domingo, 26 de janeiro de 2020

4544) "Babel-17" (26.1.2020)




Samuel Delany tinha apenas 24 anos quando este romance foi publicado e ganhou o Prêmio Nebula de ficção científica. 

É o prêmio mais “intelectual” da FC norte-americana, votado por escritores, editores e críticos, em comparação ao Prêmio Hugo, mais “popular”, votado por leitores e fãs. E tem mais: ele já havia publicado àquela altura cinco novelas curtas, das quais pelo menos uma (Empire Star, 1966) é de qualidade excepcional.

Babel 17 foi uma porrada na elite dos autores de FC da época porque pegava alguns dos temas, ambientes e truques narrativos da pulp fiction dos anos 1930-40 e da FC mais literariamente consciente dos anos 1940-59. E no meio disso tudo injetava uma overdose de elementos contemporâneos da contracultura da época, dos jovens da época. Quando este livro surgiu, os grandes nomes da FC norte-americana eram Isaac Asimov, Frederik Pohl, Robert Heinlein, Theodore Sturgeon, A. E. Van Vogt – todos na faixa dos 45 anos ou mais. Aos olhos deles, Delany era uma espécie de menino-prodígio.

Babel-17 tem um cardápio habitual nas aventuras de space opera: batalhas espaciais, astronavegação visionária, invasores implacáveis, assassinos de encomenda, piratas galácticos, um espião oculto entre uma tripulação fiel, armas de poder titânico...

Na obra de Delany, o livro tem uma continuidade temática e estilística com Nova (1968), que já comentei aqui no blog. Ambos os livros, aliás, começam com um longo trecho em que o capitão de uma espaçonave caminha pelo submundo de uma cidade espaçoportuária, selecionando tipos extravagantes para compor a tripulação de sua nave – como em tantas aventuras piráticas-marítimas do romance clássico de aventuras.

Nenhum leitor poderia se queixar de temática obscura. Tudo ali é familiar: a humanidade em combate feroz contra um invasor incompreensível, e o herói (no caso, a heroína) que detém uma habilidade única e excepcional, capaz de reverter o equilíbrio da guerra.

Babel-17 é uma das obras fundadoras da New Wave da FC norte-americana da época. Um sinal disto é que deve ser o primeiro romance na história da FC em que a personagem principal é uma poeta, e que ela vence suas batalhas intergalácticas enfrentando uma ameaça de natureza linguística, e não apenas armas nucleares.

Uma poeta bem space opera, em todo caso, porque Delany diz logo no início, sobre a capitã-de-espaçonave Rydra Wong:

Ela era a poeta mais famosa nas cinco galáxias já exploradas.

A suspensão de incredulidade neste caso é necessária, não para admitir a hipótese de que a humanidade já tivesse a essa altura explorado cinco galáxias, mas de que uma poeta fosse famosa em todas elas. Ou seja: é space opera, é puro melodrama, é uma história épica em grande escala onde mais importa o vívido do que o verossímil.

A escala do romance é épica, sim, contando a guerra entre a Aliança e os Invasores, um conflito político descrito assim (com um possível erro de continuidade):

Havia nove espécies inteligentes entre as sete galáxias já exploradas pelas viagens interestelares. Três haviam se unido permanentemente à Aliança. Quatro ficaram ao lado dos Invasores. Duas não se envolveram. (Parte 3, IV).

No meio da guerra aparecem piratas espaciais simpáticos, comandados por Jebel Tarik; piratas estão presentes também em Nova (1968), o romance seguinte do autor. Existem armas de tecnologia ultra-avançada para a época, androides que funcionam como perfeitas máquinas de matar.


Uma aventura de space opera não vale apenas pela grandiosidade e exotismo de sua ação, mas pela capacidade de produzir (como nos melhores livros de Van Vogt, de Edmond Hamilton, de Doc Smith) frequentes flashes de imaginação descritiva, evocando episódios inteiros de aventuras que não serão contadas. Como neste trecho, em que num momento de crise um personagem lembra um perigo por que já passou:

...parado e tiritando de frio nas cavernas ressoantes de Dis onde ficara enclausurado durante nove meses, depois de devorar toda a comida, e mais o cachorrinho de Lonny, depois Lonny, que morrera congelado tentando escalar a encosta de gelo, até que de súbito o planetóide saiu da zona de sombra de Ciclope e o clarão de Ceres explodiu no céu, de modo que quarenta minutos depois a caverna estava inundada por uma água gelada que lhe chegava ao peito. (Parte 4, II)

Essas “ilustrações” brotam (e desaparecem para sempre) no meio de uma ação totalmente diferente, e expandem o universo proposto.  São, nas aventuras espaciais, o equivalente às recordações de guerra de velhos soldados ao pé da lareira, ou de lobos-do-mar num convés noturno, ou de caçadores em volta da fogueira.

São uma figura narrativa essencial ao romance de aventuras. Servem para lembrar ao leitor que a aventura sendo contada não é a única, e que contá-la implica em puxar os fios de muitas outras que ficaram (e ficarão) para trás, pois o mundo do Romance de Aventuras vive do exotismo e do fascínio das coisas extraordinárias que transformam pessoas comuns em pessoas extraordinárias.  

É um mundo futuro onde a cirurgia cosmética avançou a galope, e praticamente todo mundo ostenta algum tipo de enxerto ou deformação estilosa:

“A maior parte deles eram homens e mulheres normais, mas os resultados da cirurgia cosmética eram numerosos, e faziam o olhar de um observador pular de um lado para outro. Criaturas anfíbias ou reptilianas discutiam e gargalhavam com grifos e com esfinges de pele metálica.” (Parte 1, III)

E ao mesmo tempo é um universo onde os personagens comem hamburger e batata frita e ketchup, bebem “ice cola”, compram jornais para saber das novidades. Essa mistura entre imaginação exótica e ambientação banal existe em toda space opera. Em Delany, ela parece menos resultado da pressa ou da preguiça, e sim da intenção consciente de aproximar o futuro ao presente, e ver que tipo de faísca de percepção resulta desse atrito.

Há um capítulo curto e bem humorado (Parte 4, I) em que duas pessoas estão trancadas na cabine de comando, aparentemente fazendo sexo, e um tripulante fica interferindo com perguntas de rotina pelo áudio e recebendo respostas monossilábicas até que encerra dizendo: “Puxa, desculpa aí se eu interrompi alguma coisa.”

A luta entre a Aliança e os Invasores tem no idioma Babel-17 uma de suas armas. William Burroughs dizia que a linguagem é um vírus do espaço exterior. Neste caso, a linguagem é um vírus que um dos grupos em guerra faz infiltrar nas telecomunicações do outro, para desorganizar suas associações de idéias. É curioso que Delany recorre (Parte 5, IV) ao uso de paradoxos para explicar o poder “travador” de uma linguagem – em Alphavile (1965), Jean-Luc Godard usava trechos de poesia para provocar num bug no supercomputador futurista, Alpha 60.

O filme de Godard e o romance de Delany  mantêm aquele equilíbrio instável, bem dos anos 1960, entre cultura erudita e cultura pop, embora o livro seja muito mais “literário” e mais fundamentado em assuntos de linguística (Delany é um dos mais “semióticos” autores da FC) e demonstre muito mais prazer-de-leitor com a FC clássica do que ocorre com Godard.

A primeira edição brasileira deste livro saiu há pouco pela Ed. Morro Branco (SP), com tradução de Petê Rissatti (num volume duplo que inclui o excelente Estrela Imperial), mas meus comentários neste artigo são a partir da edição em inglês ( trechos traduzidos por mim).


(capa da edição brasileira)