quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

3414) O gato fantasma (5.2.2014)




Eu tenho um gato fantasma, que não existe e não está aqui, mas que mesmo assim caminha e se esquiva por entre minhas poltronas, meus livros empilhados no chão, minha cadeira de balanço.  

Às vezes julgo vê-lo como uma mera silhueta esgueirando-se entre uma porta e outra.  Já tirei todas as provas de sua existência para poder ter a certeza que tenho agora.  Ele existe, mas não é um gato desse mundo. 

Uma das experiências cruciais eu a fiz com meus próprios olhos, meio acometidos daquelas manchas escuras internas que dão a impressão de estarem flutuando no ar à nossa frente, só que próximas, desfocadas, boiando na lâmina aquosa do globo ocular, e é por isso que elas se mexem tanto, não como bichinhos que fervilham, mas como borrões flutuantes que os movimentos dos nossos olhos fazem ricochetear sem som de um lado para o outro, batendo, perdendo impulso, como petecas de badminton que são jogadas para longe e cujo voo, mal partiu, desfalece e míngua.  

A experiência consistiu de uma combinação de lâmpadazinha de bolso, espelhos e rebatedores de luz em pontos estratégicos da casa. A luz num certo feixe e num certo ângulo parecia realçá-los, então sempre que eu julgava ver o gato acendia a luzinha e zerava o foco no próprio olho, para ver se havia manchinhas-do-globo-ocular, cujos movimentos eu estava atribuindo a uma assombração.

Não duvido que numerosos casos de fantasmas entrevistos ou pressentidos (seu nome é Legião, porque são muitos) se devam a essas aberrações oftalmológicas, que fazem tal parte de nós que nem temos consciência delas. 

Mas o gato continuou a ser visto de relance: imiscuindo-se para dentro de um armário (que, ao exame, revelou estar sem gato algum); saltando à noite da pia para a geladeira; enrodilhado entre o teclado e o monitor aceso, e sumindo assim que entrei dois passos na sala; desarrumando à sua passagem os vasos de plantas no patiozinho de trás.  

Eu sempre estava perto, mas sempre olhando para outro lado. Quando o pressentia, virava-me, mas me restava somente uma réstia de sua passagem, o lance final de uma ausência que meu olhar descobria.

Como uma sombra sem corpo, ou uma linha negra solta no ar desenhando um gato, ou um fotograma borrado de um movimento de luz que a gente julga ver num aposento vazio.  

Nunca me derrubou um jarro, nunca me rasgou um livro, nunca fez porcarias pela casa afora, nunca morreu como os outros. Vive solto aqui na casa e não solto em lugar nenhum, e todos os dias me presenteia com fugas e esquivas e saltos de cavalo sobre o tabuleiro e teleportes instantâneos, por todos os lugares onde um gato de verdade passaria e onde nada passa mais.