura urbana européia na segunda metade do século 19, quando as cidades tornaram-se tão personagens quanto as pessoas. 

Em seu blog Praxis (http://tinyurl.com/3ahkn6j), Duncan Law faz um extenso comentário do livro, e cita um trecho da introdução feita pelos tradutores ao inglês (Robert A. Maguire e John E. Malmstad), que dizem: 

“Troca de categorias gramaticais, ataques à sintaxe convencional, estranhas, (ou “impossíveis” para alguns) combinações de palavras, súbitas compressões e elipses, manipulação de sons e da semântica – destas e de outras maneiras Biely cria uma textura verbal altamente idiossincrática, que oferece surpresas constante ao leitor russo, deliciando os aventurosos e horrorizando os conservadores”. 

Descrição que caberia em Joyce e caberia em todos os gigantescos Romances Urbano-Mitológicos da Linguagem, dos quais Ulisses é o mais famoso. (Duncan Law, aliás, considera medíocre a outra tradução inglesa, feita por David McDuff, porque feita a partir de uma versão mais longa e menos modernista do romance).








quinta-feira, 29 de julho de 2010

2306) “O Olho do Diabo”(29.7.2010)



Ingmar Bergman é um dos grandes realistas do cinema, mas seus filmes fantásticos também são notáveis, entre outras coisas porque, como todo grande realista, quando ele conta histórias fantásticas sabe dar-lhes espessura realística, o que torna o fantástico também mais espesso. É o caso de um dos seus filmes mais famosos, O Sétimo Selo, em que um cavaleiro medieval joga xadrez com a Morte.

O Olho do Diabo (1960) é um filme menor, desdenhado (ao que se diz) pelo próprio Bergman, que o dirigiu apenas para atender ao produtor de A Fonte da Donzela, que fez no mesmo ano. É um filme com estrutura e apresentação teatral, onde um ator, folheando um livrão, anuncia que vai contar uma história. A história é a de uma moça (Bibi Andersson) que pretende casar virgem; isso incomoda o Diabo, que convoca Don Juan para vir à Terra e seduzi-la. É, portanto, um conto moralista à moda do século 18 ou 19, e que Bergman narra com mão leve e ágil. Ele evita a farsa, sabendo que não é seu terreno; a história tem charme e leveza em alguns momentos, e em outros mergulha nas angústias existenciais e enigmas metafísicos de que o diretor tanto gosta.

Don Juan está condenado a uma eternidade no inferno: seu tormento é o de todos os dias receber em seus aposentos mulheres desesperadas ou apaixonadas, que ele seduz, mas que desaparecem quando ele consegue levá-las para a cama. Sua vinda à Terra é supervisionada por um Diabo vestido de padre, que se transforma de vez em quando num gato preto. Don Juan traz consigo seu fiel criado Pablo, o qual, enquanto o patrão seduz a mocinha, faz o mesmo com a mãe dela, cujo marido, um pastor bonachão e meio papalvo, hospeda os dois em sua casa sem desconfiar de nada. O melhor do filme de Bergman é que, ao narrar uma historieta tão esquemática quanto um libreto de ópera bufa, trata realisticamente os personagens. Todos são contraditórios. Todos são surpreendentes. Nenhum deles fica ancorado à caricatura, e todos produzem pequenas reviravoltas na narrativa, que de galhofeira fica repentinamente séria, ou vice-versa.

“A pureza de uma mulher é um terçol no olho do Diabo”, diz o provérbio citado na abertura do filme. Bibi Andersson e Gertrud Firdh, que interpretam a mãe e a filha, dão uma riqueza de nuances às suas personagens , que variam o tempo inteiro entre pudicas e oferecidas, vulneráveis e sedutoras. As cenas do Inferno (na verdade um escritório cuja janela dá para o Fogo Eterno) reproduzem o conceito tradicional do Diabo como uma mistura de aristocrata e burocrata. No final, há um diabo-assistente capaz de ouvir à distância (e relatar) os ruídos e as falas da mocinha em sua noite de núpcias. Há outra cena divertida em que Don Juan, antes da viagem, recebe instruções sobre as características da sensualidade das mulheres nórdicas. O Olho do Diabo é também um filme inesperadamente perceptivo sobre a mecânica da sedução.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

2305) O juramento dos mafiosos (28.7.2010)



Meu pai tinha uns amigos que frequentavam nossa casa quando eu era pequeno. De quando em quando parava um carro em frente da nossa casa e desciam uns homens de terno, que já estavam sendo esperados com bebida e salgadinhos ou um jantar, dentro das limitações modestas de uma casa de classe média. Conversavam cheios de bom-humor sobre o tempo, o trânsito, o bairro; falavam de futebol e às vezes de política. Encerrada a parte social, meu pai nos mandava ir para a parte dos fundos da casa e ficava com eles durante mais uma hora, conversando em voz baixa. Depois, iam todos embora. Meu pai me dizia: “Agradeça a eles tudo que você tem, e tudo que você terá um dia”. Quando meu pai morreu, ele pagaram todas as despesas, e um dia me chamaram para uma reunião. O que aconteceu nessa reunião? Não posso dizer, porque antes dela houve um longo ritual em que tive de fazer uma série de promessas irrevogáveis, juras inquebráveis, ao preço da minha vida e da minha alma.

O parágrafo apócrifo acima pode ser o trecho inicial das memórias de qualquer mafioso. Ser membro da Máfia é algo que passa de pai para filho ao longo de gerações. E em toda máfia existe um contrato de adesão que varia muito de país para país, de grupo para grupo, mas que em síntese diz: “Você só deve lealdade a nós, não deve lealdade ao governo, nem à igreja, nem aos partidos, nem ao exército, nem ao povo, nem a sua família, nem a Deus, nem mesmo a você. Você só deve lealdade a nós”. O cara é livre para dizer que não topa, que não está interessado. Em geral eles dizem: “Então está bem, pode ir embora. Mas, já que você não está conosco, está contra nós. Já que não é nosso escravo, é porque é escravo dos nossos inimigos, e de agora em diante é nosso inimigo também”. Pense numa escolha difícil!

Esses juramentos de fidelidade são exigidos na Máfia, Camorra, Yakuza, máfia chinesa, máfia coreana, etc. A questão é: o sujeito pode se arrepender de ter feito essa jura de silêncio, esse pacto indissolúvel de fidelidade (“omertà”, em italiano)?. Sabemos que esses pactos existem porque alguns indivíduos quebraram o voto e contaram tudo à imprensa ou a polícia. Alguns pagaram com a vida. E já vi relatos em que eles dizem: “Eu não sabia que era um grupo criminoso. Eram os patrões do meu pai. Eu tinha 18 anos. Por que não iria jurar? Só soube depois.”

Isto é interessante porque sempre me lembra o conflito ético de Daniel Ellsberg, o funcionário do Pentágono que surrupiou mil páginas de documentos secretos sobre o Vietnam e os entregou à imprensa anti-Nixon, provocando uma das grandes crises políticas dos EUA. Os liberais norte-americanos o consideram um herói. Eu também. Mas a verdade é que foi um heroísmo a um preço caro: romper o voto de lealdade para com seus empregadores e seus colegas. Se ele era de fato um sujeito ético, isso deve lhe ter sido tão custoso quanto compactuar com a política sórdida do Pentágono. Pense numa decisão difícil.

terça-feira, 27 de julho de 2010

2304) Marlyse Meyer (27.7.2010)



Faleceu dias atrás em São Paulo, aos 85 anos, Marlyse Meyer, grande pesquisadora de literatura e cultura popular. Publicou livros sobre o teatro de Marivaux, as cavalhadas e folguedos do interior do Brasil, os almanaques e lunários, e, principalmente, escreveu talvez as melhores páginas da nossa ensaística sobre o romance de folhetim. Conheci-a muito ligeiramente em pessoa, o bastante para admirar sua elegância, a mesma da sua prosa. São raros os críticos literários capazes de nos contar o desenrolar do seu pensamento crítico como se fosse uma história fascinante que se cria diante dos nossos olhos. Marlyse era assim, através do torneado de suas frases (sempre claras, sempre inteligíveis à primeira leitura), da precisão sutil do seu vocabulário, da finura psicológica das suas conjeturas sobre intenções de um autor e as motivações de um leitor. Sua erudição só nos ocorre a uma segunda leitura.

Folhetim: uma História (Companhia das Letras, 1996) é sua obra de maior peso, e um dos melhores livros de estudos literários que já li, de qualquer país. Digo estudos literários por falta de um termo melhor, porque não se trata de crítica literária no sentido muito específico do termo, da análise dos mecanismos verbais de criação. Marlyse Meyer conta como surgiu o romance folhetim europeu e depois o brasileiro, descreve a cultura da época, compara as mentalidades, faz o censo dos tipos e personagens mais comuns, avalia os estilos, os recursos dramáticos postos em prática pelos autores. Sempre recorrendo a fontes primárias: ela lia de fato todos aqueles livros gigantescos, e mais que isto, comparava as diferentes traduções, diferentes edições, porque lera todas.

Outro livro essencial é um que ela considerava uma espécie de apêndice do Folhetim, reunindo capítulos que foram retirados do primeiro para que ele não ficasse gigantesco. É As mil faces de um herói canalha (UFRJ, 1998), que tem capítulos deliciosos: sobre a relação de Machado de Assis com o famoso folhetim Saint-Clair das Ilhas e outros (Machado tratava o folhetim como os críticos de hoje tratam Paulo Coelho); sobre o “herói canalha” que foi Rocambole, o vilão-tornado-herói de Ponson du Terrail, assunto que ela parecia ter esgotado no livro anterior e ao qual retorna aqui com riqueza de detalhes e de novos ângulos de interpretação; um capítulo saboroso sobre as heroínas “seduzidas e abandonadas” do folhetim clássico, onde ela examina com argúcia e malícia feminina os jogos eróticos e de classe social entre os sedutores e as seduzidas; e assim por diante.

No terreno coberto por Marlyse nestas duas obras podem florescer algumas dúzias de teses de mestrado ou de doutorado sobre essa literatura que foi nos séculos 19 e 20 o que a novela de TV é hoje. Esses pesquisadores futuros fariam muito bem em, de vez em quando, esquecer o assunto e assimilar algo do estilo de Marlyse: uma pessoa que ama os livros lendo e comentando em voz alta as suas descobertas.

domingo, 25 de julho de 2010

2303) A Mulher da Torre (25.7.2010)



Uma enchente do rio tinha destruído há mais de dez anos uma banda inteira de Bom Jesus do Agreste. Ninguém voltou a construir por lá, e o tempo foi esfarelando as ruínas, deixou somente o resto da igrejinha com a torre ainda de pé. A paróquia fez outra igreja num lugar seguro. Muitos anos depois, numa noite estrelada, Antõe Berto, camioneiro, vinha voltando para casa com a mulher quando os dois pensaram ter visto uma luz na torre arruinada. Chegaram perto e viram, lá em cima, através de uma parede caída, uma luz amarela e uma mulher envolta numa espécie de mortalha, olhando para eles. Antõe quase enfarta, a esposa o fez apressar o passo para casa. O filho mais velho saiu à rua de calção, esfregando os olhos, e quando viu a Mulher saiu correndo; com isso, a Mulher sumiu.

Foi vista dias depois por Marco de Zezé, que deu a mesma descrição dela; e depois pelos irmãos Cassimiro; e de pouco a pouco foi vista por todo mundo. Era sempre a mesma coisa: uma noite qualquer, alguém via de longe a luz na Torre, chegava perto, e daí a pouco lá estava a Mulher no meio da luz. Durava poucos minutos, aí a Torre voltava a ficar vazia e escura. Examinaram o local várias vezes, com cuidado, porque a escada não merecia fé, e nada encontraram de estranho. O vigário viu, também, e ficou rezando até a Mulher sumir, o que ele atribuiu à reza, é claro. No dia seguinte subiu lá armado dos sacramentos e fez uma persignação, uma ablução, uma limpeza, tudo que o Rito Romano o autorizava a fazer. Uma semana depois a Mulher da Torre apareceu de novo, como se nada tivesse acontecido.

Mas Nena de Seu Raimundo não conseguia ver a Mulher. Cada vez que ela aparecia, bastava o primeiro alerta (Mizinho, o filho de Antõe Berto, combinou com todo mundo um apito como sinal) e todos corriam para ver a Mulher. Nena era uma moça-velha, irmã da Míriam, dona da locadora. Desde as primeiras noites correu para lá e ficava: “Mas minha gente, vocês tarão doidos? Que mulher? Mulher aonde, pelas caridade?” Todo mundo via menos ela. Gente que vinha de fora viu; velho viu, criança viu, até Seu Cincinato, o ateu da vila, teve que confessar que viu também, mas disse que o nome daquilo era alucinação coletiva. Toda vez que o apito tocava, Nena era a primeira que ia. Todo mundo apontava: “A lá! A lá! Lastaela! Levantou o braço!” Seu Raimundo resmungou que ela precisava de médico. A mãe começou a ralhar com Nena, dizendo, “se é pra fazer a gente passar vergonha, melhor ficar em casa”. Nena não entendia aquilo, passou a chegar por último quando tinha a aparição. Ficava lá atrás do povo, olhando: e a única coisa que via era aquela torre escura, abandonada, e o povo apontando o dedo e rezando. Foi murchando, a pobre da Nena. Parecia um castigo, um olho ruim, um abantêsma pousada na vida da pobre. Definhou e morreu antes do fim do ano. E de quem foi a culpa? Foi da Mulher da Torre, é claro.

sábado, 24 de julho de 2010

2302) Eternas Ondas (24.7.2010)




O que é uma onda, uma nova onda? É o mesmo oceano de sempre, movimentando-se de uma maneira diferente. Na década de 1960, dois movimentos tiveram nomes idênticos.

A Nouvelle Vague francesa foi um movimento de jovens cineastas, reunidos em torno da revista Cahiers du Cinéma, que queriam descartar o pomposo cinema francês de pretensões industriais, realistas, hollywoodianas no mau sentido, e criar um cinema ágil, de câmara na mão, muita improvisação, politicamente próximo à esquerda, e mais devedor dos filmes B do que dos filmes A de Hollywood.

A New Wave britânica foi um movimento de jovens escritores de ficção científica, reunidos em torno da revista New Worlds, que queriam fazer uma fusão entre a literatura de vanguarda da época e a pulp fiction norte-americana. 

O mais interessante é que estes escritores eram provavelmente fãs dos filmes franceses, porque escolheram o termo New Wave como uma referência direta. Era como se dissessem: “Queremos fazer na FC inglesa o que Godard, Truffaut e companhia estão fazendo no cinema da França”.

A Nouvelle Vague era uma tentativa de inseminar o cinema francês (que os jovens críticos do Cahiers consideravam quadrado, artificial, incapaz de falar do momento presente) com a agilidade do cinema norte-americano, seu pragmatismo (contraposto à oratória vazia), sua impudência e amoralidade, seu cinismo juvenil. E fazia isso buscando no filme B norte-americano a vitalidade que o filme A francês não tinha, nem como linguagem, nem como experiência de vida.

A New Wave britânica entrou num vácuo entre as duas ficções científicas cultivadas nas Ilhas: o “scientific romance” tradicional, intelectual e ambicioso (H. G. Wells, Olaf Stapledon, C. S. Lewis, Aldous Huxley, George Orwell, etc.) e a pulp fiction barata, imitada das revistas dos EUA. 

No imenso espaço disponível entre essas duas faixas, surgiu uma literatura consciente das vanguardas lidas na época (Joyce, Samuel Beckett, William Burroughs, os Surrealistas, Kafka, Borges, Herman Hesse, Italo Calvino, etc.) e que pretendia juntar esse experimentalismo formal (e relativismo ideológico, explorando um Universo desconhecido, vazio de valores absolutos, pronto para ser explorado e redefinido) à volúpia narrativa da pulp fiction tradicional, sua imaginação vívida, pululante de arquétipos, mostrando o Inconsciente pessoal e coletivo à flor da página.

Em Paris e Londres, de 1955 em diante, dois grupos de artistas jovens da velha Europa iam buscar na indústria cultural norte-americana (o filme B, os “pulp magazines”) uma vitalidade rústica que lhes faltava, e temperavam essa vitalidade com o intelectualismo de onde provinham – no caso dos cineastas franceses, com tinturas de Marx; no dos escritores britânicos, com mais tinturas de Freud. 

Imagino que até hoje pouca gente estudou em conjunto essas duas Novas Ondas, suas influências recíprocas, seus canais de comunicação. Eis uma boa tese de Mestrado à espera de ser escrita.








sexta-feira, 23 de julho de 2010

2301) Alugue um homem branco (23.7.2010)




Por falta de emprego eu não morro mais! No saite da revista The Atlantic li este artigo de Mitch Moxley, americano que mora em Beijing, a quem ofereceram um emprego de mil dólares por semana numa província chinesa de que nunca tinha ouvido falar, trabalhando para uma empresa norte-americana igualmente desconhecida. Não exigiam experiência prévia (o que era ótimo, pois ele não tinha nenhuma). Exigiam apenas boa aparência e o uso de terno. O artigo de Moxley não é muito longo, e se eu pudesse o transcreveria inteiro aqui, mas prefiro dar o link (http://tinyurl.com/25533zx). Ele explica que o trabalho consistia apenas em viajar, comparecer a reuniões, ler um texto que lhe era entregue, apertar mãos, e sorrir. Tecnicamente, estava contratado como “expert em controle de qualidade”, mas na prática não se tratava disso. Diz ele:

“E foi assim que eu me tornei um falso empresário na China, um trabalho bem lucrativo para migrantes desempregados. Um amigo meu, um norte-americano que trabalha com cinema, era pago para representar uma empresa canadense e ler discursos defendendo o controle de emissões de carbono. Outro sujeito viajou para Xangai para representar o papel de comprador de presentes. Recrutar falsos homens de negócios é uma técnica usada por empresas da China para produzir a imagem de quem tem conexões com o Ocidente. Meu instrutor de chinês, que a princípio ficou de mau humor ao saber quanto eu estava ganhando, colocou assim a questão: -- Pois é, exibir estrangeiros vestindo ternos caros dá credibilidade às empresas”.

Alugar um homem branco para dar credibilidade a uma empresa oriental pode ser considerado racismo? Pode ser considerado uma espécie de prostituição semiótica, ou seja, o sujeito vender a própria imagem para usos inconfessáveis por parte de outrem? Ou o trabalho de Moxley não será apenas um trabalho de ator, interpretando um papel concebido e dirigido pelo grupo que o emprega? Enfim – contratar gente para dar uma boa imagem não é novidade, basta ver a quantidade de mocinhas bonitinhas, todas bem vestidas, que nos recebem em todo tipo de evento por aí. O interessante no caso é que Moxley se apresenta como o que não é: finge ser especialista em algo de que não entende patavina. Mas como é americano, e, mais do que isto, parece americano, ganha mil dólares por semana para ler discursos, apertar mãos e sorrir para fotógrafos.

Dizia Mário Lago: “Eu não quero e não peço, para o meu coração, nada além de uma linda ilusão”. Nosso mundo é feito de aparências, fingimento, fantasias encenadas, espontaneidade coreografada, verdades “fake”. Moxley é tão ator, ou tão pouco ator, quanto os rapazes bonitos e as moças bonitas que aparecem em nossas novelas de TV. Não são atores nem atrizes: fazem o papel de atores e atrizes. São “fake” e não alugam talento, alugam boa aparência, fingem ser atores para uma platéia que não quer ver interpretação, quer ver “pessoas com boa aparência”.



2300) Os Ulisses do mundo inteiro (22.7.2010)



(Joshua Cohen) 

O escritor Joshua Cohen é autor de um romance de 800 páginas intitulado Witz, uma história cheia de trocadilhos em diversas línguas, tendo como tema a lenda do Judeu Errante. Um amigo lhe disse: “Seu livro é o Ulisses judeu”, aludindo ao romance de James Joyce (1921). Cohen ponderou que o próprio livro de Joyce já é o “Ulisses judeu”, além de ser também, claro, o “Ulisses irlandês”. Mas isto o deixou com a pulga atrás da orelha, e ele publicou um artigo no saite The Daily Beast dando um balanço dos “Ulisses” em diferentes culturas, ou seja, o que cada literatura nacional tem de mais parecido, em forma e/ou espírito, com o livrão de Mestre Joyce. 

Ele cita doze livros, dos quais li apenas um, e conheço outros quatro de ouvir falar. 

Começo pelo décimo título de sua lista, que é justamente Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa (1956). Diz Cohen: 

“A intrincada e hipnótica história de Riobaldo, um velho fazendeiro que vive no interior do Brasil. Rosa faz uma evocação dos ritmos da fala, das repetições e dos diferentes registros verbais que torna seu livro um exemplo de ponta no modernismo latino-americano. É também um dos poucos épicos da Modernidade - um movimento nascido na cidade – a abordar as regiões mais remotas e selvagens”. 

Uma descrição interessante, mas para um leitor europeu não dá uma idéia muito clara da imensa complexidade linguística e temática do livro. 

Para Cohen, o “Ulisses britânico” é Mrs. Dalloway de Virginia Woolf (1925), cuja escolha ele justifica assim: 

“É a resposta feminina britânica à masculinidade irlandesa. A narrativa de Woolf segue um dis de junho na vida de Clarice Dalloway enquanto ela organiza uma festa a se realizar naquela noite. O que era externalizado em Joyce – detalhes físicos, ação – é internalizado em Woolf – detalhes mentais, psicologia. Seu livro é um triunfo da voz humana mais profunda”. 

Embora o livro não seja um calhamaço comparável ao de Joyce, a comparação procede, e está bem justificada. 

O “Ulisses alemão” para ele é Berlin Alexanderplatz de Alfred Doblin (1929): 

“Um relato epicamente incessante do ‘demimonde’ de Berlim. Repleto de crimes, prostitutas, uma prostituta assassinada. O obtuso Franz Biberkopf é solto da cadeia e sai para a prisão maior que é a República de Weimar. Doblin, um jornalista, psiquiatra e veterano da I Guerra, germanizou o olho e o ouvido panorâmicos de Joyce para captar a gíria urbana, e assim criou um dos melhores romances de decadência do século”. 

O último título que me é familiar é Adán Buenosayres de Leopoldo Marechal (1948), sobre o qual ele diz: 

“O romance de Marechal acompanha uma fraternidade de aventureiros baseada nos amigos do autor, entre os quais Jorge Luís Borges. Em sete seções centralizadas na formação estética de Adán, um aspirante a poeta, a homenagem a Homero cede lugar à reescritura de Dante, na qual o espanhol da Argentina se torna um brinquedo a ser pervertido e reinventado”.




2299) Orkut e Facebook (21.7.2010)



No princípio era o Orkut, um planeta virtual, onde a humanidade se reunia para jogar conversa fora. Depois veio o Facebook, um dos “saites de relacionamento” que mais crescem no mundo. Há quem diga que é perda de tempo, coisa para adolescentes, para aposentados e outras pessoas de ocupação incerta e não-sabida. Há quem ache que é um Ágora ateniense, um Hyde Park londrino, um local onde cada um pode dizer o que quiser, postar fotos, postar textos, postar links para websaites, postar links para vídeos no YouTube.

Quinze anos atrás, eu próprio consideraria ininteligível o parágrafo acima. Não importa: foi graças ao Orkut e ao Facebook que reencontrei amigos que não via há trinta anos. Não direi que fiz novos amigos, porque uso esta palavra com parcimônia, mas fiz muitos conhecidos, gente legal, boa para trocar idéias, dar dicas, conversar abobrinhas ou coisas interessantes. O Orkut acabou me enchendo o saco pela dificuldade de navegação, era mais de um minuto para trocar de página. Não posso perder tanto tempo assim. Dizem que os jovens gostam de velocidade. Errado: quem gosta (ou pelo menos quem precisa de rapidez) são os velhos, que têm na mente uma contagem regressiva tiquetaqueando sem parar.

O Facebook, como o Orkut, emprega com liberalidade o conceito de “amigos”. A sua página anuncia: “Você tem 1.134 amigos”! É curioso, porque certamente nunca vi mais gordas 99% dessas pessoas. Amizade virtual pe um novo conceito antropológico. Li uma vez num almanaque que a gente devia ter um amigo verdadeiro por ano de vida. Como não tenho 1.134 anos, só me resta supor que os demais não são propriamente amigos, são simpatizantes, pessoas que ouviram falar de mim e querem ver as coisas que eu prego no meu mural. (Esta, amigos, é a definição da amizade facebookiana: pessoas que se dão o trabalho de querer saber o que você está pensando agora.)

Quando entrei no Orkut, temi que fosse uma complicada conspiração destinada a um dia me envolver com traficantes de órgãos ou viciados em drogas, provando que eles eram “meus amigos no Orkut”. Duas conversas e dois dedos de bom-senso me convenceram do contrário. Do modo virótico com que essas amizades se propagam, não há tempo para cada um saber o que os demais andam aprontando. Seriam necessárias evidências de outro tipo; já que não existem, relaxemos.

Facebook e Orkut são uma imensa “pesquisa do Ibope” destinada a ter – quando alguém precisar – um “perfil do consumidor” completo a respeito de cada um dos 500 milhões de indivíduos que os compõem. Que filmes veem, que livros leem, que músicas escutam, que links distribuem entre os “amigos”, que nomes próprios são mais citados em seus posts, que websaites visitam, quanto tempo livre têm para jogar Farmville ou outras bobagens. Que bom que o Facebook existe num mundo ocidental e democrático, porque no dia em que todas essas informações caírem nas mãos de um (digamos) Stálin ou Mao-Tse-Tung, eu não quero nem sentir o cheiro.

2298) “Recife Frio” (20.7.2010)



Este curta-metragem de Kléber Mendonça é um ótimo exemplar do “cinema brasileiro” de “ficção científica”, ou seja, é filho de um pai eternamente na pindaíba e de uma mãe estrangeira que ainda não obteve cidadania. Com cerca de 15 minutos, é um documentário fictício, narrado quase todo em espanhol por um repórter de alguma TV latino-americana que faz a cobertura de um fato inusitado. Depois da queda de um meteorito numa praia, a região litorânea de Pernambuco, em volta do Recife, sofre um fenômeno meteorológico inexplicável. Por cima dela instala-se uma camada de nuvens pesadíssimas, fazendo a temperatura cair a cerca de 5 a 10 graus, e provocando chuvas constantes. De cidade tropical, Recife passa a ser uma cidade que lembra a Suíça no inverno: chuva, neve, gelo, gente encapotada.

A idéia é interessante e bem realizada, porque nos letreiros finais ficamos sabendo que o diretor filmou cenas em cidades de vários países, e depois montou essas cenas com outras filmadas no Recife, dando a impressão de que tudo se passa ali. Não há como não rir e não se emocionar com a imagem final de Lia de Itamaracá toda agasalhada, de cachecol e luvas, comandando um grupo de 15 pessoas numa ciranda, numa praia vazia e congelada.

O pseudo-documentário aborda o tema de vários ângulos, inclusive da cultura popular. Uma dupla de emboladores de coco, encapotados e friorentos, descreve em versos o sofrimento dos pernambucanos, desacostumados àquelas temperaturas. Lojas de artesanato mostram bonecos de barro reproduzindo gente cheia de agasalhos, xales, luvas, gorros e toucas, para se protegerem do frio. Nas ruas, céu cinzento e chuva constante. Nas praias, crise econômica dos bares e das pousadas que ficam vazias de turistas, pois o sol deixou de aparecer. Nos apartamentos de classe média, todo mundo briga pra dormir no quarto de empregada, o lugar mais quente da casa.

O filme não dá explicações científicas sobre o que aconteceu, mas constrói uma ambientação bem urdida misturando cenas reais e situações encenadas, o que acaba tornando plausível a situação. Mais do que saber por que ocorreu aquilo, ficamos interessados em ver como as pessoas se adaptam à situação e tentam tocar suas vidas. Por coincidência, vi este filme quando estava lendo 50 Degrees Below de Kim Stanley Robinson, em que ele descreve uma situação semelhante em Washington, quando a temperatura cai bruscamente devido à conjunção de fatores ambientais, congelando os rios e lagos e prendendo todo mundo em casa. O que ocorre no filme de Kléber não é tão improvável assim, se bem que mais provável ainda, em termos de catástrofe, seja a invasão do Recife (e outras cidades litorâneas) pelo mar, criando um ambiente como o da Manhattan semi-submersa mostrada por Spielberg em Inteligência Artificial. Enquanto isso, o filme de Kléber Mendonça mostra que não precisamos de orçamentos spielberguianos para fazer cinema de ficção científica. Basta criatividade.

2297) Futebol e pensamento mágico (18.7.2010)



Uma Copa do Mundo sempre traz de volta a qualquer torcedor uma reincidência do pensamento mágico. Como dizia Freud em O Estranho, somos ainda vítimas da concepção animista do Universo, de que o Universo não apenas pensa mas é também capaz de ler os meus pensamentos, e, melhor ainda, obedecer a eles. Freud chama a isto “a supervalorização narcisista dos próprios processos mentais”, gerando a idéia de que o Universo obedece aos meus desejos. Ele pode de início ser recalcitrante, resiste um pouco, etc., mas se eu for persistente e enérgico acabarei dobrando-o à minha vontade.

Nada como o clima vertiginosamente irracional de um jogo de futebol para fazer idéias desse tipo despertarem em nossa mente com toda a força pré-histórica de algo que foi enterrado sem estar morto. Por exemplo: houve uma época em que durante um jogo do Brasil eu ia ao banheiro de cinco em cinco minutos, porque no primeiro jogo da Copa, que estava emperrado num 0x0, o gol só saiu quando eu saí da sala para “tirar água do joelho”. Daí em diante, cada vez que o Brasil pegava na bola eu corria para o WC. Nada acontecia e eu achava que estava faltando realismo. Passava a tomar latas e mais latas de cerveja para que o ritual fosse cumprido à risca. A incidência estatística de minhas idas ao banheiro era tal que, uma ou outra vez, acabava coincidindo com outro gol, o que me dava a certeza científica do processo.

A certeza científica muitas vezes é fundada em coincidências, mas coincidências tão precisas que justificam uma tomada de posição. Se cada vez que minhas juntas doem acontece chuva pouco tempo depois, quem me impede de considerar que existe uma relação de causa e efeito embutida nesse processo? Não digo que a dor das juntas seja causa da chuva; basta-me supor que alguma ocorrência barométrica produz os dois fenômenos. Já falei aqui sobre o vício filosófico apelidado de “postoquismo”, o que se baseia na frase “post hoc, ergo propter hoc” – “se aconteceu depois disso, aconteceu por causa disso”. Dois fatos que se sucedem, mesmo que se sucedam várias vezes, não criam necessariamente uma relação causal. No futebol, um exemplo clássico é o de Carlito Rocha, folclórico diretor do Botafogo do Rio, e extremamente supersticioso. Um dia, pouco antes de um jogo decisivo, Carlito estava no vestiário do time e viu um jogador fazer xixi acidentalmente na perna do outro, quando estavam de pé no mictório. Como a “vítima” acabou fazendo nesse dia o gol da vitória, Carlito exigiu que todas as vezes o ritual do xixi fosse repetido. Postoquismo puro. Se o fato ocorre com um goleador de verdade, cada nova ocorrência serve de prova para o pensamento mágico de Carlito.

Um dos mandamentos do pensamento mágico é: não anuncie o que vai fazer, se não dá azar. Preocupado com meus rituais supersticiosos, deixei para publicar esta coluna depois da Copa, porque se a tivesse publicado antes corria o risco do Brasil não ganhar o hexa.

2296) A máquina e a droga (17.7.2010)




Podemos dizer que existe gente viciada em computador do mesmo jeito que falamos em gente viciada em cocaína? Será que o uso compulsivo do automóvel tem algo a ver com o uso compulsivo do cigarro? A necessidade de ter uma televisão ligada o tempo todo dentro de casa pode ser comparada à necessidade de tomar um drinque a toda hora? 

Pergunto porque estes são comportamentos que observo o tempo inteiro nos outros ou em mim, e os observo sem preconceito ou repulsa, apenas constato que para certas pessoas algumas das coisas acima são imprescindíveis, e para outras não.

George Orwell afirmou certa vez: 

“As máquinas têm que ser aceitas, mas provavelmente é melhor aceitá-las do mesmo modo como aceitamos um remédio, ou seja, resmungando, e com alguma desconfiança. Assim como um remédio, uma máquina é uma coisa útil, mas é perigosa, e tende a estabelecer uma dependência. Quanto mais vezes recorremos a elas maior o poder que adquirem sobre nós”. 

Tudo que se torna indispensável é perigoso.

O celular, por exemplo, este bravo símbolo do século 21, tornou-se indispensável para muita gente – para mim, pelo menos, que tanto relutei em comprar um. Não adianta vir alguém me dizer: “Ora, e como você resolvia as coisas quando não existia celular?”. É uma pergunta sem sentido. É o mesmo que eu dizer que sou feliz sendo adulto e alguém perguntar se não era feliz quando vivia de fraldas dentro de um berço. Provavelmente era, mas nem por todo o Leite Ninho do mundo eu trocaria minha vida atual por aquela. 

As verdadeiras transformações são irreversíveis. Morreu. Cabô. Aquele tempo, tchau. Sem celular eu sou apenas um ser unicelular, uma ameba abobalhada e muda.

A distinção entre dependência-da-máquina e dependência-da-droga é acima de tudo de ordem moral. Irritamo-nos com quem depende da Internet, do carro, do telefone; mas não sentimos uma repulsa instintiva por essas pessoas. Por outro lado, quando ficamos sabendo que Fulano de Tal usa drogas continuamente, várias vezes por dia, e se ficar sem usá-las perde o controle, não apenas nos preocupamos pela sorte de Fulano, mas passamos a vê-lo como alguém inferior, corrompido, digno não só de pena mas também de desprezo. 

Talvez porque a droga esteja historicamente associada ao submundo, exploração de pessoas indefesas, chantagens obrigando os viciados a cometer atos inomináveis para obter a próxima dose. 

Como a tecnologia de celulares e internets não apenas não é proibida, mas é fortemente incentivada (eu quase diria: imposta goela abaixo), fica mais fácil passar a mão na cabeça dos que pela manhã ligam o computador antes mesmo de escovar os dentes.

A diferença principal é que a droga produz dependência psicológica ou química, e as máquinas produzem dependência psicológica e social. Criamos uma nova forma de conviver através das máquinas e por alguma razão ela nos satisfaz a ponto de não podermos mais conviver sem elas.






quarta-feira, 21 de julho de 2010

2295) Dona Militana (16.7.2010)



Faleceu no mês passado, no Rio Grande do Norte, uma mulher de 85 anos considerada por muita gente a maior romanceira do Brasil. “O que diabo é romanceira?”, pergunta o Brasil, este país que vive a perguntar e responder a si próprio. E responde: Romanceira é uma mulher que recita de cor romances em versos com séculos de idade, romances cujo autor ninguém sabe nem precisa saber (um conceito bastante pós-moderno de literatura), romances que ela aprendeu na infância ao ouvi-los recitados por uma outra romanceira de 80-e-tantos anos cujo nome, infelizmente, não ficou registrado. E talvez não fosse preciso.

A cultura oral brasileira é feita assim, por pessoas sem rosto e sem nome, mas que passam adiante uma tradição. Comparada à imensa maioria das nossas romanceiras, Dona Militana Salustiano é uma Madonna. Gravou um CD triplo acompanhada por artistas variados (de Gereba a Antonio Nóbrega), recitou em teatros pelo Brasil afora (vi-a ao vivo uma única vez, em São Paulo, no SESC Pompéia), foi louvada na imprensa. Que bom. Através dela foi exibida e louvada uma multidão indistinta de velhinhas com dicção precária e memória inquieta, capazes de recitar sem pausa um romance de centenas de versos, salmodiados numa cantiga monocórdia igualmente sem autor conhecido.

Essas velhas romanceiras são personagens de uma história de ficção científica brasileira, versão oblíqua do romance Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, filmado por François Truffaut. Nesse livro-filme, uma sociedade futura, totalitária, proíbe os livros e obriga todo mundo a assistir TV interativa. A população emburrece; os dissidentes são rastreados pelos bombeiros (uma espécie de polícia secreta) que incineram os livros guardados clandestinamente. Os dissidentes encontram um recurso: passam a guardá-los na memória. Cada pessoa decora um livro, e antes de morrer recita-o em voz alta para alguém jovem que se encarregará de manter viva a obra desse autor (Tolstoi, Jane, Austen, Balzac, etc.).

Dona Militana viveu numa sociedade em que o romance tradicional não era proibido, mas era menoscabado. A censura que sofreu não foi a da perseguição, mas a do desdém. Os romances que sabia de cor não eram considerados subversivos, eram considerados “coisa de gente velha, de gente pobre”. Velha e pobre como realmente foi, ela se sabia depositária de um tesouro, que protegia não por seu valor teórico, mas pelo valor afetivo que lhe atribuiu, de tão ligado que estava às suas memórias mais remotas de menina.

O CD Cantares, produzido pela Fundação Hélio Galvão, de Natal, teve uma tiragem de mil exemplares (já esgotada). Tem 52 faixas, o que parece muito até para um disco de Madonna, mas talvez seja pouco diante dos 800 romances que Dona Militana, ao que se diz, sabia de cor. Que imenso acervo se perdeu, pensamos. Ou talvez não. Sendo o Brasil o que é, quem nos garante que não existam mais dez, mais cem Donas Militanas nas filas do SUS de nossas cidades?

2294) O ser humano segundo Heinlein (15.7.2010)



Foi um dos momentos mais constrangedores da minha biografia. Eu era um dos palestrantes numa mesa redonda, num teatro repleto de gente. Estava sentado na primeira fila, e os palestrantes eram chamados de um em um para subirem ao palco. Quando chegou minha vez, o apresentador, que era meu amigo e meu fã, disse algo como:

“E agora temos o prazer de chamar ao palco este indivíduo talentoso que orgulha a Paraíba: o escritor, poeta, jornalista, pesquisador, folclorista, ator, cantor, músico, compositor, roteirista e teatrólogo Braulio Tavares!” 

Tive que subir embaixo de uma gargalhada geral e estrondosa, porque o público captou de imediato o absurdo da coisa.

Desde esse dia, sempre que participo de algo peço para ser identificado como ”escritor e compositor”, e fim de papo. Se tem uma coisa que eu aprendi na vida é que fazer muitas coisas diferentes não produz uma impressão de competência, e sim de desorientação. O “homem dos 7 instrumentos” geralmente não toca bem nenhum deles.

Portanto, quando me cabe apresentar alguém, ao vivo ou por escrito, e me dão um papelucho dizendo que o sujeito é “escritor, romancista, poeta, jornalista e ensaísta”, deixo “escritor” e risco o resto, porque para mim já está tudo contido no primeiro termo.

E que sentido tem dizer que Fulano de Tal é “compositor, músico, instrumentista e arranjador”? Basta chamá-lo de músico. Se ele vai dar uma palestra sobre a arte do arranjo, aí sim, podemos dizer: “músico e arranjador”. E assim por diante.

Sempre existe uma categoria geral que engloba as outras e salva o indivíduo (o indivíduo sensato) de passar por um vexame.

As atividades artístico-culturais me parecem todas muito próximas. Não vejo um mérito especial no fato de Fulano ser ator, dramaturgo e diretor teatral. Ninguém é obrigado a saber fazer tudo, mas se alguém o faz, isto é normal. O ser humano deveria ser múltiplo, mas num sentido muito mais amplo. 

Se existe algum problema na literatura brasileira é o fato de que a esmagadora maioria dos nossos escritores consta de funcionários públicos, jornalistas, professores e outras profissões de gabinete. Nelson Rodrigues se queixava de que em nossa literatura não há um único personagem que saiba bater um escanteio, e eu completaria: nem um escritor.

Por isso, a definição ideal de um ser humano é a que foi fornecida por Robert Heinlein:

“Um ser humano deveria ser alguém capaz de trocar uma fralda, planejar uma invasão, esquartejar um porco, pilotar uma nave, projetar um prédio, escrever um soneto, fazer um balanço contábil, erguer um muro, consertar um osso fraturado, consolar um moribundo, obedecer ordens, dar ordens, cooperar, agir sozinho, resolver uma equação, analisar um problema novo, espalhar estrume num terreno, programar um computador, cozinhar uma boa refeição, brigar com eficiência, morrer com elegância. Especialização é para os insetos.” 

Precisa dizer mais?





2293) Auto-ajuda e otimismo (14.7.2010)



Alguém consegue imaginar uma prateleira cheia de livros de auto-ajuda escritos por autores russos? Eu não consigo. O espírito russo, para mim, é algo próximo da tragédia, da crise existencial, do pessimismo cósmico. Filósofos pessimistas parecem algo essencial à alma eslava, talvez pela proximidade da Sibéria, talvez pelo fato de viverem num inverno eterno, o que é meio caminho andado para o inferno, por mera assonância. Quando pensamos em Rússia, pensamos em vastas tragédias coletivas como Guerra e Paz ou em intensas tragédias pessoais como Os Irmãos Karamazov. Não haverá nenhum escritor, nenhum poeta russo que celebre a alegria de viver? Talvez Maiakóvski, com sua camisa amarela, sua poética expansiva, a plenos pulmões. Mas, não... Maiakóvski suicidou-se.

O livro de auto-ajuda é algo próximo, isso sim, da mentalidade norte-americana. O americano tem uma crença inabalável na alegria de viver. Foi a civilização americana que inventou o otimismo. Antes dela, as coisas boas só aconteciam por exclusão, quando as coisas ruins davam chabu. O americano médio pode até ser ateu, pode até não acreditar em Cristo ou num Deus qualquer; mas ele acredita no trabalho, na esperança, acredita que tudo vai dar certo a curto, a médio ou a longo prazo. Fernando Sabino teve um momento totalmente californiano quando disse sua famosa frase: “No fim tudo dá certo. Se ainda não tá dando certo, é porque ainda não chegou no fim”.

O livro de auto-ajuda, que tanto sucesso faz, é uma invenção tão norte-americana quando a gilete ou o hot-dog. O norte-americano crê, com uma intensidade admirável, que haverá um retorno positivo para os seus esforços. Caso você lhe diga que Deus não existe, ele sorri, dá-lhe um tapinha nas costas e diz que acredita na liberdade de crença. Mas se você disser que é pessimista e que o esforço humano no planeta Terra está condenado ao fracasso, ele foge às carreiras, apavorado, como se você estivesse fervilhante de vírus contagiosos e mortais. Se brincar ele pula pela janela mais próxima, mesmo que esteja num décimo andar (ele acredita que vai cair num toldo, como os personagens dos filmes).

Todo este arrazoado é para dizer que a maior contribuição da cultura norte-americana para a civilização não foram a gilete, o hot-dog nem o cinema, foi o Otimismo. Até o final do século 19, que foi quando os EUA começaram a se aprumar como nação, o mundo era uma paisagem de El Greco descrita por Kierkegaard. As coisas aconteciam, havia alegria e festas, mas essas coisas eram consideradas pausas entre cataclismos. A civilização norte-americana, com sua mentalidade prática, pés-no-chão, voltada para resultados positivos e imediatos, trouxe para o ser humano uma nova razão para viver. Os livros de auto-ajuda cumprem essa função importantíssima. Não, não estou sendo irônico. Livro de auto-ajuda não tem nada a ver com literatura. Deveríamos guardá-los na mesma prateleira dos analgésicos e dos antibióticos.

terça-feira, 20 de julho de 2010

2292) Espanha campeã (13.7.2010)



(foto: Dani Pozo)

A Espanha tornou-se campeã do mundo num jogo que não chegou a ser um dos melhores da Copa (a final raramente o é). Um fã do futebol, independentemente do time por que torce, gosta de ver acima de tudo um grande jogo, de futebol bonito, com um resultado justo no final. Às vezes um grande jogo não tem um futebol bonito. Torna-se grande pelos seus contornos trágicos ou dramáticos, pelo conflito humano que se desenrola em campo, pelas alternativas que em questão de minutos levam uma equipe do céu ao inferno. O jogo em si pode ser um bumba-meu-boi de chutões e trombadas, mas torna-se grande pela emoção que provoca.

Espanha 1x0 Holanda ficou num meio termo. Não teve a dramaticidade da disputa pelo 3o. lugar, em que a Alemanha venceu o valente Uruguai por 3x2, com duas viradas no placar e bola na trave no derradeiro lance. Se a história dessa partida tivesse ocorrido entre espanhóis e holandeses, aí sim, teria sido uma das maiores finais de todos os tempos. O que houve no domingo foi um jogo disputado, mas num 0x0 que se prolongou até os 117 minutos. Não que os times não criassem chances. Pelas oportunidades que tiveram, poderia perfeitamente ter sido um jogo de 2x2, decidido com um gol na prorrogação. Refletiria melhor o que foi realizado em campo, e seria um prêmio para o esforço dos dois. A vitória espanhola foi justa, porque a Holanda desolandizou-se, recuou, ficou descendo o sarrafo (fez algumas faltas desclassificantes, que nunca vi numa final de Copa) e esperando o contra-ataque. Sou fã histórico da Holanda, mas este time, francamente, não mereceu ganhar, e felizmente não ganhou.

Ganhou a Espanha, que tem um talento enorme para envolver taticamente o adversário no jogo coletivo, e superá-lo tecnicamente nas disputas individuais; mas tem dificuldade para liquidar a partida. Fica como um toureiro que passa a tarde cravando bandarilhas no touro e não puxa a espada. A Holanda teve dois lances isolados de Robben frente a frente com Casillas; o goleiro e a Justiça Divina prevaleceram. Seria um castigo imerecido o time espanhol perder um jogo como esse nos pés de um jogador que não é craque (é apenas um bom jogador como vimos dezenas nesta Copa), e é um jogador cai-cai, que em vez de decidir a jogada prefere sofrer a falta e passar a responsabilidade para um companheiro. Não gosto de jogador assim.

Iniesta, que não é goleador mas é craque, fez uma partida como altos e baixos mas acabou sendo o autor do gol do título. A Espanha jogou com coração e fibra, com talento e calma; não perdeu a cabeça nem nos momentos mais difíceis. Não foi um grande jogo; não deve ter sido um dos dez melhores jogos da Copa. Mas teve o desenho épico de uma final, em que cada chance perdido, cada defesa, cada lance decisivo é ampliado um bilhão de vezes pelas lentes ciclópicas da mídia. É bonito a gente poder sentar no sofá e ver ao vivo um capítulo da História acontecer diante de nós. Eu vi e gostei. Arriba, España!

2291) Espanha x Holanda (11.7.2010)



(foto: Monirul Bhuiyan)

Chega ao fim a Copa do Mundo com um encontro que, sem ser improvável, não é certamente o que a maioria das pessoas estaria imaginando. Eram tantas as alternativas: Itália, França, Brasil, Argentina, Alemanha, Inglaterra... Os habituais suspeitos. A verdade é que existe no futebol o que os coleguinhas chamam “o seleto clube dos campeões”, e que são justamente estas seis seleções acima, eternas candidatas, mais o Uruguai, que é campeão também, embora nunca mais tenha ameaçado. Oooops... Pois não é que este ano los orientales, com Loco Abreu, “cavadinha” e tudo, botaram todo mundo no bolso, inclusive nós, e ficaram entre os finalistas? Dou meus parabéns a todos os uruguaios, na pessoa do escritor Eduardo Galeano, um dos poucos literatos que já escreveram coisas inteligentes sobre “el fútbol”.

O Uruguai foi uma das boas surpresas desta Copa, nem tanto pelo grande futebol, mas pela façanha. Até o Paraguai acabou saindo com uma relação custo-benefício melhor do que a nossa. A Argentina viveu um melodrama operístico nas mãos do Loco Maradona, indo do êxtase à catástrofe numa volta do ponteiro grande. Foi tão repentina a reviravolta que o time foi recebido com festa em Buenos Aires. Ficaram tão zonzos que estão achando que ganharam a Copa. Já o Chile fez uma campanha honrosa, nas mãos de outro Loco, o Bielsa. Pois é. Acho que foi isso que faltou ao Brasil: um doido. Temos bons técnicos, mas o que lhes falta é um grão de loucura.

Enfim – Holanda e Espanha estão, até a tarde de hoje, vivendo aquele Limbo Paradisíaco da pré-decisão, quando todos os nossos sonhos estão ao alcance da mão. Um dos dois será campeão pela primeira vez; o outro dará pela enésima vez com a cara na porta e voltará para casa em pleno “complexo de viralata”. Já falei aqui que a Copa do Mundo deve um título à Holanda, pelos seus muitos e belos serviços prestados à arte do futebol. Torci pelos holandeses nas finais de 1974 e 1978, apenas para vê-los sendo derrotados pelos donos da casa (Alemanha e Argentina). Ironicamente, na terceira vez em que chegam à decisão, torcerei pelo outro. Gosto do futebol da Espanha, que, ao longo da Copa, foi ficando cada vez mais parecido com o futebol do Barcelona, que para mim é o melhor time do mundo no momento. Puyol, Piquet, Iniesta e Xavi são uma espinha dorsal capaz de sustentar qualquer equipe. A única coisa que faz falta à Espanha é... Lionel Messi.

O time da Holanda é um time correto, todos jogam bem, mas é uma seleção sem o rock-and-roll que tinha na década de 1970. Fiquei meio atravessado com eles pelo modo como ganharam do Brasil, vencendo mais pelos nossos defeitos do que por terem exibido um grande futebol. Não importa,. Hoje tem jogão! Gosto de decisões como a de hoje porque, mesmo tendo preferência, na verdade não torço por ninguém: torço pelo futebol. Quero ver um grande jogo, com grandes jogadas e grandes gols. E se vencer o melhor, pra mim valeu.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

2290) Deterioração do caráter (10.7.2010)



Parece que há uma epidemia em curso no Ocidente, de achar que “o mundo não é mais o mesmo”, “as novas gerações se comportam de uma maneira que, no meu tempo, seria inadmissível” e assim por diante. Será verdade? Eu, pelo menos, acho; e vivo a repetir essas frases, mas repito-as com a consciência de que são o karma que cabe a cada geração de ex-candidatos a revolucionários. Os contestadores de hoje (cabelo moicano, tatuagens, promiscuidade, drogas) dirão daqui a 30 anos: “Esses jovens de hoje não têm noção de valores!”. E la nave va.

Li na Web (http://www.city-journal.org/2008/18_4_otbie-british_character.html) um artigo assinado por um gentleman com o irresistível nome de Theodore Dalrymple (que a revista informa ser médico, e autor do livro Not With a Bang But a Whimper) em que ele fundamenta críticas desse tipo com algumas argutas observações sobre o ser humano e as civilizações de língua inglesa. Teríamos muito a aprender com a decadência britânica, porque parece que todas as decadências se assemelham.

Mr. Dalrymple fala que sua mãe chegou à Inglaterra fugindo da Alemanha nazista e se encantou com os ingleses, com seu caráter, seu modo de ser. Diz ele: “Os britânicos lhe pareceram indivíduos centrados, controlados, respeitadores da lei, e ao mesmo tempo tolerantes com outras pessoas, por mais excêntricas que fossem, e com uma visão profundamente irônica da vida, que os encorajava a rir de si mesmos e a perceber sua própria desimportância no universo. (...) Eram polidos e atenciosos, em vez de intrometidos e presunçosos; os que eram seguros de si procuravam não humilhar os tímidos ou retraídos; e mesmo os mais bem-sucedidos tinham consciência de que seu sucesso era uma mera gota dágua num oceano de possibilidades, e bem que poderia ser ainda maior se eles tivessem se esforçado um pouco mais ou tivessem mais talento”.

Não sei se os ingleses são assim, mas se alguém é assim eu bato palmas. Mr. Dalrymple observa mais adiante que um inglês deve ser o único indivíduo que, quando alguém pisa no seu pé, ele pede desculpas. Mas ele registra com dissabor que “a cultura e o caráter dessa contenção tipicamente britânica transformou-se no seu contrário. Atitudes extravagantes, veemência de expressão, o hábito de se vangloriar, de se exibir, ausência de qualquer tipo de inibição... é isto que temos que admirar hoje, e a antiga modéstia é objeto de escárnio”.

Nada disto tem a ver com o Brasil, não é mesmo? Eu, pelo menos, acho que não. Ademais, essas coisas geralmente se manifestam em movimentos pendulares – numa hora vão na direção de Mais Bagunça, aí quando a coisa está bagunçada demais começa um movimento na direção de Mais Disciplina, que acaba por se tornar insuportável, e aí lá vem a Mais Bagunça de novo... Enfim, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, como dizia Camões. Mas algo me diz que, se bem que o Brasil tenha esperanças, o império britânico (infelizmente) nunca mais será o mesmo.

2289) “Casamento do Céu e do Inferno” (9.7.2010)



(Drummond, por Portinari)

O terceiro poema de Alguma Poesia (1930), livro de estréia de Carlos Drummond, é uma espécie de grão original de onde brotarão inúmeros outros, expandindo o primeiro, contradizendo-o, questionando-o, desmentindo-o, aprofundando-o. Drummond tinha uma amplitude temática impressionante, mas, como todo poeta que vai fundo, circula reiteradamente por entre um número finito de situações. Este “Casamento” (que no título ironiza William Blake e sua visão grandiosa do choque entre o Sagrado e o Profano) faz parte das primeiras investidas modernistas contra a moral pequeno-burguesa e a noção do amor romântico, que justifica essa moral e lhe doura a pílula. Nos versos iniciais, termos como “azul de metileno” e “diurética” cortam de cara qualquer possibilidade de romantismo açucarado (uma terminologia plebéia que lembra Augusto dos Anjos).

CDA contrapõe o jeitão meio atabalhoado dos defensores da pureza ao dos semeadores do pecado. De um lado, os anjos, que se limitam (como a mãe do poeta, no poema anterior, “Infância”) a espantar mosquitos dos cortinados das lolitas, e São Pedro, que dorme. Do outro, o Diabo modernista, armado de luneta. Drummond satiriza a poesia parnasiana de Bilac, que dizia, em “Virgens Mortas”: “Quando uma virgem morre, uma estrela aparece, / nova, no velho engaste azul do firmamento”. Drummond afiança: “...diz-se que tem virgens tresmalhadas, incorporadas à via-látea, vagalumeando...” E se Drummond avisa que o Diabo tem um “olho torto” e espreita tudo “por uma frincha”, ecoa também Bilac no mesmo soneto, quando faz aos namorados uma advertência pudica: “Piedade! Elas veem tudo entre as moitas escuras...” Drummond iguala as virgens mortas e o Diabo no mesmo voyeurismo sacana.

Drummond fala que o mundo está cheio de suspiros de “bocas machucadas”, e que “os corpos enrolados / ficam mais enrolados ainda / e a carne penetra na carne”. Imagino que na época este verso terá causado um ligeiro escândalo. Bilac, um dos mais sensuais dos nossos poetas, usava imagens assim, mas as usava envoltas nos véus de musselina da mitologia grega ou outro maneirismo aparentado. Drummond, em seus versos sem métrica nem rima, diz a coisa com o nome da coisa e o leitor não consegue ver naquilo outra coisa senão a coisa.

A estrofe final é de uma sem-cerimônia libertária: “Que a vontade de Deus se cumpra! / Tirante Laura e talvez Beatriz, / o resto vai para o inferno”. A citação às musas de Petrarca e de Dante Alighieri manda a pureza de volta para a Idade Média. Nos tempos modernos, parece dizer o poeta, toda mulher só pensa mesmo naquilo, então, fazer o quê? E que saborosa ambiguidade a desse ótimo “Que a vontade de Deus se cumpra!” Ou seja, se o mundo está entrando numa época de “liberou geral” é porque Deus quis. O poeta diz uma frase de velhinha cristã fazendo o pelo-sinal, mas a diz num tom de quem esfrega as mãos satisfeito e olha o mundo com um olho... ousarei dizer que “torto”?

2288) “Rede de Intrigas” (8.7.2010)



Este filme magnífico de Sidney Lumet (Network, 1976) é um dos ataques mais devastadores já feitos pelo cinema à televisão. Esta guerra entre cinema e TV vem há muitos anos, e o mais interessante é que não importa por qual dos dois a gente torça: cada crítica que um faz ao outro nos parece inteiramente justificada. Lumet é um diretor competente, um desses mestres do cinemão realista tradicional, autor de filmes que admiro muito (O Homem do Prego, A Colina dos Homens Perdidos, Assassinato no Orient Express, Um Dia de Cão, etc.). Ele contou aqui com um roteiro devastador de Paddy Chayefsky, que ganhou os principais prêmios nesse ano: Oscar, Globo de Ouro, Los Angeles Film Critics, New York Film Critics e Writers Guild. Não digo isto por ser deslumbrado com prêmios (na maioria dos casos são bobagens), mas porque parece que todo mundo nos EUA, naquele momento, estava ansioso por alguém que mostrasse o que a TV andava fazendo naquele país. Chayefsky veio e mostrou. Mostrou tão bem que um filme de 35 anos atrás parece ter sido feito para analisar a TV de hoje, com seu sensacionalismo, sua amoralidade, seu concubinato com o grande capital, seus “irreality shows”, sua capacidade de transformar em dinheiro tudo que toca.

Lumet é um diretor com um veio teatral forte, e costuma extrair boas interpretações dos seus atores. Deste filme, cinco foram indicados ao Oscar, e três ganharam (Faye Dunaway, Peter Finch e Beatrice Straight). Grande parte do poder de convencimento do filme se deve a essas interpretações. Além destes citados, William Holden, Ned Beatty e Robert Duvall estão excelentes e dão extrema credibilidade às brigas dos executivos de uma emissora mediana, comprada por um grande conglomerado financeiro, que de repente começa a fazer sucesso quando o âncora (Peter Finch) de seu principal telejornal – uma espécie de Cid Moreira ou William Bonner – entra num surto psicótico e torna-se uma espécie de guru alucinado que verbaliza de forma incoerente a insatisfação do público.

Ned Beatty disse uma vez: “Nunca recuse nenhum papel. Trabalhei somente um dia em Rede de Intrigas e fui indicado para um Oscar”. A cena em que ele usa o mesmo tom messiânico do personagem de Peter Finch para explicar a este o que é globalização e capitalismo multinacional é antológica. Network deveria ser exibido em todos os nossos pretensos Cursos de Comunicação, que ensinam tanto beabá de clichês. A maior parte das pessoas que faz televisão não tem idéia do que é a televisão. Stanislaw Ponte Preta batizou a TV de “máquina de fazer doidos” e todo mundo pensou que ele se referia ao público. Não era. Estava falando das pessoas que fazem televisão. Para quem assiste é um ópio, ajuda a relaxar e a dormir para enfrentar o batente do dia seguinte. Para quem a faz, é uma cocaína. Basta ver este filme de Lumet, onde não há um só personagem que não esteja rilhando os dentes o tempo todo.

2287) Nem Deus nem a Ciência (7.7.2010)



(Raimundo Carrero)

O escritor Raimundo Carrero, que é um católico penitente, sofrido, dostoievskiano, declarou numa entrevista: “O homem moderno não acredita em Deus, e, mais gravemente, tem orgulho de dizer que não acredita em Deus. E não acredita na Ciência. Está fazendo as maiores loucuras com a Terra, e não acredita também no Espírito da Terra”. É uma boa maneira de colocar o problema da catástrofe ambiental generalizada que estamos começando a vivenciar, porque para alguns este estado de coisas se deve à Ciência, ou melhor, ao poder que a Ciência adquiriu no mundo, desbancando a Religião. Para mim, não é nada disso.

Fala-se que é a Ciência que está destruindo o mundo, e que o grande mal do Homem Moderno é o excesso de racionalidade, de lógica. Peço licença para discordar. Ciência, racionalidade e lógica tem certamente um papel importante em tudo quanto existe de ruim no mundo: as guerras, a exploração econômica de países pobres e de populações ignorantes, a destruição do meio ambiente e tudo o mais. Mas isso não é tudo, e na verdade não é nem um terço da história toda.

Lógica e racionalidade são atributos do neocórtex cerebral que o ser humano desenvolveu há pouco tempo (100 ou 200 mil anos). É a parte do cérebro capaz de pensamento abstrato, planejamento, linguagem, percepção. É o cientista dentro de nós, e é a parte mais recente do nosso cérebro. Só que ela não decide muita coisa: quem decide, quem nos mobiliza e nos faz agir, são estruturas mais profundas. Por exemplo: o que os cientistas chamam de cérebro mamífero (“sistema límbico”). O cérebro mamífero é típico das criaturas de sangue quente, que amamentam filhotes e cuidam deles com altruísmo e dedicação, e que se associam em hordas, bandos e manadas obedecendo a um “contrato social” instintivo. Esse contrato lhes diz que juntos estão mais seguros e mais felizes do que sozinhos; e que um gesto de generosidade feito hoje poderá ser retribuído amanhã. Sem isso, nenhum ser sobrevive, nenhuma espécie sobrevive, como aliás estamos a ponto de constatar, por nossa conta e risco.

No entanto, por dentro destes dois, existe o mais antigo. Todo ser humano tem um cérebro réptil, o mais antigo de todos, incrustado no centro do seu. Por trás dos males do mundo, ou pelo menos por trás desse trio que acabei de citar, o que existe, como fator propulsor, é um espírito predatório e destrutivo do ser humano. Um espírito egoísta e auto-centrado, que só reconhece a si próprio como objetivo e se comporta como se o mundo lhe pertencesse por direito. Eu diria que existe em muitas sociedades humanas uma espécie de Espírito Reptiliano, um espírito de sangue frio e olho de lince, permanentemente focado em tudo quanto possa contribuir para sua sobrevivência, mesmo que à custa da sobrevivência de quem quer que seja, inclusive dos seus semelhantes, do grupo a que pertence, do planeta que habita.

domingo, 18 de julho de 2010

2286) Adeus, Dunga (6.7.2010)



Perdi minha inocência esportiva na véspera da decisão da Copa de 1974, entre Alemanha Ocidental x Holanda, quando li uma entrevista de Franz Beckenbauer, dizendo: “Não podemos perder o jogo de amanhã, pois eu e meus companheiros assinamos contratos de publicidade caríssimos, mas que só terão validade se formos campeões”. A Alemanha ganhou e Beckenbauer está rico até hoje. Aliás não só ele. Qualquer jogador que dispute uma Copa do Mundo, mesmo que pela seleção de Honduras ou de Gana, está rico, pelo menos pelos meus parâmetros financeiros.

Previ repetidas vezes, aqui nesta coluna, que o Brasil perderia esta Copa, porque seria muito arriscado – para os Poderes Que Mandam – permitir que conquistássemos agora nosso sexto título, com todas as condições de conquistarmos o sétimo em 2014, quando seremos anfitriões. Iríamos deixar os outros muito para trás (a Itália com quatro, Alemanha com três). Sermos penta nos dá mais orgulho do que sermos a sede da floresta amazônica. Nossa imprensa e nossa torcida se apegam a isso, naquelas madrugadas dostoievskianas quando a Inutilidade do Ser e a Falta de Sentido ds Existência se abatem sobre nós. O sujeito está vendido e mal pago, escorraçado ao botequim, enganado pelo sócio, traído pela mulher, perseguido pelos credores, ameaçado pelo gerente do banco onde passa borrachudos, mas aí ele chama o garçom para pedir uma cerveja e vê a propaganda da Seleção na parede. “Ora que diabo,” pensa ele, “sou Penta!” Aí em vez de uma cerveja pede um litro de uísque. E assim caminha a humanidade.

A Seleção de Dunga perdeu pelas suas limitações óbvias, mas é uma pena que suas qualidades também óbvias venham a ser esquecidas em breve. O mais interessante até agora é que tudo que pediam que Dunga fizesse foi feito por Maradona: encher o time de atacantes, convocar as novas revelações, abrir os treinos, ser simpático com a imprensa, mandar o time todo para o ataque, exaltar o futebol-arte... Maradona fez tudo que Dunga se recusou a fazer, mas ambos deram com os mesmos burros na mesma água. Alguém já levantou a lebre de que “ex-jogador não serve para técnico de seleção”, o que me parece um erro. Até porque os nossos melhores treinadores, ou pelo menos os mais candidatos à vaga de Dunga, são todos ex-jogadores.

Dunga perdeu o primeiro jogo realmente difícil que teve na Copa, e o perdeu, surpreendentemente, quando já o tinha ganho pela metade, num primeiro tempo impecável. Eu pagaria uma fortuna, se a tivesse, para saber o que foi conversado no vestiário do Brasil, antes do 2o. tempo contra a Holanda. Não, não estou pensando em Teorias da Conspiração, naquelas histórias mirabolantes de que a Nike ou a Adidas ofereceu 10 milhões de euros à CBF para o Brasil abrir o jogo. Espero que isso nunca aconteça, porque Ricardo Teixeira tem uma cara danada de quem aceitaria. O Brasil perdeu pelos nervos, mas fico pensando: o que deixou o Brasil tão nervoso?

2285) Os cavalos e as zebras (4.7.2010)




A Navalha de Occam (“Occam’s Razor”) é uma figura do discurso filosófico que consiste mais ou menos no seguinte: em qualquer problema, deve-se começar a procurar a solução pelas mais simples, não pelas mais complicadas. 

O termo “navalha” entra aí com sugestão de que sejam “raspados” todos os excessos, todos os elementos desnecessários à resposta. 

Isto não quer dizer que uma explicação complicada não pode ser verdadeira, mas que, na imensa maioria dos casos, são as explicações mais simples que matam a charada.

Suponhamos que estou em casa, no Rio de Janeiro, às 3 da tarde, lendo no sofá. Tocam à campainha. Levanto-me, pensando: “Puxa vida, deve ser alguém que veio da Paraíba para me visitar!”. Minha suposição não é absurda, pois o que imaginei pode muito bem acontecer. Mas se ao aplicasse a Navalha de Occam eu pensaria: “Não será o porteiro trazendo uma correspondência registrada? Um vizinho querendo me perguntar alguma coisa? Ou algum amigo que mora aqui perto?”. 

Estas hipóteses são tão plausíveis quanto a anterior, e têm a vantagem de serem explicações mais simples, de serem estatisticamente mais prováveis.

Daí a crítica que faço muitas vezes a jornalistas ou pessoas em geral, mal-informadas, que quando se referem a OVNIs sugerem que são visitantes “de outras Galáxias”. Quem diz isto não tem a menor ideia do que seja uma galáxia, ou da distância a que fica a galáxia mais próxima. 

Seria o mesmo que, ouvindo a campainha do meu apartamento, eu imaginasse que era alguém do Japão tocando – e não alguém do meu prédio, ou da minha cidade. 

(Se algum OVNI viesse da galáxia mais próxima da nossa, a Nebulosa de Andrômeda, levaria, viajando à velocidade da luz, cerca de 2 milhões e meio de anos para nos fazer essa visita. Melhor supor que seja alguém que more mais perto.)

Numa discussão recente sobre a Navalha de Occam na lista “A Word a Day”, o leitor Dean Barnard lembrou uma frase repetida frequentemente no curso de Medicina, para aconselhar aos estudantes que procurem respostas mais simples: “Se ouvir lá fora um barulho de cascos, pense que é um cavalo, não que é uma zebra”. 

Ele perguntou se num país africano este conselho continuaria valendo. O leitor Max Bennun, da África do Sul, respondeu: “Aqui em nosso país os estudantes de Medicina ouvem dizer que se vemos um pássaro pousado num galho é mais provavelmente um pardal do que um canário. Daí que no nosso linguajar médico a ocorrência de condições extraordinárias acabou sendo chamada de ‘canário’”.

A Navalha de Occam não nega a possibilidade de que fatos extraordinários aconteçam, apenas recorre ao bom senso para lembrar que se um fato extraordinário pode, sim, acontecer, um fato ordinário pode mais ainda. 

É uma questão de ir por partes, do mais possível para o menos possível, e só imaginar uma resposta complicada quando não houver nenhuma resposta simples que resolva o problema.





2284) Drummond: “Infância” (3.7.2010)



O segundo poema de Alguma Poesia (livro de estréia de Carlos Drummond de Andrade, completando 80 anos de publicação) é dedicado ao poeta e tradutor Abgar Renault, seu amigo de juventude, e intitula-se “Infância”. Diz ele: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe ficava sentada cosendo. / Meu irmão pequeno dormia. / Eu sozinho menino entre mangueiras / lia a história de Robinson Crusoé / comprida história que não acaba mais”. A infância interiorana está toda contida aí nessa paisagem doméstica, brasileira, provinciana, onde aparece como sintoma da Modernidade invasora o livro de Defoe, a literatura estrangeira, o mundo civilizado... A lembrança certamente é autobiográfica, mas Drummond articula a presença de Robinson no poema revertendo os signos: o menino lê a história do náufrago numa ilha de aconchego e segurança.

A segunda estrofe diz: “No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu / a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu / chamava para o café. / Café preto que nem a preta velha / café gostoso / café bom”. Os “longes da senzala” referem-se à Abolição, coisa de poucas décadas atrás. No tempo deste poema, o Brasil estava cheio de ex-escravos, o que não era muito diferente de estar cheio de escravos. Mas cada escritor dessa época guarda saudades culinárias das Tias Nastácias que serviam seu café, o qual surge como mais um sintoma de aconchego doméstico e familiar. E a preta velha de Drummond é uma parenta próxima da Irene de Manuel Bandeira, da Fulô de Jorge de Lima, da Guilhermina de Augusto dos Anjos, da Mãe-Preta de Raul Bopp e por aí vai. Negras acolhedoras e confortáveis como uma poltrona velha.

“Minha mãe ficava sentada cosendo / olhando para mim: / -- Psiu... Não acorde o menino. / Para o berço onde pousou um mosquito. / E dava um suspiro... que fundo!” O poeta assume aí o papel intermediário entre criança e adulto. Porque criança mesmo é o irmão mais novo, que até um mosquito pode ameaçar; ele não, ele lê livros de aventuras! E que sutileza esta linha repetida na íntegra, tintim por tintim: “Minha mãe ficava sentada cosendo”, a mãe congelada no âmbar da rotina e depois no da memória.

Última estrofe: “Lá longe meu pai campeava / no mato sem fim da fazenda. // E eu não sabia que minha história / era mais bonita que a de Robinson Crusoé”. O paralelismo entre a infância e a literatura está contido nas duas coisas sem fim (o mato da fazenda, a história de Robinson). E esta enigmática afirmação final, afirmação óbvia se a considerarmos apenas no plano da nostalgia açucarada tipo “ai-que-saudades-eu-tenho-da-aurora-da-minha-vida”. Mas não é absurdo vermos nessa lembrança dourada um lado negro e soturno finalmente domado e redimido na vida adulta. Porque o menino que lia Robinson queria com todas as forças abandonar aquele mato (como abandonou), até mesmo para, naufragado e sozinho na angústia dos 28 anos, ter o direito de ter saudade da roça de onde fugiu.